Amor de Kennedy e Soraia começou em casa de apoio, lutando contra as drogas

22 fevereiro 2018 | Gente que inspira

Fazia dias que Kennedy pedia, em preces, uma companheira para dividir o caminho. Quando Soraia chegou à casa de apoio, cerca de dois meses atrás, ele fez questão de estar atento. Seria um sinal?

O contato inicial foi áspero. Ele fez uma brincadeira que ela não gostou. Mas não deixou o interesse pela recém-chegada se abater.

Uma escova de dentes era tudo o que havia sobrado para Soraia, depois de uma vida de vício que culminou em sete meses na rua usando crack.

Kennedy, depois da segunda internação em unidade terapêutica, já conseguia retomar um pouco da dignidade deixada pela cocaína. Vendeu tudo o que sua mãe havia lhe deixado e revirava lixeiras pela droga.

Os dois encontraram abrigo no Projeto Mudando Vidas, ONG que acolhe e trabalha na reinserção social de pessoas com dependência química, onde ainda estão, em recuperação.

Em poucos dias, com tantas dores a dividir, estavam amigos.

Cerca de um mês depois do primeiro contato, no dia 3 deste fevereiro, Kennedy pedia Soraia em casamento em pleno Centro de Ribeirão Preto, com sonoro “sim” de resposta.

Os dois descobriram que o amor é o melhor combatente na luta contra as drogas.

Na ONG Mudando Vidas, o casamento será celebrado com vestido de noiva, comes, bebes e tudo o mais que a solidariedade deixar. Há muito o que festejar!

Soraia, 49 anos, e Kennedy, 22, compartilham o mesmo sonho: construir uma família. A diferença de idade se torna pequena perto da vontade de mudar que os dois esbanjam.

– Nós temos que reinventar o futuro, partindo do otimismo e do amor.

É ela quem diz, enquanto ele abre o sorrisão que ocupa todo o rosto. Um dos charmes que conquistou a amada.

ONG Mudando Vidas Ribeirão Preto História do Dia

 

Soraia

– É uma história muito triste…

Soraia de Almeida Serva começa lá na infância, quando foi tirada da mãe pela Justiça de Belo Horizonte. A história que lhe contaram é que a mulher a queimava com cigarros e negligenciava seus cuidados.

Viveu no abrigo até os cinco anos, quando uma senhora já idosa decidiu lhe adotar. Diz, porém, que não houve amor na criação, feita de muitas agressões.

Quando tinha oito anos, a idosa morreu e, no velório, um de seus filhos decidiu que ficaria com Soraia, que não tinha para onde ir.

– Mas a mulher dele não quis a adoção e me tratava muito mal. Mãe nunca foi meu forte… não tive amor de mãe.

Foi nessa casa que ela começou a beber, logo aos oito anos. O novo pai tinha uma alambique e, todos os dias, tomava uma dose de pinga. Era Soraia quem lhe servia e, antes, tomava um gole da bebida.

Aos 24 anos, começou a usar maconha e aos 26 partiu para a cocaína.

Até essa idade, porém, diz que teve a melhor formação e chegou a entrar na faculdade de Turismo.

Com a cocaína descobriu, ao mesmo tempo, a liberdade e a prisão.

– A cocaína me deu coragem para deixar a casa dos meus pais. Ali, eu vivia muita humilhação. A droga era uma muleta muito forte.

Decidiu seguir a carreira artística, que tanto amava. E ganhava a vida cantando pelos bares e ruas de Belo Horizonte.

Depois de um tempo, saiu a viajar pelo Brasil. Passou pelo Mato Grosso, morou na Bahia antes de vir para Ribeirão Preto, oito anos atrás.

Conta que, antes de chegar ao interior paulista, havia deixado de usar cocaína. Veio em busca de uma promessa de emprego e de saúde. Na Bahia, começou a ter convulsões sem causa definida e pensou que, em Ribeirão, poderia ter um diagnóstico.

Por aqui, porém, a promessa de emprego não se concretizou e o desencontro veio.

– Eu fiquei perdida.

Voltou para as drogas. Morou por quatro anos em um acampamento sem-terra e por quase quatro entre a Cetrem (Central de Triagem e Encaminhamento ao Migrante, Itinerante e Morador de Rua de Ribeirão Preto) e a rua.

Os sete meses antes do acolhimento na ONG foram os de maior entrega ao vício. Passou a viver só na rua, dormindo onde dava e usando crack todos os dias.

A vontade de mudar veio quando uma mulher lhe viu pedindo restos de comida e alertou: “Ninguém pode viver assim. Ninguém pode se acostumar a viver de restos”.

Soraia diz que, a partir daquele momento, entendeu onde a vida tinha chegado.

– Eu me vi acostumada com a droga, com o lixo. Usei tanta droga, que cheguei a cansar. Eu queria realmente morrer.

Buscando ajuda na Cetrem, encontrou o apoio do Projeto Mudando Vidas. Ricardo, presidente da ONG, é quem foi lhe resgatar.

– Eu estava suja, descabelada, trêmula. Ele me abraçou e falou: ‘Vamos para casa?’. Eu pensei: ‘Que casa?’. Hoje, a casa de apoio é minha casa, minha família.

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Kennedy

Kennedy de Oliveira Bernardes cresceu em uma favela de Ribeirão. Viveu ali até os 12 anos, quando a mãe conseguiu o tão sonhado apartamento de Cohab.

Conheceu a droga com o próprio pai, que usava na frente dos filhos. E diz que, pelo descaso desse pai, criou uma ferida que, por anos, ficou aberta no peito.

– Ele não estava nem aí para mim. Minha mãe se orgulhava de mim, mas ele não. Eu sentia que tinha que ser o homem da casa.

Aos 11 anos, foi detido pela primeira vez por roubo. Aos 14, fumou maconha e aos 17 começou a vender drogas.

– Eu me culpo porque destruí bastante gente. Eu taxava os caras de nóia e me tornei um nóia pior.

Começou a usar cocaína vendendo a droga.

Quando os pais se separaram, o uso aumentou. E, em 2014, quando a mãe faleceu por câncer, diz que se perdeu de vez. Meses após a morte da mãe veio também a morte do pai.

– Eu vendi tudo o que tinha na casa que minha mãe deixou para mim e meu irmão. Vendi janelas, portas, fiação. Tudo pela droga.

Kennedy diz que vivia do lixo que as pessoas descartavam. Passou três anos sem energia elétrica. Ele e o irmão, que compartilhava do vício, acendiam fogueiras dentro do apartamento.

– A gente vivia na escuridão. Sem luz, sem nada.

Revirando a lixeira de um vizinho em busca de comida, ele teve a primeira mão estendida.

– Ele me perguntou: ‘Você crê em Deus?’. Eu disse: ‘Eu creio’, mas não estava crendo, não. Foi da boca para fora.

O vizinho entrou em contato com a ONG, que ofereceu abrigo a Kennedy.

– Eu pensei: ‘Nossa, vou ter televisão, energia!’. Fiquei com vontade de ir.

O trabalho da ONG acontece em várias frentes.

As pessoas que precisam e querem são encaminhadas para internação de seis meses. Após o período, encontram abrigo na casa apoio da ONG, que auxilia na reinserção social. A instituição acolhe homens e mulheres e, atualmente, tem 20 acolhidos, mantidos com doações.

Kennedy passou seis meses internado, mas depois de dois meses fora da comunidade, teve uma recaída. Voltou para as drogas e para a casa que não tinha nada além de paredes.

Passou a furtar para comprar drogas e ficou três meses preso.

Após a prisão, o mesmo homem que estendeu a primeira mão foi lhe buscar novamente.

– Ele me levou para a igreja e, dessa vez, eu fui com fé, vontade. Eu queria mudar.

Novamente, foi acolhido pela ONG, passou por internação e diz que está há oito meses sem usar drogas.

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Kennedy e Soraia

Kennedy e Soraia sabem que, enfrentar o vício, é dia após dia.

– Um dá força para o outro.

É ele quem diz.

Veem o momento presente como, literalmente, um presente, nas palavras dela.

– Deus está me dando uma oportunidade de ter uma família, casar, como eu sempre sonhei.

Depois que amizade com Kennedy virou namoro, as doses diárias de antidepressivos receitados pelo médico estão diminuindo.

– Ele é meu remédio! O amor é o remédio!

Caem na risada.

Os dois ainda vivem na casa apoio da ONG, em recuperação, mas sonham em conseguir alugar uma casinha. Ele já trabalha como servente de pedreiro e pensa em aprender o ofício de obras.

Querem ter filhos e a adoção é a grande vontade. Na contramão do que prefere a maioria dos casais, pensam em dar um lar a uma criança maiorzinha.

– Quero aquela criança que ninguém quer. Que está à margem da sociedade. Quero dar a essa criança uma família.

Nas palavras de Soraia, com complemento de Kennedy:

– Da mesma forma que Deus resgatou nossa vida, nós podemos resgatar a vida de uma criança.

O casamento deve sair nos próximos dois meses. Estão organizando a festança com as doações que a ONG já começou a receber de quem soube da história de amor.

– Já tenho vestido de noiva! Sapato! Frango para o jantar. Eu pensei que seria uma coisa pequena, simples. Mas muitas pessoas querem colaborar, participar com a gente.

O casal tem – muita – pressa.

– A gente não vê a hora!

Na hora da foto, fazem questão de exibir as alianças. Querem contar ao mundo que, depois de muita tristeza, a felicidade fez morada.

 

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