Carminha vive a cegueira com garra e felicidade

6 agosto 2018 | Gente que inspira

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Foi aos oito anos que Maria do Carmo percebeu a diferença.

Até então, achava que o mundo todo “via” com as mãos e andava de braços dados.

– Para mim, todo mundo era igual. Porque nunca me trataram com diferença. Quando eu queria ver algo, as pessoas davam na minha mão. E eu achava que ver era assim.

Diz que se lembra “direitinho” daquele momento.

Estava com a irmã e queria que ela visse o objeto em suas mãos. Pediu, então, que a irmã pegasse o objeto. Mas ela respondeu que já havia visto. “Eu vejo com os olhos. E você com a mão”. E explicou à Maria do Carmo o que significava ser cega.

– Mas eu não fiz questão. Já estava feliz. E continuei feliz. Para mim, ser cega era ser mais bonita, porque todo mundo me tratava com carinho.

Naquele dia, ela escolheu com quais temperos iria sentir a vida. A felicidade – mesmo nos dias de tormenta – é seu sal.

– Eu tenho um negócio comigo: quando a gente nasce, já nasce com a vida marcada. O que você tem que passar, ninguém passa por você. E eu sou feliz. Acho que nasci para ser feliz. Todos nós nascemos.

 

 

Maria do Carmo, 62 anos, nasceu cega. E sem nunca enxergar estudou, morou em São Paulo, viajou, realizou o sonho de ter uma filha, morou sozinha, casou, descasou, casou de novo.

Há cerca de 30 anos vende bilhetes de loteria no mesmo ponto do Calçadão de Ribeirão Preto. Gosta do que faz. Mas diz que, no tempo em que começou, foi a única opção. Mesmo com qualificação para uma gama de empregos, nunca conseguiu uma oportunidade.

– É o preconceito. Que vem da falta de vontade de querer conhecer as pessoas.

Aprendeu a lidar com ele pequenina, no entanto. E passou a vida a replicar sua força.

– A gente é gente como todo mundo. Já tive tropeços, mas eu não paro por qualquer coisa, não.

Maria do Carmo vende bilhetes no Calçadão de Ribeirão Preto História do Dia

Maria do Carmo Policeno Bernardes começa dizendo que tem duas datas de aniversário. A que consta em registro e a que mora na memória da família.

– Eu nasci dia 19 de janeiro de 1955. Mas meu pai me registrou no dia 4 de fevereiro.

Rodeada por seus 10 irmãos, cresceu em Brodowski. Quando tinha 10 anos, o pai morreu e ficou para a mãe a dura função de criar a criançada.  Dois filhos já eram casados, e dos nove que moravam em casa o mais velho tinha 21 e a mais nova 4 anos.

– Minha mãe trabalhava na roça o dia inteiro e a noite lavava roupa para sustentar a gente. Nunca quis outro companheiro porque dizia que não aceitava que outro homem chamasse a atenção dos filhos dela. Tudo o que havia de bom ela nos ensinou.

Nessa família, Maria foi criada sem barreiras. Nasceu cega por um glaucoma. Acredita que alguma intercorrência durante a gravidez da mãe tenha causado a doença, mas, em uma época sem pré-natal, não havia o que fazer.

– Eu fui uma criança muito feliz!

Os pais nunca impuseram limitações. Ela podia brincar tanto quanto os irmãos. Naquela época, porém, a escola regular não matriculava crianças com deficiência. Mas a vontade de aprender fazia a menina escutar atenta aos irmãos lerem a tabuada para decorar os números.

– Com cinco anos eu já sabia a tabuada do um ao nove!

A família deixou a roça para morar em Sales Oliveira, depois Jardinópolis e, quando Maria tinha entre 12 e 13 anos, a mãe tomou uma decisão.

– Ela começou a se preocupar porque eu estava ficando mocinha e ela não sabia como me ensinar as coisas.

A irmã que morava em Ribeirão Preto, sem saber, encontrou a solução. Em uma das visitas à família levou um par de sapatos como presente. Embrulhou o regalo em uma folha de jornal que, entre as notícias, informava sobre a Associação dos Cegos de Ribeirão Preto.

– Minha mãe pediu que eu morasse no lar, para aprender as coisas. E assim foi. Aprendi muito!

Lá ganhou o apelido pelo qual é conhecida até hoje.

– Como eu era pequena, eles me chamavam de Carminha. Até eu me esqueço de que é Maria do Carmo!

Cai na risada.

Logo os diretores da associação em Ribeirão perceberam que a menina Maria poderia ir além. Conseguiram para a pequena uma vaga em uma instituição de São Paulo, que acolhia crianças e adolescentes com deficiência visual.

– Lá eu passei momentos maravilhosos! Tudo que eu sei aprendi lá.

Maria estudou, aprendeu a andar sozinha nas ruas, viajou, esteve no mar mais de uma vez.

– Os alunos com as melhores notas ganhavam viagens. Eu sempre estava entre eles!

Ficou na instituição por sete anos. Aos 20, voltou para Ribeirão Preto e passou mais alguns anos vivendo na Associação dos Cegos, até se casar por volta de 1990.

Maria do Carmo vende bilhetes no Calçadão de Ribeirão Preto História do Dia

Carminha diz que sempre sonhou em ser mãe de uma menina.

Acredita que Deus teve uma participação direta na sua gestação.

– Foi um milagre. Eu tinha hipotireoidismo e os médicos diziam que não poderia engravidar. Mas fui curada.

Desde então, aumentou sua fé. Garante que não dorme uma noite sequer sem rezar o terço.

Sua filha nasceu no início da década de 90. Eram gêmeas, mas uma delas faleceu no parto. Não no coração de Carminha.

– Eu sou mãe de duas.

Foi a filha, Ana, quem indicou a história da mãe para a entrevista. Quer compartilhar a trajetória de luta que Maria do Carmo escreveu e continua a escrever.

– Eu acho minha filha linda! Qual mãe não acha a filha linda?

A lista de histórias onde o preconceito imperou são muitas. Carminha conta do dia em que levou a filha no pediatra e a médica gritou com a menina, que estava aos prantos: “Cala a boca! Você não está vendo que sua mãe é cega? Ela vai achar que eu estou te batendo!”.

De meses atrás, quando caiu um tombo que lhe rendeu machucados no joelho e foi ao médico acompanhada por Ana.

– Primeiro que eles nunca perguntam para mim. É sempre para a minha filha: “O que ela tem?”, eles dizem. Depois, ele me explicou: “A senhora caiu porque não enxerga”. Eu fui logo respondendo: “O senhor ter certeza disso? Olha, Ana, você tem 25 anos e agora eu descobri que não enxergo!”.

Tenta levar na brincadeira o que é muito, muito sério.

Já perdeu ônibus um tantão de vezes porque ninguém no ponto responde à pergunta: “Que ônibus é esse?”, quando o veículo se aproxima.

– Eu não vejo essa tal de inclusão que eles falam. Eu acho que estão excluindo mais. As pessoas precisam aprender muita coisa ainda!

E fala que, dependendo do humor, escolhe a resposta a dar para o mal educado.

– Eu já me acostumei… Brigo quando precisa. Quando não, eu levo na brincadeira. E vou levando.

Maria do Carmo vende bilhetes no Calçadão de Ribeirão Preto História do Dia

De segunda à sábado, Carminha passa as manhãs no Calçadão de Ribeirão Preto. Não está sozinha. O homem com quem divide a vida há 16 anos é seu companheiro.

Os dois se conheceram antes de Maria se casar e se reencontraram já depois de divorciados. Escolheram partilhar o caminho. Ele também tem deficiência visual. Vendem bilhetes juntos.

– Aqui é uma extensão da minha casa! É muito bom! Ouço coisas diferentes. E o quanto é bom andar de ônibus? É a empregada falando da patroa, a mulher falando do marido!

Conta que já vendeu pequenos prêmio, mas sonha em “fazer um milionário”.

Ela mesma nunca joga. Diz que prefere se concentrar nas vendas.

Dentro da bolsa, divide as notas e moedas em diferentes bolsinhos, para saber o valor que está pegando. Vez que outra, gente de má fé lhe passa para trás.

– A gente que não enxerga não tem só um anjo da guarda. Tem dois. Se aparece alguém de má fé, logo vem alguém fazendo o bem. Depois da tempestade, sempre vem um sol bem bonito.

Diz que, por nunca ter enxergado, não alimenta vontades de saber como é.

-Eu não vou enxergar. Mesmo que tivesse vontade. Então, prefiro viver bem com minha deficiência.

Aprendeu a conhecer as cores “pelo que elas representam”, em suas palavras.

– Eu gosto de comprar calça preta e sapato preto, porque sei que combina com tudo. O azul me lembra o céu e o mar. Gosto do verde pela natureza. E do branco pela paz.

A mesma felicidade lá dos oito anos, quando a irmã lhe contou o que era ser cega, permanece ainda hoje, aos 62.

– A gente é feliz e, muitas vezes, não sabe. O sol está brilhando e a gente não paga nada por isso. Não é uma felicidade saber que Deus olha por você? Olhe a vida com esses olhos! É bonita!

Maria, que nasceu cega, ensina a gente a enxergar.

 

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3 Comentários

  1. Ana Luiza Bernardes Peres

    Ahhh que linda ??? minha mãe ?

    • Rogério Galvão

      Hoje fiquei triste em saber de sua morte.
      A conhecia no lar dos cegos de Ribeirão Preto.
      Minha mãe trabalhou lá.
      Nossa veio tantas e tantas lembranças.
      Sr Osmar, Camilo, Pato, Isaurinha, Mara, e tantos outros que lá conheci.
      Suas risadas e histórias sempre ficarão em minhas lembrancas.

  2. Maiza Silva Nunes dos Reis

    Grande guerreira!

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