Há 41 anos, lar de idosos é a casa de Rosa

23 maio 2017 | Gente que inspira

Rosa chegou a Ribeirão muda. Não porque não soubesse ou quisesse falar. Os anos silenciando o que sentia tinham lhe roubado toda a voz.

Só depois de algum tempo entendeu que se tratava de tristeza, depressão. E não falta de capacidade, como muitos já tinham lhe dito.

O quarto do Lar Santa Rita de Cássia é o único lar que conhece. Lar: lugar onde a gente se sente em casa, com a certeza de que tem para onde voltar. Não precisou voltar porque, depois que chegou ali, em 1976, nunca mais saiu.

Até chegar, foram 27 anos de instituições, abrigos, silenciamento. Suas memórias se confundem um pouco no tempo e na ordem. Mas tem registrados os detalhes da violência.

Foi tirada da mãe que “tinha problemas de nervos” como diz, depois de muita agressão. Diz que apanhava e era presa em um porão, até o dia em que saiu andando por aí e foi levada para um abrigo em São Paulo. Lembra que estava com oito, nove anos.

Não tinha sequer nome. O batismo foi feito, assim, sem qualquer cerimônia.

– Eu fiquei em dúvida entre Rosa e Fátima. Eles escolheram, e ficou sendo Rosa.

Rosa Lar Santa Rita de Cássia

No primeiro abrigo, parou cedo de estudar. Os médicos diziam que, assim como a mãe, ela era “muito nervosa”.

O nervoso vinha, hoje ela consegue explicar, quando a professora dopava os alunos e ameaçava lhe dopar também.

– A professora era má. Ela mandava fazer as coisas e, se não conseguisse, ela mandava para a enfermagem para tomar balinha. Era remédio para as crianças dormirem.

Rosa chegava a desmaiar. Seria pelo “nervoso” ou pelas balinhas? O médico não quis saber. Tomou a solução fácil: mandou tirarem a menina das aulas e tirou de Rosa a possibilidade de aprender.

Ela diz que teve “três paralisias”, que lhe deixaram sequelas motoras e eram justificativa das cuidadoras para lhe manterem isolada do resto das crianças.

Rosa viveu trancada em um quarto por tempo que não sabe definir.

Diz que seu sofrimento só não era maior porque era “protegida” pelo juiz.

– Como eu não tinha ninguém, ele me protegia. As outras crianças tinham castigo de verdade. O meu não era castigo, castigo mesmo…

Considera brando o tratamento que recebia quando compara com as crianças que eram trancadas em cubículos escuros por dias, sendo tratadas com pão e água, e com as que apanhavam.

Rosa Lar Santa Rita de Cássia

Até os 27 anos, Rosa foi passando por instituições em que a violência imperava. Conta que chegou a morar com uma família, mas também não encontrou ali um lar.

Em uma das últimas instituições por onde passou antes de chegar ao Lar Santa Rita, foi silenciada de vez. Diz que via as funcionárias baterem nos idosos acolhidos por ali.

– Era a lei do silêncio. Elas me falavam para não abrir a boca. E eu fui ficando muda.

Não sabe explicar direito como, enfim, chegou ao lar.

Conta que vinha para Ribeirão de ônibus e perambulava pelas ruas. Encontrava aqui ajuda e, em uma das vezes, foi levada para o Santa Rita de Cássia.

Na instituição entendeu que a mudez não era problema de fala.

– Em outros lugares eles achavam que era doença. Mas era tristeza… Eu estava paralisada.

No lar encontrou algum tipo de carinho. Diz que a freira lhe ensinou a lavar roupa, cuidar de si. Passou a trabalhar por ali, ajudando nas funções domésticas.

– Aqui foi a verdadeira escola.

Se sentiu adotada. Não só pela instituição.

– Eu sinto que Santa Rita me adotou. Ela toma conta de mim.

Não só a Santa Rita. A administradora do lar, Esmeralda, estampa porta-retratos espalhados por todo o quarto de Rosa.

– Ela é tudo para mim. É minha família.

Rosa Lar Santa Rita de Cássia

No quarto do Santa Rita de Cássia, Rosa fez seu lar.

Trocou as bonecas improvisadas com papelão  por bonecas de verdade. Várias bonecas, que as funcionárias do lar lhe presenteiam.

Cola imagens de Santa Rita nas paredes, decora as estantes com brinquedos, incrementa as fotos de Esmeralda com lantejoulas. Está, enfim, na sua casa.

Não se casou porque “tinha medo dos homens”, como explica. Sequer teve um namorado.

– Quando tinha um pretendente, a barriga enchia de vento e virava aquele fiasco.

Nos últimos meses, ganhou até um cachorro.

– Eu assistia na televisão e achava bonito. O Juca tava abandonado, sofrendo.

O cachorro mostra os dentes quando alguém se aproxima de Rosa. Dorme no quarto dela e, se ela chama, vai logo abanando o rabo.

Rosa, que por tanto tempo foi silêncio, hoje é risada.

– O Juca mudou minha vida. Eu até melhorei de gênio. Eu era rancorosa e deixei de ser. Ele toma conta de mim e eu tomo conta dele.

Ela tem um sorrisão aberto que lhe toma todo o rosto. Quando pergunto se é feliz, coloca a mão no peito e responde:

– Eu me sinto feliz. Mesmo com todo o problema que tive nesse mundo afora, sempre tive uma parte de felicidade.

Diz que depois que chegou ao lar não sentiu mais falta de família.

Aos 68 anos, encontra a felicidade no primeiro cachorro que já teve, no jardim a regar, na televisão a assistir. E na decoração do quarto, claro. Que está sempre a mudar.

– Eu achei que tava meio sem graça. Por isso, decorei.

Lar é aquele lugar onde, há 41 anos, Rosa pode decorar as paredes e falar, sem medo de quem vai ouvir.

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1 Comentário

  1. Ana

    Projeto incrível!!!!@

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