Médico Orlando fez o primeiro transplante de fígado de Ribeirão Preto

17 outubro 2018 | Gente que cuida

Orlando tentava descansar: preparo necessário para aquela tão esperada cirurgia. O celular tocou e do outro lado da linha a funcionária do hospital deu a notícia: “Dr., o ar condicionado do centro cirúrgico parou de funcionar. Teremos que cancelar o transplante”.

A resposta foi imediata: “Não vamos cancelar. Esse transplante precisa sair!”.

Foram mais de 15 anos de preparação, em um processo que começou na capacitação do médico e passou até mesmo por barreiras institucionais.

Orlando de Castro e Silva Júnior foi persistente.

– A ideia do transplante é cuidar de um indivíduo que está mal e devolvê-lo à sociedade em condições de fazer tudo o que uma pessoa que não tem doença hepática faz.

Seu encantamento pelo fígado é feito de poesia. Como é feito Orlando também. Desde pequeno, ele escreve poemas. Talvez venha também daí a sensibilidade com que fala da profissão. Sensibilidade que faz, até mesmo, os versos faltarem.

– Eu não consigo transformar em palavras a sensação de ver um paciente bem. É indescritível. Estar andando no Shopping e um paciente que você cuidou vir e te abraçar… não tem palavras.

Conta que se encantou pelo fígado lendo a poesia de Castro Alves, que relaciona a lenda de Prometeu, herói da mitologia grega, ao sofrimento da África.

– Um abutre comia pedaços do fígado de Prometeu todos os dias. E à noite ele se regenerava. Não sei explicar porque gosto tanto de fígado. Mas pode ter vindo daí.

Pelas mãos do médico, em torno de 300 pessoas ganharam um fígado novo. Ele foi o primeiro a realizar um transplante do órgão no Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, implantando o serviço na instituição. Até setembro deste ano, o setor já havia realizado 431 transplantes, nos números que o médico carrega na memória.

Naquele 1º de maio de 2001, quando a funcionária ligou avisando que o ar condicionado estava quebrado, Orlando não se preocupou. Consertar o equipamento em poucas horas seria desafio pequeno entre tantos outros superados para gabaritar o hospital a realizar o serviço.

– Nenhum paciente pode morrer. Mas, nesse caso do primeiro transplante, a pressão para dar tudo certo era ainda maior, porque era preciso provar que a equipe estava capacitada.

O primeiro paciente foi um homem, de 48 anos. O centro cirúrgico estava repleto de profissionais e alunos, aumentando a pressão já habitual. Foram mais de 12 horas de procedimento, com uma pausa estratégica no meio: descanso dos profissionais e mais uma manutenção no ar, dividido entre continuar e pifar.

Passadas 36 horas do procedimento, o paciente deixou a UTI. Sete dias depois, ele já poderia ter ido para casa, não fosse o excesso de zelo dos médicos. Mais que a conquista, Orlando comemorou a possibilidade de oferecer a centenas de pessoas a possibilidade de vida nova, organismo renovado.

transplante de fígado hospital das clínicas ribeirão preto

Orlando, caçula de três filhos, nasceu em Marília e passou parte da infância e adolescência em Franco da Rocha.

Seu pai era agrônomo e, no final da década de 50, foi escalado para trabalhar no hospital psiquiátrico de Juquery, que chegou a abrigar mais de 14 mil pessoas.

Relatos de pacientes e ex-funcionários revelam que pessoas eram torturadas e viviam enclausuradas na instituição. As memórias compartilhadas são terríveis.

Orlando conta que, quando o pai chegou ao hospital, os pacientes andavam nus e não tinham o que comer.

– Ele chegou para resolver uma praga no café, mas fez plantações de verduras, leguminosas, encheu aquelas terras de comida. Tinha uma conduta diferente.

Ele, seus dois irmãos e seus pais passaram a morar no hospital. Logo, seu pai foi eleito vereador na cidade. Orlando relata que, quando a ditadura militar foi imposta ao país, seu pai foi aposentado à força dos trabalhos e chegou a ser preso por volta de 1970. Só conseguiu deixar a cela por intervenção de um advogado influente.

Por ter o mesmo nome do pai, ele conta que era retirado à força de festas e barrado em lugares. Nas escolas, o clima era de tensão. Relembra que chegou a vender discos do Geraldo Vandré que um professor distribuía.

– Meu pai descobriu, jogou os discos fora e disse que eu poderia ser preso por aquilo. Era música!

Acabou deixando Franco da Rocha e voltando à Marília para terminar os estudos e apaziguar os ânimos.

Diz que a escolha pela Medicina foi pautada um pouco pelo cotidiano de hospital e outro tanto pela mãe. Orlando era o caçula e, após seu nascimento, sua mãe desenvolveu a diabetes. Em muitos momentos, coube a ele ajudar nos cuidados.

– Já cheguei em Marília decidido a ser médico. Ver sua mãe sofrer, viver dentro de um hospital faz você também querer ser útil para alguma coisa.

Em 1971, entrou em Medicina na faculdade de Marília. Chegou em Ribeirão Preto em 1977, para a residência em cirurgia geral na Faculdade de Medicina da USP. Até deixou a cidade, mas por períodos pequenos e sempre com programação certa para o retorno.

Não havia nada voltado à fígado no Hospital das Clínicas da época. Orlando cita que o vírus da hepatite C, inclusive, só foi descoberto no final da década de 80. Logo, veio o convite dos médicos para que ele desenvolvesse essa especialidade por aqui. Em 1981, passou a ser docente na faculdade, com a função de pesquisar fígado. E teve pressa em aprender.

Em 1983 terminou o mestrado, em 1986 defendeu o doutorado e em 1992 a livre-docência.

– Eu já era um livre-docente 16 anos depois da minha graduação!

Nesse percurso, estudou a fundo o fígado. Fez estágio em São Paulo, com o profissional que era considerado a maior referência na área. E relata que, nessa época, por volta de 1985, participou do primeiro transplante de fígado do Brasil como estagiário.

– Até então, eu só fazia biópsias e cirurgias pequenas. Me deparei com um mundo novo.

Voltou certo de que, para criar um setor de transplantes em Ribeirão Preto, teria um caminho longo pela frente. E logo começou a percorrê-lo.

Em 1988, organizou uma jornada e reuniu médicos do Brasil todo – entre eles o médico mais referenciado – para discutir hepatologia.

– Foi o marco zero do transplante em Ribeirão.

Em 1990, foi convidado por esse mesmo médico referência para integrar a equipe da Fundação do Fígado que ele havia montado em São Paulo. Foi, mas prometendo voltar.

– A minha perspectiva era aprender para montar aqui o que tinha lá.

Voltou dois anos depois, para cumprir sua meta. Em 1992, fez a primeira cirurgia de fígado no Hospital das Clínicas de Ribeirão. E retomou as energias.

– Nós começamos a operar tumores, tratar hepatite. Nasceu o Ambulatório do Fígado. Era um trabalho de formiguinha. Começaram a surgir casos que foram capacitando a mim e à equipe.

Em 1996, uma decepção. Não foi aprovado no concurso para professor titular. E um dos motivos apontados era que lhe faltava um período de experiência fora do país.

Não pensou duas vezes parar arrumar as malas. Em 1997, partiu para Barcelona.

– Eles tinham lá o maior serviço de transplante do mundo!

Voltou depois de quatro meses, com o ânimo renovado e as direções que precisava.

– Eu comecei a estruturar o setor de doação, a montar a unidade de transplante, a pensar como fazer o transplante. Desenhei a sala de cirurgia.

Ele diz que, com tudo tão organizado, ainda esbarrou em contratempos institucionais.

– Isso atrasou em cinco, seis anos o primeiro transplante. A gente precisa estar muito preparado para montar um serviço e para as coisas que acontecem. Se você precisa falar todos os dias para a sua equipe que você é o chefe, você não é o chefe.

Oficializaram o Serviço de Transplante do Hospital das Clínicas em 2000. E, aí, começou a espera pelo doador. Hospitais de Rio Preto e Campinas já realizavam transplantes e, então, tinham prioridade na fila que, na época, era organizada por ordem de “entrada”.

Em maio de 2001, Orlando foi para um congresso em Vitória, com todos os especialistas de fígado reunidos. Sabia que os hospitais de Campinas e Rio Preto estariam em peso por lá e, então, iriam desativar o setor de transplante por aqueles dias. Manteve, assim, o setor de Ribeirão Preto em atividade. E ficou o tempo todo em alerta.

O doador apareceu no último dia de congresso. O médico desembarcou em Ribeirão Preto por volta das 18h, já se preparando para a tão esperada cirurgia.

Por isso, quando a funcionária cogitou desmarcar o primeiro transplante pelo ar condicionado que não queria funcionar, ele respondeu mais que depressa: “Esse transplante vai sair!”.

Orlando castro e silva transplante de fígado hospital das clínicas ribeirão preto                Orlando conta, orgulhoso, que uma das primeiras pacientes transplantadas é hoje uma idosa. O médico, ele bem sabe, precisa estar preparado para lidar com as perdas.

– Alguém está preparado para perder? Não! A gente sofre com as derrotas, mas precisa estar preparado para, no outro dia, sair e começar de novo.

A regra vale para a vida, como um todo. Tentou três vezes o concurso para professor titular. Passou em 2004.

– Começar de novo, no outro dia, é resiliência. Se, por um lado, a idade traz fraqueza física, por outro traz sabedoria.

Conta que, no passado, era difícil encontrar um profissional que quisesse trabalhar no setor de fígado. Hoje, no entanto, há tantos candidatos que é possível escolher a dedo, entre os melhores. Procura gerenciar a equipe com serenidade, como diz.

– Se eu perdia a calma, era internamente. Guardava comigo.

Quando surge um doador, não há tempo de muito preparo. O médico já precisa estar preparado antes do aviso.

– O cirurgião precisa se isolar do mundo, esquecer dos problemas que ele tem e entrar na cirurgia como uma imersão.

É preciso tomar decisões que podem custar uma vida: renovada ou perdida. Conta da mulher que não estava em condições clínicas muito boas, quando apareceu um fígado compatível em ótimas condições.

– Olha a decisão! Resolvemos fazer! Ela ficou ótima.

E do seu vizinho, que se tornou paciente, passou pelo transplante e, desde então, há oito anos, passa a vida viajando na meta de aproveitar da melhor forma seus dias.

Por todas as vidas que vê se renovarem, tem uma lista com milhares de motivos para incentivar a doação de órgãos. Cita alguns:

– Fazer o bem para o próximo é um grande motivo. Mas eu também vejo esse lado da história: e se um dia você precisar de um órgão? Você vai precisar de um doador. A gente deve sempre se colocar no lugar de quem precisa. E é preciso tornar sua vontade de doar pública, avisando à família.

Ele explica que 80% dos pacientes que passam por procedimentos no fígado são “cirurgias altamente complexas, por doenças de possível prevenção”, em suas palavras, principalmente álcool e hepatite B.

Dá o exemplo, então. Garante que cuida do fígado, pratica exercícios, leva uma vida saudável, como já era de se imaginar.

Conta, orgulhoso, que em 2007 ganhou o título de cidadão ribeirão-pretano, pela cidade que escolheu para ser sua.

– É um dos títulos que prezo muito!

Desde 2013, depois que sofreu um enfarte, deixou de operar. Enfrenta também uma doença autoimune, que afeta os movimentos do braço. Aos 68 anos, continua como coordenador do setor que criou, além de chefe da Divisão de Cirurgia Digestiva do Hospital das Clínicas. Atende pacientes, participa de congressos, dá aulas pelo Brasil todo.

Diz que, quando se aposentar, vai parar com todas as atividades e, quem sabe, passar os dias a viajar, como aquele paciente. Talvez por isso, não tem prazos, então, para essa tal aposentadoria.

– Eu me sinto realizado. Como médico, professor, pai, filho. Mas sempre temos alguma coisa a mais para fazer na área profissional.

Se emociona mais de uma vez durante a entrevista. Nunca para falar da parte técnica, na qual coloca toda sua concentração. Sempre para falar das coisas de dentro.

– A gente acha que, com o tempo, vai ficar mais endurecido. Pelo contrário. Hoje eu me emociono por coisas mais simples.

Para um médico que escreve poesias, tem fé, viveu a ditadura política e criou um legado, a vida é busca por igualdade:

– É utópico, mas se todos tivessem oportunidades iguais, se meus filhos não tivessem oportunidades diferentes da maioria da população… O transplante ensina isso para a gente. É o maior exemplo de cidadania que se pode existir: por ser como é, financiado pelo estado, todas as classes sociais têm o mesmo direito.

Não havia problema capaz de parar aquele primeiro e tão esperado transplante. E as centenas que vieram – e continuam a vir – depois dele.

 

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