Para Sandra, solidariedade é herança de família

2 agosto 2018 | Gente que faz o bem

Sandra não é de rodeios. Para defender o que acredita, expõe suas opiniões. Se achar preciso, compra briga sem pensar duas vezes.

– Eu estou sempre me despindo, me mostrando do jeito que eu sou. Não sou morna. Sempre escolho um lado.

Foi definindo os lados que queria escolher bem pequena. Sua história se entrelaça com a história de sua família, com os percursos de seu pai. Ele está em todas as memórias que ela compartilha.

– Meu pai sempre teve um olhar para os menos favorecidos. Se via alguém com frio, tirava a própria blusa e entregava. Eu cresci numa família de muito aprendizado.

Começa, então, contando a história que cresceu a ouvir.

O pai, caçula de oito irmãos, perdeu a mãe aos dois aninhos. Quando criança, ia à estação de trem de Santa Cruz da Esperança para esperá-la voltar.

– Diziam que ela tinha viajado…

Aos 17 anos, ele perdeu também o pai, com quem tinha uma forte união. Veio para Ribeirão Preto em busca de uma irmã. Até conseguir encontrá-la, no entanto, viveu em situação de rua.

Depois, passou a trabalhar muito e a ter um teto. Conheceu a mãe de Sandra, se casaram e voltou a estudar, no curso de “madureza”.

Entrou para a Polícia Militar e, mesmo com as dificuldades financeiras, fez curso de Direitos e Letras.

– Ele tinha orgulho em dizer que nunca precisou dar um tiro. Defendia as prostitutas, os moradores em situação de rua, quem precisava.

O pai também não pensava antes de defender suas ideias. Como fez quando o dono de um famoso bar ofereceu um lanche feito com restos dos pratos a um morador em situação de rua.

– Meu pai interviu. Não aceitava esse tipo de coisa. Não permitia violência, agressão.

Sandra, também caçula, foi a quinta filha da família. Quando a mãe estava grávida dela, em 1974, seu pai foi preso pela ditadura militar acusado de subversão.

– Minha mãe achou que ele tivesse abandonado a família porque a viatura ia buscá-lo todos os dias em casa, no horário de trabalho. Como se não soubessem que ele estava preso…

O pai nunca entrou em detalhes sobre a tortura sofrida. Mas depois que conseguiu voltar para casa, teve um infarto e passou os anos que teve de vida se recuperando do sofrimento.

– Ele não gostava de passar em frente ao quartel…

Sandra grupo "Os excluídos" Ribeirão Preto

Sandra Maria da Silva, 44 anos, cresceu ouvindo essa história – e outras tantas que o pai lhe contava. Muita coisa pôde vivenciar.

Diz que, com as contas sempre muito apertadas tudo em casa era regrado. O tênis era o mais simples e sobremesa artigo de luxo. Um frango assado tinha que servir os pais e os cinco filhos em um almoço de domingo.

– Mesmo assim, nunca vi meus pais reclamarem de nada.

Conta que no inverno o pai entregava um cobertor a cada filho. O objetivo era doar a quem estivesse nas ruas, passando frio.

A família deu continuidade à ideia mesmo depois que o pai faleceu, 21 anos atrás, por um câncer.

E há dois anos, depois de muita doação, Sandra transformou o ato familiar em ação social.

– A gente comprava os cobertores todo inverno, mas a cada ano crescia a demanda e estava saindo das nossas finanças.

Ela fez, então, uma postagem no Facebook convidando as pessoas a doarem também, para que a tradição familiar tão antiga não tivesse fim.

Além dos cobertores, conseguiu pão, leite e criou um grupo. “Os Excluídos” teve o nome inspirado em toda história do pai que tem tanto orgulho em compartilhar. Teve a iniciativa dela, que também escreveu sua história pautada pelo que acredita.

O grupo conta hoje com 29 voluntários cadastrados em whatsapp e toda quinta-feira leva doações e carinho a moradores e animais em situação de rua.

– Ninguém está na rua porque quer. Ninguém sofre a marginalização e o preconceito por livre e espontânea vontade. Eles querem nosso abraço. E nós abraçamos. Querem se sentir importantes enquanto pessoas.

Sandra grupo "Os excluídos" Ribeirão Preto

Sandrinha, como é conhecida, se formou em Direito e é especialista em processos. Sua atuação, entretanto, vai além do horário comercial.

Organiza doações para ONGS, coordena o grupo “Os excluídos”, tem ação intensa – e conhecida – entre os animais abandonados de Ribeirão Preto.

– A questão dos animais também é saúde pública. Muita gente diz: ‘Tem tanta criança precisando, vai cuidar de animais?’. Mas são essas pessoas que não fazem nada: nem pelas crianças, nem pelos animais. Nós vamos deixar um animal sofrendo porque tem pessoas sofrendo? A gente tenta fazer o possível pelos dois!

Em casa, Sandrinha tem dois bichos. Todos os dias, entretanto, conta que percorre as ruas alimentando animais que não têm para onde ir.

Nas noites de quinta, em que o grupo sai para distribuir os cobertores e o lanche, levam também ração de cães e gatos para os bichos que estão nas ruas.

Toda semana, então, entregam cerca de 250 pães, 30 litros de leite, 30 garrafinhas de água, de 10 a 12 quilos de ração de cachorro e dois quilos de ração.

Saem por volta das 22h30 e retornam para casa quando já é madrugada. As ações se sustentam por doações, bazares, eventos e, muitas vezes, pelo próprio bolso dos participantes, como ela diz.

Os voluntários têm atenção especial com os idosos que, como Sandra relata, vivem em pontos excluídos da cidade – diferente dos moradores em situação de rua que se unem em grupos nas praças.

– Eles são solitários. Ficam em locais onde, normalmente, os grupos que prestam ajuda não chegam. Nós vamos até eles.

Segue fazendo o que aprendeu tão cedo.

– Fazer o bem? Eu sinto que é uma obrigação porque eu tô recebendo. Não posso deixar terminar em mim. Se eu recebo tanta coisa boa por que não compartilhar?

Sandra grupo "Os excluídos" Ribeirão Preto

Sandra compartilha a história que a avó contava.

Trabalhava como lavadeira em uma casa de família rica. Ao fim da jornada, a patroa lhe entregava um saco de pães embolorados com a recomendação: “Leve para os seus filhos”.

A avó chegava em casa e chorava. Jogava os pães no lixo: lugar para onde o estragado deve ir.

– Muitas vezes, o que se doa é o sujo, o quebrado. É quando você se coloca num nível muito maior do que quem está recebendo. E é muito perigoso. A gente não é mais. Muitas vezes somos menos. Eu não sei se eu conseguiria ficar meia hora em uma situação de rua como a deles.

Por tudo isso, ela tem a resposta bem pensada para as críticas que recebe. Há quem diga que ajudar moradores em situação de rua é mantê-los na rua.

– Aquilo que incomoda você não quer ver. As atitudes dessas pessoas estão mais ligadas ao incômodo do que ao desejo de solidariedade e justiça social. Nós não temos culpa. Nós suavizamos por alguns instantes a solidão dessas pessoas que estão nas ruas. Para realizar esse trabalho nós temos que estar despidos de julgamentos.

Entre os tantos ensinamentos do pai, está o dito popular “caixão não tem gaveta”. Sandrinha segue acreditando. E preenche a vida distribuindo o que acredita.

– Eu não consigo ter felicidade plena sabendo que alguém está sofrendo pela minha acomodação.

Conta que já depois que o pai morrera encontrou um bilhetinho em suas coisas. Não sabe se a frase é dele ou veio de algum pensador: “Seja reativo e pró ativo. Não espere acontecer”, dizia o escrito.

Continua, então, tendo passos a seguir. A solidariedade é sua maior herança.

 

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