Pelo teatro, Felipe se aceitou e passou a combater preconceitos

19 setembro 2018 | Gente que inspira

Entre o vai e vem do Calçadão de Ribeirão Preto, um homem todo azul encanta. Só se mexe quando há inspiração. A criança que se aproxima, a mulher que pede um ‘oi’, a jornalista que convida para uma entrevista.

É uma estátua de coração nada duro. Descubro nos primeiros minutos de conversa.

O “azulzinho” como seu personagem ficou conhecido entre quem passa no Centro, tem ‘históriazona’ para contar. No aumentativo, em contraponto ao apelido.

A estátua foi inspirada no personagem Don Lockwood, de Gene Kelly, no filme Cantando na Chuva. Felipe Silva conta que na primeira vez em que encenou no Calçadão uma chuva bonita caiu. E o ato ficou completo, sapateando para expulsar de vez a timidez.

O teatro tem sido um percurso de descobertas para o jovem que completa 24 anos nesta quinta-feira (20). Quando mostrou para o mundo que é um ator, encontrou forças para deixar de se esconder.

– Eu não me aceitava. Vivi o bullying por ser negro e por ser gay. A minha aceitação veio através da arte.

A estátua azul que encanta quem passa é movimento por dentro. Em seu silêncio Felipe guarda o grito contra o preconceito.

Em mês de prevenção ao suicídio, Setembro Amarelo, ele conta que já tentou tirar a própria vida por acreditar no que as pessoas diziam.

– Eu fui uma criança gay e negra. E foi muito difícil. Minha autoestima foi muito machucada. Tudo o que eu fazia parecia ruim, feio. Eu não conseguia olhar no espelho.

Pela arte, pôde compartilhar o caminho com iguais. Trocar angústias. E se encontrar – esse processo profundo que nunca acaba.

– Diferente da sua opinião, é minha realidade. As pessoas acham que ser homofóbico é matar alguém. Mas não é só isso. Dizer coisas como ‘Volta para o armário’, ‘Não precisa se aparecer tanto’, ‘Não traz seu namorado em casa’, também é homofobia.

A estátua azul no Calçadão de Ribeirão Preto tem tudo isso para contar. Quem imagina?

Estátua viva calçadão Ribeirão Preto História do Dia

Felipe começa pela história que lhe antecede. A mãe, ele conta, é exemplo de garra.

– Ela é doméstica. Criou os quatro filhos sozinha. É minha bússola, meu xodó.

Veio de um cenário de luta. E logo percebeu que não seria fácil.

– Eu sempre me soube gay.

Assim como sempre teve vontade de seguir o caminho das artes.

– Mas eu não sabia dos meus direitos. Que poderia conseguir cursos gratuitos. Que poderia ser artista. Eu só ouvia as brincadeiras homofóbicas: ‘Se fizer teatro, vai virar veado’. Era uma luta dentro de mim.

De família muito religiosa, encontrou na igreja um norte para o caminho, mas também um polo de angústia.

Parou a escola na oitava série, depois de repetir de ano. Diz que o bullying foi um dos motivos. E que nessa época tentou tirar a própria vida algumas vezes.

– Uma vez uma amiga me disse ‘Mesmo que você entre na fila da beleza, você não fica bonito’. Me machucou muito. Várias vezes eu tentei e pensei em me matar. Minha cabeça era uma confusão.

Começou a trabalhar na época em que deixou a escola. Em seu percurso, já deu banho em cachorros, entregou panfletos, foi segurança de condomínio.

Aos 18 anos, morou em Porto Alegre, como missionário da igreja, que era a segunda casa da família. A orientação sexual foi escondida a gritos.

– Eu brigava muito, gritava muito e praticava a homofobia. Reproduzia o discurso homofóbico para me esconder. Causei muita frustração nas pessoas.

Estátua viva calçadão Ribeirão Preto História do Dia

Quando voltou da missão, aos 20 anos, a família estava enfrentando dificuldades. Foi em busca de emprego novamente. E diz que não encontrava mais acolhimento na religião.

– Havia muito julgamento, ao invés de ajuda. Minha mãe deixou de ir e eu continuei. Mas era cobrado porque não levava minha mãe comigo.

Relata que em um momento de muita angustia e oração recebeu uma “mensagem”.

– Era uma aula de estudos bíblicos e a professora disse que Deus pedia que a gente guardasse um mandamento para o próximo ano. Eu guardava todos os mandamentos. Era muito certinho. Só não guardava a sexualidade. Casar com um homem era dito do diabo. Eu orei e pedi para Deus uma forma de guardar isso. Orei muito. E depois de um tempo ouvi a música do Legião Urbana que diz: ‘Mentir para si mesmo é sempre a pior mentira’. Eu entendi que era uma mensagem Dele. Parei de ir na igreja. Meu corpo é minha igreja.

Depois de muitos começos e recomeços em empregos diferentes, Felipe descobriu que havia um curso de teatro no Senac, dois anos atrás. Conseguiu uma bolsa e, de imediato, se encantou pelo atuar e pelos companheiros que fez no caminho.

– No curso, nossas peças sempre tinham o tema da sexualidade, do preconceito, do ser negro porque eram questões que a gente precisava entender. A minha aceitação foi através da arte. Comecei a pesquisar, a estudar tudo isso.  E a ver que eu sou bonito.

Em novembro do ano passado, fez sua primeira performance. Recitou o poema: “Me gritaram negro”.

– Era mês da consciência negra. E foi lindo. As pessoas vinham desabafar, compartilhar comigo o que já sofreram.

Em dezembro recebeu o convite para ser estátua viva no Calçadão, com o grupo de estátuas vivas de Ribeirão Preto. Montaram um presépio e Felipe foi um dos reis magos.

Logo começou a encenar o personagem sozinho. E a pensar seu próprio personagem. Diz que foram quatro meses de produção: montar o figurino, encontrar o mesmo tom de azul para a pele e para as roupas e, principalmente, se encorajar. Começou entre junho e julho.

– A rua é o lugar mais democrático do mundo. Você se sente acolhido, ao mesmo tempo em que não se sente acolhido.

A chuva que caiu no primeiro dia foi incentivo e sinal de que tudo iria dar certo.

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Agora, ele trabalha como estátua praticamente todos os dias da semana. Aos finais de semana, faz da feira livre na avenida Portugal seu palco. Ou viaja para cidades da região. Também faz parte do grupo Maracatu Chapéu de Sol.

É uma estátua que responde aos chamados. Explica que, no começo, ficava inerte a qualquer pedido. Depois, percebeu que poderia fazer diferente.

– Uma vez uma moça ficou me pedindo muitas vezes: ‘Fala comigo?’. Eu não falei e ela estava indo embora triste. Então, eu respondi e ela começou a pular de alegria. Eu percebi que que as pessoas sentem falta do olhar, do contanto, do entender.

Se mantem com o que ganha pela sua arte. E, então, fica mais difícil investir em outros personagens. Mas não deixa de fazer planos para eles.

Conta que está terminando os estudos no supletivo, fazendo curso técnico de fotografia e tem uma porção de planos para o futuro. Quer levar a militância para as fotos e, depois, compartilhar a profissão.

– Eu quero poder ensinar algo para outros LGBTTS, para que ninguém precise ficar na margem. Quando a pessoa se assume a primeira coisa que a família faz é mandar embora de casa.

Estátua viva calçadão Ribeirão Preto História do Dia

Tem muitas realizações a comemorar. E outras tantas a conquistar.

– Eu me sinto realizado até o ponto em que eu estou. Por quem eu me tornei. A estátua me trouxe tranquilidade, calmaria. Há a meditação de voltar para dentro. Eu me sinto feliz. Mas tem muito para conseguir.

Sonha alto. Quer fazer música, TV, cinema: tudo o que a arte proporcionar.  O principal plano, entretanto, é continuar sendo quem é: por completo.

Ele teve receio de revelar história na entrevista.

– Há muito preconceito. Eu tenho muito medo do olhar que as pessoas vão ter. Mas eu resolvi falar porque acho que é necessário. Vai abrir portas para pessoas como eu, que não têm representatividade.

Hoje, recebe carinho de gente de todo tipo no Calçadão. As crianças pedem foto e abraço, os apressados esquecem um pouco do relógio, os moradores em situação de rua querem estar por perto.

– A arte sensibiliza. Traz uma troca. Vem para encantar a alegrar.

Espera, entretanto, que as pessoas continuem a vê-lo com o mesmo carinho quando conhecerem o que mora no silêncio de estátua.

 

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