Em memória: Saulo Gomes morreu nesta quarta-feira, dia 23 de outubro de 2019. Esta história, publicada pela primeira vez em 25 de maio de 2017, é nossa singela homenagem.
[vc_row][vc_column][vc_column_text]No ano passado, ele prometeu parar quando 2017 chegasse. Pegar a mala e sair viajando com a esposa. Quem sabe ver o tempo passar?
O novo ano chegou. Ele lançou biografia e lotou a agenda de palestras, eventos e homenagens.
A promessa, mais uma vez, foi descumprida pelo dever que norteou 61 anos de carreira:
– Eu respeito as limitações da idade, mas, sempre que posso, continuo praticando o jornalismo.
Quem sabe a promessa fica para o ano que vem, quando entra para a casa dos 90.
Anos 89 anos, o jornalista Saulo Gomes tem livro escrito na gaveta só esperando lançamento, diz que “ainda é um sonhador”, deixa a quietude na promessa.
No saguão onde é homenageado em um shopping de Ribeirão Preto, recebe imprensa, convidados, alunos de escola.
É tanta história para contar que rendeu livro com 395 páginas, escrito pela jornalista Adriana Silva. As fotos e recortes do saguão são aperitivo, convite a conhecer bem mais.
Ele combateu a ditadura, foi preso político, fez rádio, TV, entrou em lugares onde pouca gente teria coragem de entrar, se arriscou tantas vezes que hoje pode afirmar:
– Não tenho medo da morte. Não tenho aos 89 e não tive aos 30 anos. Por isso fiz tudo o que fiz, pondo em risco a própria vida.
Entre os tantos títulos que ganhou, tem um preferido: “O repórter do Chico Xavier”. Acompanhou o médium que difundiu o espiritismo no Brasil por mais de 30 anos.
– Ele passou 24 anos afastado da imprensa. Era avesso a entrevistas. Nos tornamos amigos e confidentes.
Diz, com orgulho de inflar a voz, o resultado dos 106 processos judiciais dos quais foi alvo em seis décadas de jornalismo investigativo:
– Fui absolvido porque para todas as minhas acusações eu apresentei provas.
A história é tanta que virou biografia e homenagem. Esse texto é aperitivo. Convite a conhecer bem mais!
Saulo começou a fazer Jornalismo aos 28 anos.
O jornalista que perde as contas dos prêmios que recebeu não terminou o Ensino Médio. Aprendeu a ser grande com prática e leitura, já que a situação familiar impôs o trabalho aos 13 anos e teve que deixar a escola.
A primeira reportagem foi feita em 1956, depois de ganhar um concurso para repórter da Rádio Continental, Rio de Janeiro. No mesmo ano, foi escalado para cobrir férias do setorista político. E definiu o caminho a percorrer:
– Cobrindo os escândalos políticos eu descobri a veia da reportagem policial e investigativa. Marcou a minha vida.
Foram, então, incontáveis reportagens de vanguarda: cobriu tiroteio, sequestro, passou duas semanas viajando em uma jangada, resgatou reféns, entrevistou o general responsável pela prisão de Che Guevara, provocou o cenário político, perdeu o emprego três vezes pelas reportagens feitas.
Em 31 de março de 64, dia do golpe militar, à frente da Rádio Mayrink Veiga, ele reuniu pessoas de combate, levou para o estúdio e passou 24 horas transmitindo protestos ao regime militar.
No dia 1º de abril, os militares invadiram a rádio de maneira nada amigável e Saulo deixou o Brasil em exílio no Uruguai. Passou sete meses exilado e, quando voltou, foi preso por um ano e meio.
– Eu fui o primeiro jornalista proibido de exercer a profissão pelos militares.
Recomeçou em São Paulo. A tortura psicológica que sofreu, no entanto, teve efeito reverso do pretendido pelos torturadores.
– Eu não me calei. Iniciei uma campanha espinafrando o governo. Arrisquei minha vida para mostrar a realidade dos jangadeiros.
Nessa reportagem, feita logo após deixar a prisão, ele se aliou aos jangadeiros em busca de melhores condições. Passou duas semanas em alto mar, sem que sua esposa soubesse, sequer, se ele estava vivo ou morto. E provocou o presidente Costa e Silva, conseguindo a atenção do governo.
Quando começa a relembrar os momentos com Chico Xavier, muda o ritmo.
– Com o Chico, eu começo a falar de amor.
Saulo participou do programa Pinga-fogo, que se eternizou como registro do médium em rede televisiva. Reportou o trabalho de Chico Brasil afora.
– Até 1968, o espiritismo era tratado como ‘casa do demônio’. Com as reportagens, o Brasil passou a conhecer as lições de Chico, a respeitar o espiritismo. A minha maior felicidade é saber a lição de amor que eu trouxe pelo Chico Xavier.
Escreveu dois livros, criou laço para a vida toda. Hoje, faz palestras sobre Chico Xavier Brasil afora. A pergunta, ele diz, é sempre a mesma: Saulo é espírita?
– Sou repórter. Repórter não deve influenciar seu público declinando qual é seu time, ideologia política e religião.
O jornalismo que faz quebrar as promessas de calmaria está sempre à frente.
E como está o Saulo Gomes do presente? O jornalista em seus 89 anos?
– O Saulo de hoje ainda é um sonhador.
Há três anos e meio, é presidente da Associação Brasileira de Anistiados Políticos. Nessa semana, esteve em Brasília. Diz que alertou os demais integrantes sobre o fato de já estar com 90 anos, pensando em “respeitar as limitações da idade”.
Não houve qualquer manifestação por mudanças. Saulo – com toda sua história de combate – segue na presidência.
Acorda cedo, lê todos os jornais que couber na sua manhã, tem na esposa a companheira. É ela quem dirige, quem acessa e-mail e quem – acredite! – passa para o computador todos os escritos do jornalista, autor de quatro livros à mão.
Saulo diz que não tem intenção de amizade com o mundo virtual.
Veio de um outro tempo de jornalismo.
– Eu vejo o jornalismo de hoje com muita tristeza. Não se dá apoio, condições de trabalho ao repórter investigativo. O repórter investigativo é um profissional em extinção.
Sabe bem o que o jornalismo de corpo e alma lhe causou.
– Eu renunciei a muitas coisas. Não vivi minha juventude como os outros jovens. Minha família sofreu. Eu não vi filho nascer, cheguei atrasado no casamento de uma filha. É tudo doloroso.
Ainda hoje, evita falar da família, pela insegurança de outrora.
– Sempre escondi minha família por medo dos desafetos.
E tudo isso valeu pena?
– O resultado está aí!
Aponta para o saguão do shopping, repleto de homenagem.
Saulo é, de fato, um jornalista em extinção. De um jornalismo que não há mais. Haverá um dia?
– Eu vivi um período de ouro no jornalismo. O período de ouro vai e volta. Mas quando vai voltar eu não sei…
Promete parar quando 2018 chegar.
Logo relembra o livro engavetado pronto para a publicação, os 14 assuntos que não citou na biografia e ainda quer citar, a necessidade de compartilhar com a atual geração de jornalistas a esperança do “período de ouro”.
Quem sabe a calmaria fica para 2019, quando já tiver passado dois anos da casa dos 90?
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Acho que impressionante a carreira de Saulo Gomes que é desconhecida da maioria de nós, mesmo porque, ele um dos raros cidadãos que não tem medo de investigar e divulgar a verdade. O conhecimento sobre sua vida e obra veio devido a sua obra de divulgação do Chico Xavier, principalmente, do fabuloso programa Pingo Fogo de 1971, um divisor de águas sobre a divulgação do espiritismo no Brasil,
Saudações,
Orlando
Estava começando no jornalismo e, acabei amiga da família de Saulo Gomes. Claro que o brilhantismo do réporter me fez admirá-lo em muito.Realmente ele foi de uma era de ouro do jornalismo, dedicado, corajoso, justo e muito competente.
Vai fazer muita falta. Que siga num caminho de luz.