França já era França antes de nascer. Veio com apelido de fábrica.
Conta que “naquela época” era comum as famílias homenagearem os parentes nos nomes dos filhos. Em homenagem à irmã do pai, que era Francisca, ficou certo que o nome seria Francisco José Musse.
A mãe, porém, não queria o apelido de Chico.
– Ela, então, decidiu me chamar de França. Já nasci França.
Pensa que também já nasceu músico. Porque tudo o que diz de si vem com um toque musical.
Fala da música e dos músicos com um quê de enciclopédia. Como quem passou a vida a estudar o que tanto ama.
Hoje, ele é um dos raros músicos que tocam escaleta em Ribeirão Preto – instrumento de sopro e teclas. Aprendeu sozinho, como a percussão. Dos 10 aos 16 anos, pôde fazer aulas de acordeão com um maestro: foi a base para prosseguir sozinho.
É também um dos representantes do chorinho na cidade. Difícil quem nunca tenha lhe ouvido tocar em um barzinho de Ribeirão Preto. Desde que começou a aprender música, nunca mais parou. Hoje, aos 75, soma 65 anos fazendo música com bandas, trios, grupos.
O chorinho, ele não nega, é o estilo preferido. Ganhou até música com seu nome. Diz que a composição de “França no Choro” é do maestro Horvildes Simões. E guarda a partitura, de folha já amarelada pelo tempo, junto com a escaleta.
– A música me emociona muito. Eu chego a derrubar lágrimas escutando uma boa música.
É tão contagiante que até o cachorro da casa, Dentinho, entra no ritmo. Quando França começa a tocar a escaleta, Dentinho se aproxima e, em uivos, parece cantar.
– A música é universal. Os povos se entendem e se emocionam através da música.
Dentinho mostra que a emoção chega, até mesmo, ao mundo animal.
França nasceu em Minas Gerais, mas está em Ribeirão desde os três anos de vida.
Veio com os pais e os irmãos. Na época, eram em cinco filhos. Ele foi caçula por 10 anos, até nascer a “rapa do tacho”.
Conta que, por aqui, a família viveu em cortiços. Não tinham geladeira, o fogão era de lenha e o tanque era dividido com outras seis famílias.
Mesmo assim, a mãe trabalhava como lavadeira e ninguém reclamava.
– Meus pais formaram os filhos e nos deram condições de sermos alguém. Todos venceram na vida. Muito ou pouco: isso não importa.
Quando França já estava com 10 anos, o pai se tornou construtor de uma companhia, onde também trabalhava um italiano que era maestro. O pai não teve dúvidas.
Quando jovem, havia tocado baixo tuba na banda de Alfenas, cidade onde vivia. A mãe de França sabia tocar bandolim. A música, então, veio de herança.
França e o irmão passaram a estudar música com o maestro. O irmão aprendeu sax e ele acordeão. Estudou até os 16 anos, quando o professor se mudou para São Paulo, e avisou:
– Ele disse para o meu pai que já havia passado para mim tudo o que sabia.
França estava pronto para sair por aí a tocar. E não demorou a fazê-lo.
Com o irmão, que já estava com 18 anos, a banda estava formada: “Irmãos Musse e seu conjunto”. A empreitada durou dois anos. França fez 18 foi para o exército.
Voltou, no entanto, ainda mais empenhado a tocar.
Quando fez 22 anos, montou o conjunto Capri, que na época, década de 60, ficou conhecido por Ribeirão, região e até cidades de outros estados, onde faziam shows.
No pôster de divulgação, que ele tem em detalhes na memória, não teve falsa modéstia: “Garantia de sucesso para o seu baile”. Havia como resistir?
Foram seis meses de ensaio antes de lançarem o conjunto. O primeiro baile que fizeram no Dante Alighieri – França não esconde – teve o prestígio de apenas dois casais. Os oito músicos, trajando smoking no tão esperado show, não pararam de tocar.
– Tocamos como se a casa estivesse lotada.
Prenúncio do que iria ocorrer menos de um mês depois.
– Na quarta semana de show, a casa estava cheia. Ficamos um ano e meio tocando lá com a casa assim! Muita gente ainda lembra… muitos casais se conheceram lá, se casaram!
O Capri durou, mais ou menos, sete anos.
Aos 29, França recebeu uma boa proposta de emprego em uma multinacional de produtos farmacêuticos e começou a viajar para vendas. Ficou 14 anos no emprego.
A música continuava, mas aos finais de semana. Na estrada, porém, não faltaram trilhas sonoras. Foi o cenário para uma das suas principais histórias com a música.
Conta que rodava de cinco a seis mil quilômetros por mês em um Fusca, acompanhado do toca fitas.
– Quando Elis Regina gravou “Fascinação”, em 1975, com arranjo de Cesar Camargo Mariano, foi um negócio fantástico!
O encantamento foi tanto que França gravou o lado inteiro de uma fita cassete com a música.
– Era meia hora ouvindo só Fascinação.
O caminho ficou – bem – mais fascinante!
Depois que deixou a multinacional, abriu restaurante, lanchonete, carrinho de lanche. Nos horários livres, continuou fazendo seu choro.
Um dos grandes parceiros de roda foi o músico Caburé, que, para ele, é “o último boêmio de Ribeirão”.
Como os negócios não deram certo, França voltou para as vendas. Viajava o Brasil todo com representante de uma revista.
Só se aposentou 10 anos atrás, com 65. E pôde, então, se dedicar inteiramente à sua grande paixão, como nos dias de outrora.
Participou de um projeto de samba no Sesc, intensificou as cantorias nos bares de Ribeirão e passou a integrar bandas e grupos de chorinho.
Recentemente, passou a compor o Quinteto Atemporal, que não toca só choro, mas não deixa faltar o ritmo no repertório. Integra também o grupo “Os chorões” e, toda segunda-feira, é músico de prestígio no Projeto Choro da Casa, que leva chorinho à praça XV.
Na semana passada, participou do tributo de 100 anos de Jacob do Bandolim, no teatro Pedro II. Eu mesma não consegui conter a emoção com o choro de sua escaleta.
– O chorinho traduz muito da capacidade musical do brasileiro. É um tipo de música que exige um conhecimento musical muito grande. Foi difundido no mundo todo. É aquele orgulho que a gente tem de ser brasileiro e entender de música!
Fala, então, sobre a criação do chorinho, os maiores “chorões” do Brasil, dando o pódio para Pixinguinha, e cita os representantes do choro na atualidade.
Diz que quando está tocando não se deixa transportar para lugar algum.
– Eu procuro fazer o melhor possível. Então, fico muito ligado no que os músicos estão fazendo.
Hoje, seu instrumento principal é a escaleta. Que aprendeu a driblar.
– Eu tenho a mão muito grande e o teclado da escaleta é pequeno. Mas acabo dando um jeito!
Não nega, porém. O instrumento preferido ainda é o acordeão lá do início.
Depois que o conjunto Capri acabou e os instrumentos foram vendidos, ele não teve mais um acordeão só seu. A escaleta e a percussão, então, são as formas de continuar fazendo a música que ama.
Aos 75, aliás, não cogita parar.
– Até quando vou tocar? Ah, até quando eu estiver por aqui.
O cachorro Dentinho foi adotado por ele e pela esposa há cinco anos.
Chovia e o cão, pequenino, estava perdido debaixo de um carro. Colocaram para dentro e buscaram alguém para adotá-lo, mas ninguém apareceu.
– Ficamos com ele!
Hoje, os uivos do cachorro são parte do ensaio.
Ninguém – mesmo – resiste a um bom chorinho!
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Orgulho em ser filha do França! Obrigada por registrar essa bela história de vida. Gratidão!