No Samu, Wislaine salva vidas. No Samuzinho, ensina a salvar

9 abril 2020 | Histórias do Proac 2019/2020

Vale a pena ler de novo. História publicada pela primeira vez em 8 de maio de 2017.

 

Todo ano, era a mesma tradição. Wislaine, seus irmãos e seus pais saíam na madrugada e caminhavam de Ribeirão Preto à Jardinópolis, pela fé em Bom Jesus da Lapa.

Aquele agosto foi diferente, porém. Era 1992 e Wislaine estava com 16 anos. A procissão corria bem, mas um homem foi atropelado.

A menina agiu por impulso.

– Eu corri para ajudar. Peguei um saco plástico e fiquei segurando o pé dele até a ambulância chegar. Fiquei encantada de poder estar ali ajudando!

Decidiu ali seu futuro. Não quis, sequer, esperar o ensino médio terminar.

Fez curso técnico em enfermagem junto com a escola e, quando o terceiro colegial chegou ao fim, teve dois motivos para celebrar.

– Eu queria trabalhar na área o mais rápido possível!

Assim foi. Começou atuando em hospitais e prestando serviços particulares.

A grande vocação era para o setor de urgência e emergência, entretanto.

Em 2007, realizou o grande sonho profissional: passou no concurso para o Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência).

Além de salvar vidas, Wislaine também encontrou no órgão uma forma de passar conhecimento à frente, com a implantação do Samuzinho.

Hoje, junto a outro enfermeiro, ensina 84 crianças sobre importância dos primeiros socorros e a grandiosidade da profissão de socorrista.

Ela mostra a redação que uma das alunas fez para levar na escola. O tema era “heróis anônimos” e a pequena escolheu falar de Wislaine que, para ela, é a maior heroína que existe.

– Isso é gratificante. Olha… não tem preço!

No dia desta entrevista, Wislaine estava há mais de 30 horas sem dormir. Emendou o plantão com os estudos e os cuidados da casa.

O que para a maioria parece impossível, é rotina para a socorrista.

Ela se desdobra entre os plantões noturnos, a faculdade de enfermagem que decidiu concluir aos 41 anos, o carinho com o marido e os dois filhos.

E não reclama.

– Não me sinto totalmente realizada. Quero fazer muita coisa ainda. As pessoas perguntam: ‘Você quer abraçar o mundo?’. Eu quero!

Entrar para o Samu é parte do abraço.

Por esse sonho, ela recusou vaga conquistada em outros concursos e aprendeu a conviver com as pernas bambas e o coração disparado da adrenalina constante.

– Você faz a diferença entre a vida e a morte. Um primeiro socorro bem dado é determinante. Na hora que acontece, você faz o que tem que fazer. Depois é que pensa sobre o que viu.

A lista de histórias marcantes é extensa. Nela, há desfechos tristes e felizes.

Wislaine aprendeu cedo que a morte faria parte do seu dia-a-dia. O homem atropelado lá na procissão, que fez a menina decidir seu futuro, morreu depois do resgate.

Entre as tragédias do dia-a-dia, ela vê o ser humano transformado em nada, em segundos suficientes para esfacelar toda uma vida.

– A gente quer estar no local para salvar. Quando a pessoa se recupera, é gratificante.

Se apega aos bons desfechos e na busca por consegui-los mais e mais.

E, entre tanta tragédia, se emociona com a vida que pulsa.

Conta que já fez dois partos na ambulância, o último deles há três anos.

A mulher estava em trabalho de parto e não deu tempo de chegar ao hospital. Wislaine sentia a perna tremer, mas ignorou o nervosismo e agiu.

– O parto normal é normal. Você só ampara. O bebê vem sozinho.

Com a menininha no colo, se emocionou.

– Eu sou muito emotiva. Choro, sim. E faço meu papel. Conseguir fazer o seu papel é muito bom.

 

A ideia de implantar o Samuzinho em Ribeirão Preto surgiu em meio à mata fechada, tendo que caçar a própria comida.

Wislaine fez um treinamento de resgate e selva em Belém do Pará. Entre os aprendizados de sobrevivência, conheceu um projeto social que oferecia atividades às crianças do local.

– Não via a hora de chegar e implantar o Samuzinho!

Começaram em 2011, com 20 alunos. Hoje, são 84 crianças de 6 a 13 anos, divididas em duas turmas.

Wislaine e um outro enfermeiro cuidam de todo o projeto sozinhos, como voluntários.

Os filhos dela, que hoje têm 17 e 12 anos, participaram da primeira turma e agora ajudam a mãe a continuar o trabalho.

As aulas são aos sábados. Wislaine destaca que, se houvesse apoio governamental, o conhecimento seria compartilhado com mais e mais crianças.

– A procura é cada vez maior! Nós não conseguimos atender todo mundo.

O Samuzinho é mais uma parte do abraço de Wislaine ao mundo.

– Ver os olhinhos dessas crianças brilhando é incrível. Elas se descobrem. Deixam o curso com vontade de ser médicas, enfermeiras, socorristas ou simplesmente com o conhecimento de primeiros socorros. Elas podem salvar vidas!

E conta da menina que sempre para quando vê um acidente, do menino que ajudou a socorrer alguém, da criança que entrou quase sem falar e saiu super comunicativa.

– Eu vejo nessas crianças um pouco de mim. É uma realização!

Wislaine diz que muitas vezes, de folga em casa, ouve a sirene que avisa de uma ocorrência tocar no seu ouvido. O trabalho está com ela a todo momento.

Pelo contato intenso com a fragilidade humana, se tornou mais cautelosa.

E soube lidar com situações graves.

Os dois filhos nasceram prematuros, na época em que a socorrista trabalhava em hospital. Ela conta que, pelas experiências que já tinha vivido na área de pediatria, conseguiu lidar melhor com a situação.

Também foi assim quando o filho, já com quatro anos, prensou o dedo na máquina de moer cana. Quando o cunhado sofreu acidente de moto, Wislaine chegou primeiro que a ambulância. E também soube como socorrer o amigo que estava infartando.

– Eu não peço ajuda para ninguém. Mas todo mundo que me conhece, em uma situação difícil, liga para mim. É porque sabem que eu sei o que fazer. É tão mínimo para você e significa tanto para alguém!

Wislaine tem uma porção de planos. Quer terminar a faculdade, ver o Samuzinho crescer, quem sabe trabalhar no Exército ou na Marinha.

Salvar vidas, porém, vai ser sempre a parte maior do seu abraço ao mundo. O que liga todos os outros planos, em um único propósito.

Nesse agosto, vai à Jardinópolis rezar por Bom Jesus da Lapa. Diz que não passou um único ano sem ir – mas agora vai de carro.

– Na minha vida, tudo sempre esteve encaminhado.

Agradece pelo caminho que se mostrou lá em 1992. Renova a fé que acalma o coração cada vez que a sirene toca. E tenta salvar mais alguém, sempre com a esperança de conseguir.

 

*Crédito: a foto do Samuzinho é da fotógrafa Kelly Tanaka

 

Assine História do Dia por R$ 13 ao mês ou faça uma doação de qualquer valor AQUI!

Nos ajude a continuar contando histórias! 

Compartilhe esta história

0 comentários

Outras histórias