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Vale a pena ler de novo! História publicada pela primeira vez em 28 de junho de 2018!
No vai e vem apressado do Calçadão, a guitarra de Pedro faz os passos desacelerarem e congela o olhar.
“Pedro Afonso, raízes do asfalto, guitarrista cego”, diz a plaquinha à sua frente.
Sem a visão, ele sola nas cordas, acompanhando a música que toca no radinho. Só aí, já mora muita história.
Conversando com Pedro Afonso Graciotti a gente descobre, entretanto, que há muito mais a se contar.
Antes de perder a visão, ele vivia a pressa das pistas, como corredor profissional. Cresceu em Santos, entre muito surf e pouca preocupação com a alta miopia diagnosticada na infância.
A doença é apontada como uma das principais causas da cegueira no Brasil. Os médicos avisavam que esportes de impacto poderiam acelerar a degeneração causada pelo descolamento da retina.
– A gente sempre acha que vai não acontecer. Não com a gente.
Aos 37 anos, ele – atleta profissional, três casamentos, 5 filhos – ficou cego. E, então, foi preciso começar do zero.
– Acordar e não ter o que fazer, não se sentir útil, é o pior tipo de morte. A vida precisa ter sentido.
Encontrar novo sentido foi processo de muitas etapas.
Pedro, cego e guitarrista, se casou pela quarta vez com uma mulher que também tem deficiência visual. Os dois tiveram uma filha e criam a pequena sozinhos.
A música surgiu quando a revolta parecia tomar conta do coração. Os acordes, então, conseguiram ser mais fortes do que as dores.
Tocando guitarra, ele retomou as forças.
– Meu professor gravou até um CD comigo! Eu me senti o Pepeu Gomes. Pensei em pintar o cabelo em sete cores. A gente precisa ter um motivo para acordar e sair da cama!
A guitarra que faz os passos desacelerarem e os olhos congelarem sustenta sua nova vida. No bolso e na alma.
A pergunta – que já havia sido feita dezenas de vezes – dessa vez partiu da irmã: “O que a gente precisa fazer para ele voltar a enxergar?”.
O médico, já cansado de responder, partiu para a conduta do choque: “É caso encerrado: ele não vai voltar a enxergar!”. E deu duas opções, que ainda hoje, cerca de 13 anos depois, reverberam na cabeça de Pedro:
– Ele disse que eu poderia ir para casa, chorar, xingar Deus e tentar me matar. Ou procurar uma associação de cegos para aprender a viver melhor.
Escolheu a segunda, mas não sem revolta.
Decidiu se separar da esposa, que não tinha deficiência visual, por entender que ela iria sofrer se o casamento continuasse.
– A primeira coisa que você se sente é um estorvo, um lixo. Você não é, mas pode virar.
E deixou a cidade de Registro, onde vivia, para morar na Associação dos Cegos de Ribeirão Preto.
Pedro conta que era corredor profissional, com patrocínio grande e coleção de boas colocações. Começou a correr na adolescência e viajou Brasil afora pelo esporte.
Foi preciso deixar tudo no ontem.
– A melhor escolha que eu fiz na vida foi morar na associação, com outros cegos. Foi onde aprendi a me virar: pegar ônibus, atravessar a rua.
O aprendizado não levou tanto tempo. Tempo maior dura o preconceito.
A grande dificuldade de Pedro sempre esteve nas reações regadas a pré-conceitos.
– Sabe quando você se sente capaz e as portas todas se fecham? A pessoa diz: “Você não pode fazer isso, porque não enxerga”. Ela me culpa pela ignorância que ela tem. Não sou eu que não sei fazer. É ela que não sabe que eu sei fazer.
Conheceu a esposa em uma sala de bate papo pela internet, cerca de oito anos atrás. Grande passo no processo de dar novos sentidos à vida.
– Sim! Cego também usa a internet! Por que não?
Para que o namoro fosse para frente, foi preciso enfrentar, além do preconceito, a família da jovem, que não queria que ela saísse de casa. Principalmente, para se casar com alguém com deficiência visual.
– Eu praticamente a roubei!
Em toda história que Pedro conta há uma pitada de alegria.
Os dois estão casados há cinco anos. E há dois e meio nasceu a pequena que fez Pedro questionar novamente seus limites.
– A preocupação foi grande. Mas o tempo me mostrou que não era um bicho de sete cabeças. A gente nunca falou para a nossa filha que somos cegos, mas ela sabe. Ela nos orienta, pega a bengala para a mãe. Ganhou alguns livrinhos e pega na nossa mão para que a gente sinta as páginas. Como? Eu não sei!
A dificuldade de arrumar emprego fez com que, quatro anos atrás, o comportamento fosse tomado por agressividade. A esposa é psicóloga, mas também não consegue trabalhar na área. Para Pedro, o único motivo é o preconceito.
– As pessoas me davam “bom dia” e eu já perguntava “bom dia por que?”. Eu me sentia inútil. Não queria levantar da cama, porque não tinha motivos.
A associação sugeriu, então, que Pedro tivesse acompanhamento com uma terapeuta ocupacional.
A primeira sessão foi marcada por alfinetadas.
– Eu já cheguei avisando: ‘Não vou vir aqui montar caixinhas’. Mas ela entendeu que minha agressividade não era com ela, mas com a situação. E me perguntou: “O que você quer fazer?”.
A primeira ideia foi tocar viola caipira, mas logo o professor indicado viu que Pedro era mais rock´n roll do que moda sertaneja.
A amizade com o professor de guitarra ficou tão forte que a gravação do CD foi surpresa. Ele pedia que Pedro tocasse, enquanto colocava para gravar.
No final, entregou o presente que hoje o aluno vende durante suas apresentações no Calçadão de Ribeirão Preto e de outras cidades.
– A música me ajudou de várias formas. Deu norte para a minha vida.
O plano de tocar guitarra como profissão surgiu no Calçadão de Ribeirão Preto. A esposa estava grávida e as dificuldades de Pedro para conseguir emprego continuavam as mesmas.
Ele andava pelo calçadão quando escutou o som de uma sanfona. Trombou na moça que tocava e foi logo se desculpando: “Eu tenho deficiência visual”.
A moça respondeu que também tinha e os dois engataram uma conversa!
– Quando cheguei em casa, vi a guitarra, a caixa de som, as contas chegando e pensei: Por que não?
Há cerca de três anos, então, Pedro toca guitarra nos calçadões. Começou em Sertãozinho, onde vivia na época. Depois da reconciliação com a família da esposa, passaram a morar em Presidente Prudente, cidade dela.
E, então, todos os dias, Pedro segue a rotina:
– Eu levo minha filha na creche e vou para o Calçadão de Prudente. Ali, conheço muita gente. Cada pessoa tem suas histórias! O dia a dia não deixa a gente se interessar pela história do outro. Mas a música mexe com todo mundo.
Quando vem com a esposa passear em Ribeirão Preto, traz a guitarra, a caixa de som e leva sua música – e sua garra – ao calçadão da cidade.
Foi assim que nos conhecemos, em um sábado de muito vai e vem.
Pedro, 51 anos, confessa: antes de ficar cego, não se atentava com a necessidade de entender o outro.
– O meu botão do “foda-se” ficava ligado 24 horas por dia. A gente só cria consciência quando passa pela situação. Precisamos viver para valorizar.
Hoje, briga para fazer as pessoas entenderem:
– Eu não sou melhor e nem pior do que ninguém.
Ele e a esposa moravam no quarto andar de um prédio. E tiveram que brigar para as pessoas entenderem que não havia nada de mal nisso.
– Eles quiseram despejar a gente, porque cego não pode morar no quarto andar. Mas por que?
Todas as vezes que alguém lhe diz “coitado”, rebate com questionamentos:
– Por que coitado? As pessoas chegam a ser cruéis com o que falam!
Garante que se soubesse antes para onde a vida iria lhe levar, repetira os mesmos atos, sem desvios.
– Essa é a minha história. É preciso viver para saber que é realmente aquilo. Não quero uma transferência de história.
Depois que ficou cego, diz que desenvolveu outro novo gosto. Coloca vídeos com palestras de filósofos no Youtube e escuta a narrativa de livros por um aplicativo no computador.
– Isso tudo me faz pensar. Abre os horizontes.
Aprendeu a entender a vida além do que os olhos podem mostrar.
“Pedro, raízes do asfalto, guitarrista cego”: quanta história mora nos acordes que congelam os passos do Calçadão!
*Quer traduzir essa história em libras? Acesse o site VLibras, que faz esse serviço gratuitamente: https://vlibras.gov.br/
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