Clique no play para ouvir a história:
Macalé mostra a maleta de madeira lotada de materiais de pintura de todo tipo.
– Hoje eu me vejo como um pobre cara rico. Porque eu tenho pincéis e tintas.
Começou a pintar com um único pincel e cinco tubos de tinta usados, que o patrão do irmão descartou. Sem conhecimentos técnicos, colocava o sentimento que morava dentro nas telas que confeccionava em casa – porque não tinha verba para comprar.
– O preconceito é uma coisa que está impregnada em mim. Na minha pele.
Antes de se tornar um artista conhecido por todo estado de São Paulo, Jaime Domingos Cruz, o Macalé, era alguém lutando, na sombra do preconceito.
O menino que nunca era convidado sequer para lavar a piscina do patrão, como seus amigos brancos. O jovem que assistia aos carnavais que aconteciam no porão do Theatro Pedro II pela abertura da ventilação. O homem que não podia transitar no quarteirão paulista.
O atleta que tinha muito potencial, mas não pôde continuar competindo nas corridas de bicicleta porque precisava colocar comida em casa.
– Quando eu comecei no ciclismo tinha um cara intitulado como treinador, mas ele não treinava todo mundo. Eu estava me destacando, mesmo com uma bicicleta simples. E um dia ele me disse que eu deveria fazer atletismo, porque precisava só de um tênis, camiseta e calção. O filho dele corria. E depois eu fui entender que, na verdade, ele não queria perder para um negro. De 15 atletas, dois, três eram negros. E eu era o único que tinha destaque.
Hoje, ele mostra orgulhoso as bicicletas que guarda no ateliê. Diz que tem oito bikes, duas equipadas para corrida, como um dia pensou que seria impossível conquistar. Quatro anos atrás, já aos 74, foi pedalando de Ribeirão Preto a Brodowski. Coisa de honra, sabe?
Mais que as bicicletas, porém, se orgulha de ter um teto seu, onde guardá-las. Seu pai e seus avós não tiveram um pedaço de terra para deixar de herança.
– Para o negro, tudo é mais difícil. Mas eu nunca parei de lutar. E está havendo uma transformação. Eu mesmo não pude estudar e nem meus filhos, porque não tinha como pagar faculdade. Mas minha neta está fazendo faculdade. Todos os meus netos estão traçando um caminho bom. A maior herança que eu vou deixar para eles é o meu nome.
Macalé viu sua vida ser transformada pela arte. Pintava as dores negras, o preconceito, a desigualdade em arte naif. E encantou gente do mundo afora. Tem obras suas na Itália, Cuba e Japão. Além de outras espalhadas pelo Brasil.
Depois que se descobriu um artista, passou a integrar os movimentos da cultura negra em Ribeirão Preto, fez parte do grupo Travessia, organizou e integrou eventos, encontros, rodas de conversa sobre a valorização da cultura negra. Norteou sua trajetória contra o preconceito, que tanto o feriu.
Hoje, com 46 anos de carreira, entende que há ainda um longo caminho a percorrer. Mas celebra o que já foi conquistado.
– Antes eu não era convidado nem para limpar uma piscina. Hoje, eu posso nadar.
Tudo o que Macalé conta em sua história está registrado em recortes de revistas, jornais, panfletos, documentos que ele guarda em muitas pastas nos armários do seu ateliê. Aprendeu, bem cedo, que é preciso estar atento e forte.
– Se eu não tenho um documento, muitos acreditam, outros não.
Tem, até mesmo, recortes da década de 60, quando competia em corridas de bicicleta, com sua magrela improvisada.
Jaime Domingos Cruz nasceu em Orlândia, em família humilde. Seu pai trabalhava com máquina de beneficiamento de arroz. Sua mãe era dona de casa, cuidava dos cinco filhos e lavava roupas para fora.
Quando Macalé tinha oito anos, a família veio morar em Ribeirão Preto. Até então, ele não tinha o apelido. Quem tinha era um de seus irmãos, que trabalhava recolhendo bolinhas de tênis nas quadras de jogos e era chamado: “Corre Macalé, traz a bola!”.
Um dos seus primeiros trabalhos foi de entregador de jornais, aos 10 anos. Seu pagamento eram dez jornais, que tinha que conseguir vender para levar algum dinheiro para casa. Trabalhou também na colheita do café e da cana, como engraxate de sapato, entregador de marmitas e, já adulto, foi para a área de construção civil, como pedreiro e pintor de parede.
Macalé estudou até o quarto ano da escola e não pôde fazer faculdade, mas não deixou de se especializar. Mostra a coleção de diplomas que conquistou fazendo cursos gratuitos na área de construção civil e relações humanas.
Além do trabalho, um dos motivos que lhe fez desistir de frequentar as aulas foi o preconceito. Conta que passou por dezenas de escolas em Ribeirão Preto, porque recebeu também dezenas de expulsões. Ia para a briga com os meninos que lhe insultavam.
– A corda sempre arrebenta para o lado mais fraco. No caso, era eu.
Foi ainda adolescente que começou a paixão pelo ciclismo. Um amigo tinha uma oficina de conserto de bicicletas e, depois do trabalho na usina de cana, Macalé passava por lá. Ficava ouvindo as histórias das corridas e foi se encantando.
Em um Natal, o amigo ganhou uma bicicleta nova e reformou a antiga para que Macalé pudesse também começar a correr.
– Fomos até Brodowski! A estrada era toda de terra. Eu gostei tanto! Vi que tinha fôlego.
Começou a participar das competições e, mesmo com uma bicicleta simples, que o amigo ia melhorando conforme sobravam peças, conseguiu se destacar.
Ganhou, assim, o apelido de Macalé, pelas pessoas que conheciam seu irmão: “Ô, Macalezinho”, eles gritavam, então, na pista. Ele diz que não sabe o que significa o nome, no entanto. Correndo, Jaime era notado.
– O ciclismo era um jeito de as pessoas me verem. Era a única coisa na qual eu me destacava.
Ganhou medalhas, mas a dificuldade para equipar a bicicleta era grande. Para continuar, precisaria comprar um veículo apropriado para as competições, que na época custava um preço que ele não podia pagar. Já casado, aos 25 anos, foram chegando os cinco filhos, que se tornaram a prioridade.
– O meu muro eram seis, sete litros de leite por dia que o leiteiro deixava!
A pintura surgiu, então, inspirada pela filha mais velha, que hoje tem 52 anos. Macalé estava ensinando a pequena, com cinco anos, a desenhar. E foi tomando gosto.
O irmão resgatou os tubos de tinta que o patrão havia descartado, Macalé confeccionou algumas telas e as primeiras pinturas saíram, em 1973.
Um amigo foi quem deu o empurrão para que a arte fosse vista. Em visita à casa do artista, incentivou: “Poxa! Está muito bacana! Por que você não leva na Praça XV?”.
Uma feira de artesanatos era realizada aos finais de semana na praça da região central. Com o incentivo do amigo, Macalé decidiu tentar. Não foi de primeira, porém.
– Alguns riam, mas outros queriam comprar.
Quando vendeu sua primeira tela, sentiu que deveria continuar. Conseguiu com uma obra mais do que o salário que ganhava em um mês trabalhando como pedreiro.
Mas o incentivo maior veio por um jornalista, que passando pela feira notou a riqueza do trabalho de Macalé e lhe convidou para uma entrevista na rádio.
– Foi um sucesso! No outro domingo, todo mundo veio falar!
A repercussão foi tão boa que o mesmo jornalista teve a ideia de organizar uma exposição pública das telas.
– Eu nunca mais parei!
A arte abriu caminho para o que Macalé sentia, mas não sabia ser possível expressar. Ele passou a integrar o grupo de teatro Travessia e a se apropriar de um espaço que sempre fora seu.
– Eu comecei a entender o que eu vivia, a perceber o preconceito e a lutar pela cultura afro, pela valorização das raízes.
O grupo se apresentava, entre outros lugares, na praça XV, onde até pouco antes os negros não podiam pisar. Macalé participou de movimentos e esteve entre o grupo que acampou no Theatro Pedro II, após o incêndio que levou quase tudo ao chão, em 1980.
Houve uma iniciativa para demolir o que havia sobrado e integrantes dos movimentos culturais fizeram vigília em frente ao patrimônio histórico para impedir a ação.
– Nós ocupamos o que era nosso. O que é nosso.
São centenas de recortes de jornais e revistas, panfletos rememorando as mostras, eventos, apresentações das quais ele participou, sempre como um artista negro, com a valorização da cultura afro.
Entre as décadas de 80 e 90 coordenou um projeto com crianças, no Museu do Café. Aos domingos, ministrava oficinas de pintura e argila e lotava o espaço público de criançada. Aparece em uma foto rodeado de umas 50 delas, e diz orgulhoso:
– A turma foi crescendo! Veio muita gente conhecer.
Também precisou de garra para fazer a ideia dar certo. Buscou apoio do poder público para a compra de tintas e pinceis, mas o que recebeu era insuficiente. Começou, então, improvisando os pinceis com varetas e algodão. E, depois, pensou em uma forma definitiva de resolver a escassez de materiais.
– Tá vendo esse monte de pincéis? Eu é que fiz!
Passou a produzir seus próprios pinceis com sisal e bambu. Foi um sucesso com a criançada!
Em 1978, chegou a ter uma loja de decorações, mas diz que não aguentou um ano de portas abertas, por falta de capital. Por muito tempo, então, dobrou turnos entre o trabalho com as artes e a construção civil, até conseguir viver do que ama.
Marcou a data em que começou a construir sua casa, no Monte Alegre, pela morte de uma grande intérprete: janeiro de 1982.
– Foi no ano em que a Elis morreu.
Conta, orgulhoso, que levantou sozinho cada tijolo.
– Ainda estou construindo! Não está terminada.
Há alguns anos, foi homenageado pela paçoca de carne, iguaria que seu pai lhe ensinou a fazer e ele aprimorou, com carne de sol, temperos, farinha. Conta que serviu o prato em muitas exposições e bares de Ribeirão, mantendo as raízes.
– A gente comia com a mão, como era a tradição.
Macalé, aos 78 anos, custa a entender o preconceito.
– É para se pensar… todo mundo é ser humano e tem o mesmo sangue vermelho correndo nas veias. Mas é porque a pele é diferente… as pessoas se acham mais importantes pela cor da pele, mas não veem o coração.
Batizou uma de suas coleções de telas por “O sol nasceu para todos” e trata das diversas desigualdades. Os casarios, desenhados em uma porção de quadros representam tanto a casa própria, que seus antepassados não puderam conquistar, quanto as favelas, lares de muitos negros.
– Meus sentimentos estão nas minhas obras. Eu pinto as memórias, os preconceitos, as barreiras sociais.
Ele acredita que, não fossem essas coisas todas, poderia ter outro reconhecimento.
– Se tivesse uma igualdade, eu poderia estar mais à frente com as minhas obras.
Mas aprendeu bem cedo a não abandonar a corrida.
Atualmente, está tentando organizar seu acervo, catalogar as telas, para, quem sabe um dia, fazer um leilão.
– A arte mudou minha vida porque eu consegui ter um lugar ao sol. Pequeno, mas consegui. Tenho orgulho quando falam de Macalé.
Hoje, já não faltam tintas, pincéis, telas em sua grande maleta de madeira. Garra, porém, nunca lhe faltou. Foi ingrediente tão abundante que nunca coube em maleta. Macalé é história de luta. Parte de Ribeirão.
Para conhecer mais sobre a obra de Macalé clique AQUI.
*Quer traduzir essa história em libras? Acesse o site VLibras, que faz esse serviço gratuitamente: https://vlibras.gov.br/
Assine História do Dia por R$ 13 ao mês ou faça uma doação de qualquer valor AQUI.
Nos ajude a continuar contando histórias!
Que história linda! Quanta garra!
Tive a alegria de participar das oficinas de arte no Museu do Café quando era criança, e hoje trabalho com ilustração e dou aula de desenhos para os pequenos.
Guardo com carinho aqueles momentos felizes onde podíamos criar sob a tutela do Macale, e que me incentivaram a continuar desenhando pela vida.
Obrigado Macale!
Assinado:
Neto do Carlinhos
Adorei a historia e ja tive o prazer de conhecer algumas obras dele. Parabéns.
Parabens. O Diretorio Academico de Historia da Barao(turma de 1989) promoveu um vernisage, com o Macale. Houve tambem a famosa pacoca de carne no pilao.
Macalé um grande exempo!
Tive a honra de trabalhar com o Macalé durante a reforma da sessão de História Natural do Museu do Café. Foram dias incríveis!! Na época eu era bióloga, mas ja amava as artes visuais. Hoje sou também fotógrafa e lembro com carinho tudo o que ele me ensinou: uma história de vida!
Meu filho fez muitas pinturas na Oficina no Museu do Café. Era uma delicia, eram vários artistas se expressando naquele lugar tão agradável. A sombra das árvores, eu colocava as folhas pintadas no varal para secar ao vento … boas lembranças!!! Ele tinha uma paciência com todos.