Vale a pena ler de novo! História publicada pela primeira vez em 9 de maio de 2018!
Não dá para prever um AVC. Está lá o cérebro, em plenas funções, quando POF: a veia é bloqueada (ou se rompe), a cabeça dói, o organismo entra em colapso.
Luiz Cláudio Jubilato, que não tem poderes sobrenaturais, não conseguiu prever o AVC em meio a um dia normal de aulas, seis anos atrás. Mas soube logo o que estava acontecendo dentro da cachola. E fez o cérebro, com bloqueio e tudo, continuar funcionando.
Escutou quando o médico avisou que ele poderia não aguentar a transferência de Ituverava para hospital de Ribeirão Preto. E “danou” a falar, como diz.
Era a única forma de se manter consciente.
No trajeto de 100 quilômetros, o professor convenceu o médico da ambulância a matricular a filha na sua escola de redação. E chegou lúcido à UTI, onde ficou por seis dias. Não se deixou apagar em um único deles.
Surpreendeu a equipe médica que, quando a alta veio, depois de 11 dias, chegou a uma conclusão:
– Eles entenderam que o fato de eu ter um padrão de leitura muito alto me manteve lúcido. Ler muito e ter muita coisa na cabeça.
O maior medo era a sequela que faz entortar a boca, chamada de “desvio de rima”. Decidiu logo que era preciso evitar o problema:
– Imagine um professor de redação com desvio de rima?
No hospital mesmo começou a planejar as crônicas que iria escrever quando saísse. Não era a primeira vez que a leitura transformava os seus percursos. E nem seria a última.
Mas até ele, que já vivia com as palavras romance tórrido, se surpreendeu com a capacidade da literatura em ser e dar vida.
Do AVC nasceu uma lista de crônicas, entre elas “Li para não enlouquecer” e “A leitura me manteve vivo”.
Do susto de quase morte, surgiu um Luiz Cláudio reaprendendo a falar, ficar de pé, andar e passando “a prestar atenção em coisas que não prestava antes”, em suas palavras.
O livro que acompanhou a recuperação foi “O visconde partido ao meio”, de Ítalo Calvino. Porque era assim que o professor se sentia.
O amor pela literatura não precisou renascer, ressurgir ou surgir. Esteve presente em cada injeção e apitar dos aparelhos de monitoramento da UTI.
Está presente desde que o menino Luiz Cláudio entendeu que nas palavras todo ser é ilimitado. E trocou a pobreza de dinheiro que foi cenário da infância pela riqueza do intelecto.
– Se não fosse a literatura, o livro, eu não seria quem eu sou hoje. Não teria me transformado em professor, que hoje transforma a vida de muitas pessoas.
Eu poderia, sem sentir o pesar do tempo, passar três dias conversando com Luiz Cláudio. Sei, é claro, que da nossa conversa iria nascer uma – quem sabe mais – crônica.
A pimenta é o tempero das palavras que habitam o professor.
Não se trata, porém, de malagueta, que parece existir só para arder. As palavras de Luiz são temperadas com dedo de moça, para que cheguem saborosas aos ouvidos de quem ouve ou aos olhos de quem lê. A pimenta vem na ironia, no espírito que coloca em cada verbo.
– Eu me divirto muito. A primeira coisa que a literatura faz é me divertir. Depois, vem um monte de outras coisas.
Luiz Cláudio cresceu em Juiz de Fora, Minas Gerais. O pai era carcereiro na penitenciária da cidade e a mãe bedel. As contas da casa ficavam sempre apertadas.
E, então, quando conseguiu a bolsa de estudos para o Colégio João XXIII, o menino passou a integrar periferia e elite, escolhendo o melhor dos dois mundos para apreender.
Os livros foram escolha rápida. Um grande amigo, que Luiz chama em uma de suas crônicas de “amigo irmão”, lhe emprestava os livros que o dinheiro da família não permitia comprar. “A idade da razão”, de Jean Paulo Sartre, foi a primeira paixão. Arrebatadora, como todas as primeiras. Luiz nunca mais deixou de ler.
Ia para a livraria de um amigo e pedia, diariamente, para dar “uma olhadinha” no mesmo exemplar, até terminar de devorá-lo. E quando faltavam livros, lia tudo o que caísse na mão. As novelas da irmã, assim, fizeram parte do repertório.
Com Machado de Assis, ele viveu história de amor e ódio. Ódio primeiro, não esconde. A professora Glaidys, que lhe fez ler Memórias Póstumas de Brás Cubas, só foi perdoada tempos depois. Luiz chegava a rasgar as páginas do livro, inconformado com as palavras que não entendia. Depois, leu a coleção machadiana inteira. Muitas obras mais de uma vez.
Ele pensava em se inscrever para a faculdade de Jornalismo, na vontade de ser escritor. Mudou de ideia nos minutos finais. E partiu para Letras, como só poderia ser.
Aos 18 anos já era professor. A professora mais velha barrou sua entrada na sala dos professores, onde o mais novo depois dele, com 18, tinha 46 anos.
“Aula vicia. Se você começar, não vai parar mais”.
A profecia se realizou. Luiz Cláudio nunca mais deixou a sala de aula. A maior preocupação, durante o AVC, era se recuperar para voltar à escola.
Deixou Minas para trabalhar em Araçatuba e, há mais ou menos 30 anos, está em Ribeirão Preto, onde abriu sua escola de Redação e Língua Portuguesa, com filial em 14 cidades e mais de mil alunos matriculados.
Ainda no hospital, com a parte esquerda do corpo paralisada, percebeu que não conseguia ler. A enfermeira explicou que, por causa da paralisação, o cérebro tendia a ler só o que estivesse do lado direito.
Passou, então, a fazer um exercício diário. Ligava a TV em filmes legendados e treinava o olhar, da esquerda para a direita.
– Em uma semana, eu estava lendo de novo!
Cerca de dois anos depois, voltou para a sala de aula. Escreveu “Aprendendo a voar caindo”, sobre as águias que atiram seus filhos do alto, para que aprendam a bater as asas.
Impossível listar todos os livros que leu em 57 anos de vida, a maior parte dela literária. Hoje, Luiz lê – entre as leituras para a escola e as por prazer – dois livros por mês.
Cem anos de Solidão, de Gabriel Garcia Marques, é o livro mais lido em toda vida. Não por ser seu preferido, mas por impressionar a ponto de querer, mais uma vez, saborear a história – ou a engolir, de uma só vez.
Dom Casmurro também tem seu fascínio. Assim como Guimarães Rosa e Umberto Eco.
Fez uma lista de 20 indicações e colocou também Mia Couto, Albert Camus, Pessoa, Saramago, Cervantes. É literatura que não tem fim. Ainda bem!
Para o professor, ler tem que ser divertido. Não decoreba ou resumo feito para responder perguntas prontas.
– Cada um faz a sua leitura. Acho complicada essa história de “O que disse o autor?”. Como é que você vai saber o que ele disse?
Literatura, para Luiz, é uma “obra aberta”.
– Cada um vai pegar o que, naquele momento, chama mais atenção.
Em sala de aula, diz que troca o título de “educador” pelo de “provocador”. E segue a linha nas crônicas com pimenta que escreve. Tudo vira crônica, na vida de Luiz Cláudio.
Textos que ele guarda e, vez que outra, pensa em fazer virar livro.
– A gente nunca lê o mesmo livro do mesmo jeito. Por isso, eu falo que é diversão. Não há nada mais divertido do que palavras. Eu nunca li um livro e saí sem um monte de perguntas.
Na Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto, o professor sempre ter participações mediando grandes autores, compartilhando suas ideias. Não será diferente neste ano. E ele espera que pelos muitos próximos.
Não dá para prever um AVC. Mas com as palavras que tanto ama, Luiz Cláudio aprendeu a remediar a vida.
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