Esta história foi narrada pela jornalista Daniela Penha. Para ouvi-la, é só clicar no play:
Beatriz Tofeti nunca se contentou com a primeira resposta apresentada a uma pergunta. E o que vem depois? Tem algo além? Foi questionando o mundo e descobrindo a si mesma entre as respostas. O processo, ela diz, nunca termina. Estamos em constante aprendizado. A inquietude move, transforma. Pronto: já estamos filosofando.
Mas qual seria, senão esse, o rumo da conversa com uma professora de filosofia?
A filosofia de Bia nunca esteve limitada a apostilas, tempo de aula, cronograma. Os encontros com seus alunos eram feitos de encantamento: teatros, vivências, leituras.
Mas qual seria, senão esse, o fazer de alguém que não quer estar na superfície?
– Não se ensina filosofia. Se ensina a filosofar. E filosofar, para mim, é buscar o equilíbrio e a paz na compreensão racional da vida, em qualquer sentido.
Saio da casa dela com as mãos cheias: livros sobre filosofia, artigos de jornal, recortes e uma marmitinha também. Pão caseiro, biscoitos, bombocados.
Bia é farta em tudo.
Me espera com uma mesa dessas bem extensas repleta de gostosuras arrumadas em louça branca e azul, no estilo café colonial. Toda a casa, no centro de Batatais, é assim. Paredes, móveis, fachada: tudo lembra o tempo de outrora.
Ela salienta, porém. Nada desse acervo é coisa sua. São feitos do marido que, depois de aposentar-se também como professor, decidiu colecionar itens antigos.
– Eu só suportei o Roberto e ele a mim por 56 anos porque ele guardava coisas e eu papel. Ele dizia: eu estou construindo palácios para você.
Brinca e complementa:
– Não imagino minha história sem o Roberto.
Não era bem isso que ela queria. Planejava sair a viajar depois da aposentadoria. Mas ele planejou ficar. E ela ficou também. Foi encontrando, então, sua maneira de preencher os dias. Yoga, muita leitura, mesa farta, bordados.
Não consigo imaginá-la bordando panos de pratos, calcinhas e cuequinhas para os bebês que vão chegar ao mundo. Bia tem uma modernidade de pensamentos que contrasta com os costumes de seus 78 anos. Pensa longe, além, profundo.
– Eu tento acompanhar o turbilhão no plano das ideias.
Em contraponto, se recusa a certos costumes da contemporaneidade. Fez um curso de informática e se certificou de não aprender nada. Se refere aos celulares, que não saem das mãos das netas, como “botõezinhos malditos”.
– Eu sou do milênio passado, não do século passado. Sou dinossauro. Cadê a individualidade? A capacidade de decidir? Conversar sem o botãozinho maldito é um momento privilegiado. Todos esses botõezinhos que eu não sei mexer e estão passando por cima da gente. Mas eu estou aqui ainda e tenho que fazer o possível para me adequar à situação.
As ideias são tantas e povoam a cabeça com tanta rapidez que ela corta as frases antes do fim. Começa a falar sobre algo e já passa para o próximo tema.
Faz questão de ilustrar o que diz. Enquanto estamos no escritório, não para sentada. A cada capítulo da história, busca fotos, documentos, livros, registros que materializam o discurso, desenham a memória.
Bem por isso, tem um tanto de coisas que não sabe precisar. Diz que “mora” no escritório. Entre todo o espaço da casa, escolheu uma sala pequena para fazer de lar, entre centenas de livros, recortes de jornal, documentos, fotos, cartas e alguns poucos objetos. Antes de me apresentar a seu canto, adianta:
– Nietzsche diz que o caos tem que ser permitido antes da nova ordem. Eu fiquei só no caos.
Logo na entrada, porém, uma plaquinha que foi aquisição da filha caçula: “Deus abençoe essa bagunça”. Está tudo perdoado.
Entre tudo o que diz, Bia coloca a saudade.
– É o que me norteia a vida. Um desafio.
A palavra que só existe no alfabeto brasileiro passou a existir na linguagem dela aos 19 anos. Perdeu o pai, grande companheiro, quando estava no terceiro ano da faculdade de Filosofia, incentivada por ele.
Foi ele quem lhe apresentou a Nietzsche, Rousseau, os grandes pensadores. Colecionava toda a obra de Rui Barbosa. Escrevia poesias sobre a vida. Pensou em ser médico, mas decidiu viver na roça, se casar com a mãe de Bia e criar os três filhos.
Beatriz Auxiliadora Barros Cardoso Tofeti cresceu, então, na fazenda, em Batatais, bebendo água da mina e colhendo fruta no pé. Na primeira escola que frequentou o recreio era no terreirão de café.
A mãe fez o funcionário do cartório alterar o registro de nascimento para que a menina não perdesse um ano na escola. Bia nasceu em 21 de julho de 1941, mas para entrar no ginásio era preciso ter completado 10 anos até 30 de junho. A mãe foi ao cartório: “Não vou deixar minha filha perder o ano por menos de um mês!”. Insistiu para que o funcionário riscasse a data, simulando uma rasura. “Põe embaixo, faz de conta que errou”.
Bia passou, então, a ter duas datas de nascimento: a que marca a chegada na vida e a que relembra o quanto a mãe se importava com seu aprendizado. Quando a escola da roça já não alcançava, a mãe aprendeu a dirigir e levava os filhos para estudar na cidade.
– Eu ganhei esse ano. Fui para a frente. Não ia aguentar esperar. Sou acelerada.
Aos 15 anos, começou a namorar Roberto Tofeti. Ele tinha 16. A família dela já havia se mudado da roça para a zona urbana de Batatais. Os dois decidiram estudar em São Paulo. Ele foi antes, ela depois. Passou em Filosofia na Sedes Sapientiae, faculdade da PUC difícil de entrar e de sair.
– Prestamos 18, passamos 14, se formaram cinco.
Vivendo em São Paulo, sentiu seu universo crescer.
– Eu aprendi que meu mundo não era nem aquela rocinha, nem essa metrópole aqui (Batatais). Estudar para mim era uma delícia. Eu vivia para aquilo.
Seus pais, cabeças abertas, tinham conduta diferente dos outros. No pensionato onde vivia, as demais jovens tinham que pedir autorização para sair. Ela não precisava. Podia ir e vir quando quisesse, mesmo morando na mesma cidade do namorado.
Em 1961, tempos que precederam a ditadura militar, teve que apresentar atestado da faculdade para comprar – e estudar – o manifesto comunista. Ainda guarda o exemplar: uma de suas muitas relíquias.
Conta que o carinho por Roberto foi crescendo aí. De família humilde, ele fazia Matemática, trabalhava, se sustentava e mandava dinheiro para casa.
– Era um mundo diferente do meu. Fortaleceu mais minha admiração.
Seu pai morreu em 1961, depois de tempos no hospital lutando contra doenças cardíacas.
– Eu levei um choque. Achava que fosse eterno, entende? Descobri a morte ali.
Não foi simples seguir. Ainda hoje, não é. Mas a vida anda para frente.
– Nietzsche fala que coragem tem quem admite o medo e o enfrenta. Sempre fui muito medrosa. Mas tive que enfrentar.
Se formou em 1962, voltou para Batatais e se casou com Roberto em janeiro de 1963. O primeiro dos quatro filhos nasceu em novembro do mesmo ano. Em 1965, nasceu o segundo e a família se mudou para Ribeirão Preto.
Em 1967, ela e Roberto passaram a dar aulas na Escola Estadual Otoniel Mota, que é dona de grande parte do seu coração. Começou também a lecionar em uma universidade.
– É minha paixão. Até para quem não quer aprender, eu quero dar aula. Esse ponto foi em comum entre eu e o Roberto.
Em 1971, a Filosofia foi retirada da grade escolar pela ditadura militar. Continuou lecionando na universidade até o nascimento da filha caçula, em 1973.
Decidiu que iria “criar os filhos”, como diz. Mas não conseguiu ficar completamente fora da sala de aula. Uma vizinha a convidou para dar aulas de catecismo na igreja. “Mas logo eu, que sou herege?”, respondeu. Aceitou, gostou e ficou por 10 anos antes de voltar para as escolas, em 1984.
Participou dos movimentos para a retomada da Filosofia nas grades curriculares e também da luta para a abertura de concursos públicos para professores do Estado.
Deu aulas em Araraquara antes de voltar para a Otoniel Mota, em 1988, onde ficou até se aposentar, em 2000. Nos teatros que produzia com os alunos, a crítica às ideologias dominantes, a reflexão e o questionamento iam para o palco. Entre os amigos, professores que compartilhavam das mesmas lutas.
– Nós procurávamos fazer uma educação que visasse o essencial, que fosse para todos. Eu tive esse exemplo de valores nos quais eu acredito, que é o amor e a verdade. E eu acredito que a verdade é uma coisa dinâmica.
Preferia o diálogo à bronca, como quando seus alunos estavam jogando truco no meio da aula. Deixou a lousa, foi até o fundo da sala e se sentou com eles: “Eu também sei jogar. E gosto! Vamos jogar? Mas não agora, na aula”. Se fez entender.
– Eu tentava mostrar como é difícil assumir responsabilidades.
Depois de tanto tempo, tanta luta, ainda vê a educação patinar.
– A capacidade de sentir e de pensar foi minada na base. Tudo é mercadoria.
Depois que aceitou o convite para contar sua história, Bia diz que começou a escrever suas memórias em um caderno bonito que fica na mesa do escritório. Tentativa de organizar as tantas vivências, registrar o tanto que foi vivido.
– Eu já vivi intensamente. Não consigo passar a limpo nem meus pensamentos, nem a vida, nem os meus cadernos.
Ela só se aquieta quando deixamos o escritório e nos sentamos na mesa, tomando chá e degustando gostosuras que providenciou na padaria onde compra há anos, da prima que faz tudo com receita caseira, da amiga querida. Até o biscoito de polvilho tem afeto:
– Os meninos só comiam desse quando criança. Não tem conservantes.
Depois que ela e Roberto Tofeti se aposentaram, em 2000, voltaram a viver em Batatais. Ele, colecionando coisas. Ela, preenchendo o tempo do que não foi.
– O homem é um ser que avalia e transforma aquilo que é naquilo que deve ser.
Roberto partiu em agosto de 2018, de repente. Acordou passando mal, ela foi preparar um leite, ele quase caiu na cozinha. Se apoiou nela.
A casa e o antiquário que ele construiu em frente ficaram ali. Bia também continuou a ficar. Diz que uma sobrinha que mora na França lhe convidou para ir passear. Agora, não pensa mais em viajar. Decidiu que tem muito a ler, muito a descobrir nos registros que o pai deixou.
– Quando eu volto e repenso, repenso era isso que eu tinha que fazer. Vou fazer o que eu quero: ler, conversar, ter privilégios como esse, de estar conversando com você, tomando café.
Sua maior preocupação está em ser, da forma mais completa que puder.
– Repartir o que você pode repartir. O prazer está em repartir. E o meu medo é que eu não consiga repartir direito. A gente sonha que é mais do que consegue ser. Meu maior defeito é o orgulho. O complexo de ser Deus, sem ser.
Acredita em Deus. Mas não em um Deus único, que sirva a uma só crença.
– Sou contra a representação da verdade absoluta, que não existe. Tudo é Deus. É força, energia.
Entre seus livros, estão pensadores de todas as crenças. No pescoço, carrega uma medalha de santo Expedito, das causas impossíveis, porque foi presente do filho.
– A fé é apostar no mistério. Alguém já disse que é a distância entre a razão o infinito.
Não tem medo da morte, “nem um pingo”, mas da vida. E, então, continua fazendo.
– Eu tenho que fazer, tenho que viver.
Na yoga, diz que é “sempre repetente, mas nunca desistente”. Há como não se inspirar?
– Eu acredito que a gente está aqui cumprindo uma função. A gente é que cria o significado da vida. Eu sou eu e minha circunstância. Eu sou eu e os outros no mundo. Minha circunstância é isso. E nesse intercâmbio, o que realiza é amar as pessoas.
Não terminamos, claro. Fomos convencidas pelo relógio de que era hora de parar. Na despedida, ela cantou uma estrofe de Caetano que diz que não estamos partindo, mas, sim, preparando a hora de voltar. Algo assim.
Fui embora, mas trouxe um pedacinho dela comigo. Ou vários: livros, recortes, pães, bombocados e o que não se pode tocar. Essa parte, está bem protegida, do lado de dentro.
Nota do coração
A história de Bia, para mim, veio como presente de uma amizade que já é presente. Como pode um só alguém multiplicar a alegria? Beatriz Tofeti é mãe da jornalista Ana Cândida Tofeti, minha amiga, parceira de projetos e, nos últimos anos, aquela que diz quando é hora de respirar fundo, relevar e “se abrir para o novo”. Depois de conhecer Bia, entendi ainda mais a essência de Ana: gente do bem, que não se contenta com a vida sem o sonho. Qual seria, senão esse, o caminho de alguém que nasceu e cresceu no amor?
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Parabéns! Lindo relato de uma história inspiradora!!
“O prazer está em repartir. E o meu medo é que eu não consiga repartir direito. A gente sonha que é mais do que consegue ser”. Sábias palavras de Beatriz.Também desfrutei de uma longa conversa com ela! Minha admiração já era imensa. Agora, então, transborda!!!?..Bendito seja o que Beatriz diz ser seu maior defeito: querer ser Deus.Talvez seja daí que nasça a nossa criatividade!!
Obrigada pelo carinho e parabéns por escrever tão bem as histórias do dia!!!!
Meu Deus!!!! Daniela fala de uma pessoa que eu amo e nunca imaginei ser tão parecida com ela. A placa “Deus abençoe essa bagunça “ tb descreve uma parte da minha história, assim como convencer alunos que fazemos parte de um mesmo tempo e espaço, que precisa ser respeitado. Estou emocionado com essa narração. Vi e reconheci minha madrinha, da qual me sinto como uma “partezinha”. A bondade, o amor, a empatia, o se doar….um ser de muita luz. Emocionada!!!!!!!!
Parabéns Daniela, pela linda história do dia sobre BEATRIZ TOFETI … Confesso que me emocionei mto pois tive a honra de participar de algumas passagens ali descritas … compartilhei mto da minha infância e parte da minha juventude com ela… somos prima de sangue e irmãs de coração … Daniela vc realmente soube com palavras carinhosas é verdadeiras expressar a grandeza que existe na alma da Bia . Obrigada pela oportunidade que me deu em reviver nosso maravilhoso convívio…
Muito obrigada, Maria! Uma honra poder contar essa história!
Parabéns pela sensibilidade e lindo texto Daniela. Você traduziu bem a D. Bia. Sou privilegiada por fazer parte de um pedacinho da vida dela e da Aninha. Adoro seus textos. ?
Que prazer imenso ler sobre essa grande mulher.
Que tenho como exemplo é admiração.
Eu tb quero sentar na mesa do café com ela , é curtir as suas lindas memórias.
Lindo Dani, Tia Beatriz é uma fofa e você conseguiu captar toda a essência que a envolve!!