Esta história faz parte do projeto “Força Italiana”, iniciativa da Casa da Memória Italiana, produzido em parceria com o História do Dia. Para conhecer mais acesse www.casadamemoriaitaliana.com.br!
No retrato de despedida, a grande família estava reunida em Licata, Itália. Vinte e três pessoas e um cachorro no adeus fotografado de Francesco em 18 de agosto de 1954.
Depois, já sozinho no navio Castel Bianco ele fez mais um registro da partida que não teve volta. Deixou a Itália, aos 30 anos, para esquecer a tristeza da guerra e reconstruir sua história. Trouxe sua pátria bem dentro de si, porém.
Registrou em fotografia cada momento da trajetória. Era uma forma de mostrar para a família, que ficara lá na Itália, que sua empreitada estava dando certo. Hoje, é memória documentada, saudade amenizada.
Construiu no Brasil um pedacinho da Itália. Escolheu Ribeirão Preto para abrir sua “Bella Sicília”, em memória à região de onde saiu. O coração, desde o dia em que subiu naquele navio, se tornou dividido. Francesco Cammilleri foi um italiano que escolheu amar o Brasil e construir aqui sua família. Mas o fez relembrando, todos os dias, suas raízes.
A Bella Sicília é uma das mais tradicionais cantinas de Ribeirão Preto. Há 60 anos, desde que abriu as portas, o negócio é administrado de maneira familiar.
Francesco, a esposa Sílvia, o cunhado Carlos Alberto Papa, e os filhos, Francisco Carlos e Salvador Bruno, fizeram do espaço um aconchego. Nas paredes, estão as fotos, registros, lembranças da trajetória familiar.
– Meu pai foi um homem de muitas homenagens!
Diz o filho Francisco, enquanto mostra as honrarias recebidas pelo pai. Título de comendador, carta do Senado Italiano, diploma de pioneiro no comércio do Centro de Ribeirão são só algumas das muitas.
Na trilha sonora, canções italianas. Na massa, a tradição que perpassa as gerações da família. O cardápio é feito de receitas das “nonnas”, das “mammas” e dos filhos também, que hoje estão à frente do negócio.
– Isso que é o mais importante, né? O amor da família. Imagine que minha mãe fazia macarrão todo dia? Ela tinha até o rolo de abrir que trouxe da Itália. Depois, sossegou. Pegava pronto na Bella Sicília.
Nas palavras de Sílvia Papa Cammilleri.
Francesco foi pioneiro na gastronomia ribeirão-pretana. Trouxe pizza brotinho, massas para comer na hora ou levar para casa e o frango assado, com filas na porta do primeiro espaço que abriu, na rua Barão do Amazonas esquina com a General Osório, região privilegiada do Centro de Ribeirão, em frente ao Cine Centenário, em 1959.
– Ele era uma enciclopédia. Muito esperto e inteligente. Lembrou que tinha visto a máquina de frango assado em São Paulo, pesquisou onde vendia e mandou trazer. Quando chegou, aquela máquina bem na esquina, pensei: ‘Meu Deus do céu, quem vai cuidar disso aí?’.
O cunhado e companheiro de jornada Carlos Alberto Papa relembra de cada conquista em detalhes. Logo, todos estavam adaptados à máquina e ao movimento, cada vez maior. Carlos conta que eles chegavam a vender 60 frangos em uma manhã de domingo.
– A gente colocava 30 frangos de cada lado da máquina. Às 12h já não tinha mais.
Francesco fazia questão de estar sempre presente, com a “mão na massa”, em literalidade. Só poucos anos atrás ele topou fechar às segundas-feiras. E há cerca de quatro anos passaram a fechar no dia de Natal e Ano Novo, como conta Carlos.
Até então, trabalhavam de segunda a segunda.
– Ele não queria desgostar o freguês. Tinha que se desdobrar.
Já com mais de 90 anos e a saúde um pouco debilitada, continuava indo diariamente à cantina. Se sentava no caixa e recebia a clientela, sempre com sorriso no rosto.
Também fazia questão de temperar o tomate seco com as próprias mãos. Os filhos ajudavam a chegar até a cozinha, as funcionárias auxiliavam, mas o tempero era dele. “Esse tomate é feito com a minha mão. Tudo que é feito com a mão, com amor…”, disse em entrevista ao História do Dia em junho de 2017, três meses antes de falecer.
Seu último domingo foi na Bella Sicília. Teve uma queda da cadeira onde sempre ficava. Faleceu alguns dias depois, em 9 de setembro de 2017, aos 93 anos. Os filhos, a esposa e o cunhado continuam mantendo tudo como sempre foi. E como pretendem que continue a ser.
Enganam a saudade com as muitas lembranças que o pai deixou.
– Meu pai chegou ao Brasil sozinho. Não falava português, não tinha família aqui, dinheiro ou referências. Foi tudo conquista dele.
A partida
Na Sicília, Francesco trabalhava como aprendiz de confeiteiro e sorveteiro. Aprendeu a arte da culinária fazendo muitos torrones, cannolis e spumoni em confeitarias de Licata.
O pai, Salvatore Cammilleri, serviu na Primeira Guerra Mundial e Francesco na Segunda. Foi motorista de tanque. O assunto era quase proibido. Não gostava de falar nem de lembrar dos horrores vividos, da escassez, do tiro que lhe deixou dois meses internado.
A única parte que lhe servia à memória era aquela em que conhecera os pracinhas brasileiros, incentivo para vir ao Brasil.
Um dos amigos forjou um emprego, exigência para que se aportasse em solo brasileiro.
Francesco saiu da Itália em 18 de agosto de 1954 e chegou ao porto de Santos na manhã do dia 7 de setembro, com um trabalho que não existiu por pouquíssimo tempo.
Foi recebido pelo amigo Nicola Rosselo, que saíra de Licata um ano antes e era barbeiro em São Paulo. A pensão modesta onde se alojou, na capital paulista, ficava na rua Voluntários da Pátria. Sem conhecer a grande cidade e sem falar português, saiu caminhando, tomou um bonde, desceu em frente à igreja de São Bento.
Ia anotando os nomes, placas e direções para não se perder na volta. Andou cerca de 100 metros e viu que havia um restaurante de italianos. O dono estava em frente e Francesco foi logo perguntando se precisavam de alguém para trabalhar. Em seu primeiro dia no Brasil foi contratado pelo famoso restaurante Fasano.
Depois de três dias, começou a dobrar os turnos, atuando também em outra casa de massas e rotisserie. E não parou: foi somando experiências no currículo.
Na capital ele começou a empreender. Montou uma sorveteria e depois, em sociedade com três amigos, a cantina “Nel Blu Dipinto di Blu”, no Largo do Arouche. Uma noite, foram surpreendidos com a visita de Domenico Modugno, intérprete da canção que dava nome ao estabelecimento: “Volare, cantare, ô, ô”. Mais uma foto nos registros de Francesco.
A sociedade existiu por dois anos e, depois, Francesco resolveu que queria ter um negócio só seu. Saiu a viajar pelo interior procurando um lugar onde quisesse ficar. Passou por Marília, Assis e escolheu Ribeirão Preto, no final da década de 50.
Ribeirão acolhedora
A história que passou de pai para filhos conta que, para o primeiro ponto que alugou, na rua Barão do Amazonas, Francesco teve ajuda de Santo Antônio.
Andando pela cidade, enxergou a oportunidade da placa de “aluga-se” no espaço em frente ao movimentado Cine Centenário e procurou os proprietários com uma oferta.
O dono do ponto, porém, exigia fiador. E Francesco não tinha como conseguir. Ofereceu um calção feito de suas economias, mas o homem não se sentia seguro para aceitar, já que toda sua documentação era italiana.
É aí que entra o santo. Francesco era muito devoto e andava sempre com um santinho de Antônio na carteira. Quando saiu da Itália, sua mãe, Anna, lhe entregara a imagem como amuleto de proteção.
Quando já estava para ir embora, o Santo Antônio da carteira caiu no chão. A esposa do proprietário, que também era muito devota, pegou o santinho e anunciou: “Se é devoto de Santo Antônio, pode alugar!”. Começava, assim, com intercessão divina, a Bella Sicília, inaugurada em 2 de novembro de 1959.
– Ele queria um feriado para inaugurar. O mais próximo era o Dia dos Mortos. Assim foi! O tempo passa muito corrido…
Nas lembranças de Carlos.
Logo na primeira semana, o negócio já cresceu. Alugou também a esquina e, além de sorvete, passou a servir chopp e pizza brotinho. No começo, Francesco chegava a dormir ao lado das máquinas de sorvete para não perder a hora de desligá-las.
Depois, vieram as massas. Francesco importou maquinário da Itália, contam os familiares. O primeiro prato de massa que saiu, Carlos relembra, foi para o Dr. Domingos Spinelli, irmão de dona Tanina, a proprietária do prédio, devota de Santo Antônio. Foi Domingos também quem sugeriu o nome Bella Sicília, durante um almoço entre amigos. Sugestão aceita!
– A gente não aguentava de tanto fazer massa fresca para levar. Por que não faz o prato pronto? A gente nem tinha onde servir. Foi num prato de papelão. O seu Domingos comeu e já pediu outro para levar.
São as palavras de Carlos.
Em 1970, a Bella Sicília conquistou seu primeiro prédio próprio, na mesma rua General Osório, em frente ao Palácio Rio Branco, funcionando como rotisserie e não mais como restaurante.
Em 1975, o espaço já não comportava o movimento. Francesco construiu, então, um edifício na rua São Sebastião, com a rotisserie no andar inferior e apartamentos no superior. Batizou o prédio de Salvatore Cammilleri, em homenagem a seu pai. Ali, o serviço de restaurante foi reativado. Em 1995, mais uma ampliação se fez necessária, como explica Sílvia:
– O movimento era muito grande!
Inauguraram, então, um prédio novo na avenida Independência, onde permanecem ainda hoje.
Família Papa
Sílvia e Francesco se conheceram logo que ele chegou em Ribeirão. Uniram as raízes italianas na construção da família brasileira.
O avô de Sílvia, Theodoro Papa, deixou Rizziconi, na região da Calábria, com o filho mais velho antes de 1900 e se fixou em Araraquara, trabalhando como engenheiro agrônomo. Seu trabalho teve boa repercussão e logo recebeu um convite para trabalhar no horto de Ribeirão Preto. Sílvia conta que o avô foi responsável por plantar as palmeiras imperiais que enfeitaram a avenida Francisco Junqueira. Um legado para a cidade.
Com a vida se ajeitando no Brasil, ele pediu, então, que o filho mais velho retornasse à Itália, vendesse tudo o que a família tinha e voltasse com sua mãe e seus quatro irmãos, que haviam ficado por lá.
O filho atendeu ao pedido, mas chegando na Itália foi recrutado e não pôde retornar. A mãe, Júlia Rosa Morgante, partiu com quatro filhos, deixando o mais velho, que morreu na guerra.
– Foi muito triste. Não sei como minha nonna sobreviveu.
Entre os filhos que vieram, estava o pai de Sílvia, Bruno Papa, que tinha 14 anos quando chegou. Pouco tempo depois, mais uma tristeza na família. O avô de Sílvia faleceu aos 52 anos. Tomou um choque enquanto fazia um reparo em uma fazenda.
Coube à sua avó criar os filhos sozinha.
– Como tudo se ajeita no mundo, eles foram se virando…
Os filhos foram crescendo e encontrando seus caminhos. Uma de suas tias foi pioneira no negócio de decorações em Ribeirão. Aos 18 anos, quando a mulher era predestinada ao casamento, ela abriu uma loja, “Madame Rachel”, onde vendia flores feitas de pano e outros artigos para festas.
Bruno Papa, pai de Sílvia, foi sapateiro e também teve forte atuação no consulado Italiano e na Sociedade Dante Alighieri. Foi um dos primeiros contatos que Francesco fez em Ribeirão Preto, quando chegou.
Aos 26 anos, Bruno voltou para a Itália e conheceu a mãe de Sílvia, Maria Morganti. Se casaram e vieram para o Brasil, já grávidos do filho mais velho. Além de Silvia, o casal teve outros três filhos. Entre esses Carlos, que se tornou parceiro de Francesco.
Encontro colorido
O encontro de Sílvia e Francesco é feito de muitas cores, literalmente.
A tia de Sílvia, Madame Rachel, quis conhecer a tal sorveteria nova no Centro de Ribeirão. Levou o neto e, quando chegou, viu que Francesco estava pintando as paredes com imagens da Itália. Conversou com ele e sugeriu: “Você não está pintando o principal, que é o carreto siciliano!”.
O carreto é uma espécie de carroça, colorida, muito bem adornada que ainda hoje transporta as pessoas e encanta os turistas na Sicília. A tia de Sílvia disse que tinha uma miniatura de carreto em casa e que poderia emprestá-la como modelo para a pintura.
Coube à Sílvia levar o objeto. Se encantaram ali, enquanto um entregava e outro pegava o objeto colorido. Ele ficou de devolver, começaram um namoro e se casaram em julho de 1960, seis meses após o primeiro encontro.
O carreto continua na Bella Sicília, como materialização da bonita história. Francesco passou mais de 50 anos se referindo à companheira como “Fiori della mia vita!”: flor da minha vida.
– A gente nem entendia como éramos tão companheiros… foi uma vida toda, sem brigas. Sempre nos demos bem.
Sílvia, que hoje está com 85 anos, participou de todo o crescimento da Bella Sicília. Exerceu a profissão de professora por poucos meses. Escolheu estar ao lado do marido, trabalhando na cantina. Os pais dela também ajudaram. As receitas, então, foram sendo trazidas de uma família, da outra, das duas juntas.
– Minha mãe fazia um macarrão de berinjela, com molho vermelho, farinha de pão, ovos cozidos e queijo ralado.
É uma das receitas do cardápio! A rotina foi de muito, muito trabalho.
– A gente trabalhava muito, sem parar. Natal e Ano Novo eram as épocas de mais trabalho, com os assados, as massas.
Carlos Papa também entrou para ajudar nesse começo. E ficou.
– Eu estava estudando contabilidade. Pensei em começar com meu irmão, que tinha um escritório grande.
Quando ainda estava terminando o curso, ia para a Bella Sicília ajudar. E foi se encantando.
– Eu não via a hora de ir para lá tirar sorvete. Pensei: ‘Acho que vou ficar aqui’.
Carlos aprendeu todas as etapas de uma cantina com Francesco. O convite para ficar de vez veio quando ele desligou uma das máquinas de sorvete, sem que o “chefe” precisasse pedir. Francesco saiu para ir ao banco e esqueceu a máquina batendo. Quando voltou, já estava tudo pronto. O cunhado, então, foi ficando. E aprendendo. E colocando a “mão na massa”.
– Significou muito para mim. Meu pai era muito rústico, era uma época de dureza mesmo. Eu aprendi tudo com o Francesco. A gente tem que relembrar também que ele não fazia questão de nada. Eu sei fazer a massa, desmontar a máquina!
Já faz 20 anos que está aposentado, mas escolheu continuar, driblando com disposição os 77 anos.
– Se eu não venho e quebra uma máquina? Eu tô presente. Acho que contamina o sangue da gente. Eu não sei o que fazer se não vier para cá.
No livro que conta a biografia de Francesco, organizado pela família, Carlos escreveu um poema ao cunhado como prefácio:
“Chico
Que cunhado e família maravilhosa
Que encontrei aqui na terra
Onde trabalho e muito amor aqui se encerra
Dentro desta Bella Sicília famosa”
Família que escolheu se unir e seguir unida.
Bella famiglia
Francesco e Sílvia tiveram três filhos: Francisco, Salvador e Ana Maria, que é psicóloga. São os dois que administram a cantina e não sabem dizer quando começaram.
– A gente foi crescendo aqui.
Nas lembranças de Francisco está a espera pelo carregamento de farinha. Na época, a compra era feita em toneladas, caminhão fechado. As dezenas de sacos empilhados se transformavam em aventura para os meninos.
– A gente não via a hora de subir na pilha e pular lá embaixo.
O ambiente familiar contagiou a clientela. Os filhos contam que viram passar pela cantina gerações de famílias, que continuam até hoje frequentando a casa.
– Os clientes que iam todo domingo ligavam para avisar se não pudessem ir. Eles sentavam todo domingo na mesma mesa. Faziam parte.
Para Francisco a grande satisfação está em ver a massa transformada.
– A beleza de ver os pratos saindo do forno… os comentários de satisfação dos clientes… a alegria do ambiente, que é protegido por Deus.
A família, com sua fé, não tem dúvidas de quem Francesco cumpriu sua missão.
– Ele passou por nós, saindo de um lugar tão distante… não é por acaso. Era para ser.
Desde que o pai partiu, em setembro de 2017, os filhos se dedicam a manter o espaço como sempre foi. A massa tradicional, as lembranças, o clima de grande cozinha de mamma.
– A gente não tem outra opção. Não pensamos em outra vida fora daqui.
Aos domingos, a família se reúne por ali e confraternizam, em meio ao grande movimento de clientes, que também são amigos.
Quem frequenta a casa há mais tempo se lembra do barulhão que fazia quando uma bandeja caía no chão. Era de propósito. Francesco “animava” o clima dessa forma bem italiana, quando a casa estava muito quieta.
– Meu pai deixou para a gente a propriedade, o nome, a vida. Fica a saudade e a lacuna aberta. A gente sente falta não só do pai, mas do amigo, do patrão. É um legado.
História eternizada em lembranças. Um pedacinho da Itália de presente para Ribeirão.
Legendas
Foto 1: A despedida de Francesco com a família reunida em Licata, em 1954
Foto 2: Francesco no navio Castel Bianco na viagem para o Brasil
Fotos 3 e 4: A primeira unidade da Bella Sicília, na rua General Osório
Foto 5: Francesco, Sílvia e os três filhos na primeira viagem que realizaram para a Itália
Foto 6: Miniatura do carreto siciliano que deu início ao namoro de Francesco e Sílvia: o original
Foto 7: Sílvia, os filhos Francisco e Salvador e o irmão Carlos Papa: negócio familiar desde sempre
Foto 8: Francesco na Bella Sicília em entrevista ao História do Dia em junho de 2017
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Daniela , estou revendo toda a história que meus tios Silvia e Francesco sempre nos contaram e varias partes vivenciamos ! Parabéns pela história viva !!! ????