Esta história faz parte do projeto “Força Italiana”, iniciativa da Casa da Memória Italiana, produzido em parceria com o História do Dia. Para conhecer mais acesse
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– Se eu não aprendesse pelos livros, aprenderia por osmose.
As lembranças de Érica Amêndola são feitas de arte desde muito cedo.
Filha de artista, cresceu rodeada pelos grandes nomes que fizeram de Ribeirão Preto um polo cultural na década de 50. Francisco Amêndola, descendente de italianos, apaixonado pela cultura da Itália, deixou legado como pintor, ilustrador, publicitário, fotógrafo: incentivador das artes.
– Ribeirão não foi chamada de capital da cultura à toa. Grandes artistas vieram conhecer o que se fazia aqui.
A casa onde Érica vivia com o pai, a mãe e o irmão era quase “hospedaria”, em suas palavras. A mãe, Irene Crespi Amêndola, que também é descendente de italianos, cozinhava em panelas enormes, já esperando as visitas diárias.
Viviam ao final da rua Altino Arantes, região onde hoje é o Boulevard e que na época terminava no horizonte, sinalizando que a cidade chegara ao fim.
De frente, ficava a casa de Bassano Vaccarini, pintor e escultor italiano que chegou ao Brasil após a Segunda Guerra e, no final da década de 50, foi convidado pelo então prefeito de Ribeirão Preto, Costábile Romano, a restaurar prédios da cidade.
Os artistas de fora vinham participar das festas calorosas que atravessavam a madrugada e tinham a casa dos Amêndola como um dos palcos.
Érica se lembra de acordar uma noite rodeada de sombrinhas, luzes, câmeras e olhares. Seu pai e os amigos, em um algum momento da festa, decidiram fotografar o sono da menina, dormindo abraçada com uma boneca.
Com outros artistas Francisco Amêndola fundou o “Atelier 1104”, na rua Álvares Cabral, região central de Ribeirão. Mais um reduto para as aulas que aconteciam durante o dia e as festas que despontavam na noite. Preenchiam a madrugada com performances, música, teatro e um tanto de bebedeira.
– Ali nasceu o movimento cultural de Ribeirão Preto!
Pequenina, Érica era convidada a tomar sangria e procurava entender o serrote que Jaime Zeiger, que construiu o Teatro de Arena de Ribeirão, tocava como se fosse instrumento.
– Ele fazia concertos com o serrote!
Antes de chegar a Ribeirão, Francisco Amêndola já escrevera história em Araraquara, que se tornou conhecida – e criticada – Brasil afora pelo modernismo de sua Escola de Belas Artes, onde foi aluno de Mário Ybarra de Almeida e, depois, do italiano Domenico Lazzarini, que trouxe ao Brasil o vanguardismo da arte europeia.
Em terras ribeirão-pretanas, nasce Érica, a segunda filha. Cresce embebida pelo espírito libertador de seu pai e pelo companheirismo resistente de sua mãe. Irene Crespi também herdou a força italiana da família que partiu em busca da promessa de vida plena. Era a “crítica cultural” do marido, opinando sobre suas telas e acompanhando a efervescência da boemia artística.
– Eu fiz teatro, desenho, estudei música. Era outra preocupação na formação dos filhos. Ter crescido em uma família com essa energia me ajudou muito a ter um olhar amplo para as pessoas, as coisas, as diferenças.
Érica é memória e ato. Lembrança e legado.
Encontro de famílias
A herança italiana veio em dose dupla.
– Eu sou muito italiana, porque vem de mãe e de pai. Estive em Roma e me senti em casa. Tem muito drama, os almoços, os encontros, a livre expressão. Somos um povo muito cheio de expressão. Não temos timidez.
Os bisavós maternos vieram da Itália muito jovens, na mesma embarcação, com o mesmo destino. Ele, chamado de Crespi Velho, era tenor em Milão e deixou tudo para tentar a vida no Brasil. A bisavó, Madalena, era da Toscana.
Foram viver em Ibitinga, onde se conheceram, casaram e tiveram três filhos. Carlos Crespi, avô de Érica, foi um grande empreendedor. Teve um armazém de secos e molhados, atendendo fazendeiros e colonos daquela região.
– Ele era muito generoso e conhecido.
No governo Getúlio Vargas, em meio à Segunda Guerra Mundial, perdeu tudo, com a perseguição pela sua nacionalidade. Havia a determinação de que os italianos colaborassem financeiramente com o Brasil. Passou, então, a trabalhar em uma transportadora, dirigindo caminhão.
Em meados de 65, sofreu um acidente na estrada e acabou falecendo. Coube à esposa, Luiza Mancini, terminar de criar os três filhos.
Irene, mãe de Érica, era a mais velha. Conheceu Francisco Amêndola na praça de Ibitinga. Para ficarem juntos, enfrentaram as barreiras familiares.
Os Amêndola
Os Amêndola tinham posses e influência na região.
Dessa história, a família sabe que os irmãos Amêndola vieram da região da Calábria por volta de 1865. Desembarcaram três irmãos, entre eles Paschoal Amêndola, bisavô de Érica. Ao chegarem ao Brasil, o trio se dividiu nas cidades de Ituverava, Paulo de Faria e Ibitinga, onde se fixou Paschoal, trabalhando como carpinteiro. Depois, os três acabaram por perder o contato.
Paschoal se casou com Tereza Bonifácio da Silva e tiveram José Patrício, pai de Francisco. A família vivia em uma fazenda às margens do rio Tietê, em tempos de malária. Tereza faleceu muito cedo pela doença, deixando o filho, José Patrício, ainda criança.
Em 1986, Francisco Amêndola foi entrevista por Ignácio de Loyola Brandão, com quem compartilhava o amor pelas artes e os dias efervescentes em Araraquara. Com sua poesia em prosa, Loyola transformou em palavras um pouco da alma de Amêndola. E conseguiu resgatar partes de sua história.
Francisco contou, então, que seu avô italiano, Paschoal, era um “caçador de dotes” e encontrou o que buscava com a avó, herdeira de muitas terras por ali. Dos cinco filhos que tiveram, apenas seu pai, José Patrício, sobreviveu da malária. “Minha avó morreu quando meu pai tinha oito anos. Meu avô, também vítima de maleita (malária), ficou inválido e meu velho cresceu de machado em punho, abrindo mato para a plantação de milho, café, arroz, mandioca e abóbora. Meu pai era um desbravador. Plantou mais de um milhão de pés de café”, diz na entrevista.
José Patrício cresceu em meio à abundância da fazenda. Se tornou um líder político, fundou o banco da cidade e ajudou a crescer a região, fundando também o vilarejo de Cambaratiba.
Fazendeiro, plantava café na Fazenda São José Figueira, onde Francisco nasceu, em 1924. Em 1929, com a crise do café, seu pai perdeu posses, mas conseguiu manter as terras, criando gado e plantando algodão, tomate, batata.
Amor e resistência
Francisco e Irene se conheceram por volta de 1948. Ela com 18 anos e ele aos 24. Ela vinda de uma família de italianos que perderam tudo, filha de colonos, com estudo básico – o único que lhe foi possível na época. Ele filho de um fazendeiro de posses e influência, formado no Ateneu Paulista, em Campinas, e no Colégio Estadual, em Araraquara.
Apaixonados, seguiram juntos, em meio às críticas familiares.
Em uma época de conservadorismo e namoros feitos apenas de olhares, Irene pousou nua para Amêndola antes do casamento.
Ela também foi sua musa na tela “A menina da bicicleta”, exposta na 1ª Bienal de Artes de São Paulo, em 1951. Érica conta que o pai gostava de pintar nas madrugadas. E mãe era chamada para ver o resultado das pinturas.
Se casaram na década de 50 e foram viver em Araraquara, onde nasceu o primeiro filho, Thor, em 1952. E onde a arte de Francisco se fez conhecida.
Inspiração e vanguarda
A história que Érica ouvia de seu pai é que o desenho chegou em sua trajetória ainda menino. Na fazenda, ele já desenhava. E depois continuou a desenhar o algodão e o café que fizeram parte de sua trajetória.
Francisco fez o primário em Ibitinga e, em 1938, foi estudar em Campinas, no Ateneu. Em 1941, foi para Araraquara, onde ficou até 1944, quando seu pai morreu e foi chamado a voltar para Ibitinga, na administração da fazenda.
Logo, as terras foram vendidas, já que em 1950 ele se formava na Escola de Belas Artes de Araraquara.
Veio para Ribeirão Preto em 1959, com Irene e Thor, como professor da Escola de Artes Plásticas de Ribeirão Preto, criada pelos artistas na década de 50 e depois incorporada pela Unaerp (Universidade de Ribeirão Preto).
Francisco se tornou um dos responsáveis pela movimentação cultural que fez Ribeirão conhecida – e desejada – por artistas de todo lado.
Em plena ditadura, Érica continuou defendendo a liberdade de pensar.
– Ele se dizia um livre pensador. Era simpatizante das ideias do comunismo, das questões humanitárias, chegou a esconder camaradas, mas foi perseguido tanto pela direita quanto pela esquerda, porque dizia que tinha o direito de ler Marx e José Ortega e pensar livremente.
Apaixonado pela Itália, Francisco falava italiano fluentemente, tanto que Érica aprendeu a compreender a língua com fluidez. Ele estudava a cultura de suas raízes e nutria um encantamento pelo cinema italiano. Em 1974, expôs na terra de seus avós, junto a outros três artistas: os “Quattro dal Brasile”. Em Ribeirão, foi homenageado pela conquista em solenidade com o prefeito Welson Gasparini.
A trajetória de seu pai é extensa, intensa. Amêndola ganhou prêmios, participou de quatro bienais, fez a arte na qual acreditava.
Pedro Manuel Gismondi, conceituado artista italiano que conviveu com Amêndola em Ribeirão Preto, procurou definir a pintura de Francisco, feita de vida: “Existe toda uma ambientação bucólica, poética, ligada à situação vivencial e existencial de Amêndola. A vivência está no campo, nas árvores, na bicicleta, na mocinha, em seu penteado e saia esquematizados e sugeridos, em resumo, na temática tão espontaneamente circunstancial, vivida pelo artista e não extraída dos livros, ou da imitação dos mestres”, conforme depoimento exposto no site de Amêndola, criado pela família.
Na entrevista com Loyola (https://franciscoamendolagaleria.wordpress.com/) seu espírito criativo e livre é traduzido em palavras.
Quanta história escreveu Francisco!
O legado de Érica
A herança de Érica é imensurável. Além das centenas de obras que seu pai deixou, coisa que se conta, a influência de uma vida em meio às artes: o que não se pode contar.
No dia em que nasceu, 9 de agosto de 1960, seu pai estava em uma festa de Vaccarini, com um teor etílico considerável e só soube horas depois da chegada da filha. Érica não fala com pesar. A família acolheu o artista “pleno”, que vivia a boemia da cultura.
– Ele era de um astral, uma alegria…
Entre os nomes que se lembra, nas memórias de sua infância e adolescência, outras grandes histórias, algumas italianas: Pedro Manuel Gismondi, Odilla Mestriner, Leonel Berti, Miyasaka, o vizinho Vaccarini e outros tantos.
Pôde se nutrir em tantas fontes!
Érica estudou na Escola Estadual Otoniel Mota. Escolheu cursar Jornalismo pelo encantamento em “ouvir as pessoas”, como diz. Se formou na Unaerp, na década de 80. Trabalhou em São Paulo, em editoras e jornais. Entre idas e vindas, atuou por 12 anos na EPTV, além de outras emissoras.
Hoje, tem um blog onde mantém o Canal Decote, faz assessoria de imprensa e participa de programas de rádio na Adevirp (Associação dos Deficientes Visuais de Ribeirão Preto). Seu irmão, Thor, herdou a fotografia do pai.
Francisco faleceu em 2007, aos 83 anos. Teve um AVC 11 anos antes e parou de pintar.
– O braço esquerdo ficou comprometido e ele não gostou do resultado das pinturas.
Continuou dando aulas e formando artistas, expondo, pensando e compartilhando seus pensamentos, bem críticos à arte que era produzida. Érica criou um blog, onde cuida da memória do pai. Pretende intensificar o trabalho, ampliar a digitalização do acervo.
– Ele produziu muito. Tem obras espalhadas para todo lado. É uma história muito bonita. Fez parte de Ribeirão Preto.
Vai, ela também, escrevendo a própria trajetória. Tem duas filhas. Uma fez gastronomia e a outra é bailarina e trabalha com artes visuais. Vão escrevendo seus capítulos, sem deixar o que as constitui.
– De alguma maneira, estamos continuando.
Brasileira, fala com orgulho da mistura, da soma, da paleta de cores renovada.
– Nós formamos uma geração nova de italianos. Viemos para cá com a promessa de enriquecer e fomos parar no cafezal. É a história do Brasil. Aprendemos a ser resistentes.
No texto de Loyola, lá de 1986, ela é citada como “uma menina bonita, de olhos vivos”. “Era Érica. Foi um momento bonito para mim. Eu que tinha feito tantas entrevistas com Amêndola para o jornal de Araraquara, agora era entrevistado pela filha dele”, refez, com a filha, o laço criado com o pai.
A filha do artista, que também faz sua arte. A jornalista. A herança, que é italiana, mas também é brasileira. A força pulsando nas memórias que Érica guarda e, com tanta generosidade, se propõe a compartilhar.
Legendas
1 – Foto de Érica ainda criança produzida pelo pai, Francisco Amêndola.
2 – Francisco Amêndola na década de 50
3 – Tela “A menina da bicicleta”, inspirada na esposa de Francisco, Irene, e exposta na 1ª Bienal de Artes de São Paulo, em 1951.
4 – Érica Amêndola, o irmão Thor Amêndola e a mãe Irene Crespi Amêndola. (Crédito da foto: Thor Crespi Amêndola)
5 – Érica Amêndola e o pai Francisco Amêndola
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Muita saudade deles… Bjs pra você e pro Thor !
Sucesso !!
Linda história! Visitei sua casa várias vezes com meus pais. Lembro de uma visita que fomos eu e a mamãe, seu pai estava de cama pelo AVC. Esse dia me marcou muito, pela alegria que seu pai exibia e pela força da sua mãe.
Fiquei imensamente emocionada com o resgate das memórias de Érica a respeito de sua história pessoal. Tantos antepassados alinhavando sua constituição genética e emocional. Minha gratidão!
a pesar que pasou muito tempo lembro sempre com muito carinho Francisco e irene que me adotarom praticamente no meu periodo em riberao na minha viagem a descoberta do Brasil, um grande abraço pra vcs Erika e thor