Esta história faz parte do projeto “Força Italiana”, iniciativa da Casa da Memória Italiana, produzido em parceria com o História do Dia. Para conhecer mais acesse
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Na primeira vez em que se sentou em frente ao computador para buscar registros de suas famílias, Ana passou uma madrugada inteira acordada, atônita. A empolgação assustou o sono. Conseguiu descobrir informações sobre os avós, tios que haviam se perdido: suas raízes.
Decidiu, naquele momento, que sua busca seria um objetivo de vida.
– É muito triste uma família sem memória. A história para mim é a essência de tudo. Você não pode se desligar totalmente do seu passado. É importante saber o que meus antepassados fizeram.
Ana Lúcia Robazzi Bignelli, 59 anos, carrega os sobrenomes de duas grandes famílias italianas. Além dessas, porém, há outras várias entrelaçadas no passado. Bisavós, avós, tias, tios. Ricci, Bertochi, Bonim, Bergamin, Michelin. Pesquisando, confirmou que todas as suas raízes estiveram fincadas na Itália.
Fez contato com a administração de Génova, cidade do noroeste da Itália, e conseguiu certidões de nascimento e batismo do avô. Foi achando outros elos.
– Eu cheguei à conclusão de que realmente tenho muitas características italianas. Quando eu desci em Nápoles, comecei a chorar e a cantar. Parecia que eu estava voltando para a minha terra.
Sua procura não ficou só atrás das telas. Além do acervo de fotos e informações que foi reunindo através de plataformas on-line, sites que montam árvores genealógicas, bancos de dados nacionais e internacionais, ela fez questão de ir pessoalmente à Itália, conhecer o Vesúvio de Nápoles que estampava um quadro na sala da avó, o rio Sile, a poesia de Treviso.
Ficou quinze dias, com vontade de mais.
Além dos registros de seus familiares, de uma amizade com um historiador, do reencontro com as raízes, ela ainda pôde treinar seu italiano durante a viagem. Há 13 anos, Ana estuda o idioma de sua família, também como forma de estar em contato com o que pulsa em suas memórias. Explica que, quando chegaram ao Brasil seus bisavós e avós não falavam em italiano, por medo de perseguição política. Quando se deu conta dessa história, decidiu resgatar o tempo – e a herança – perdido.
– O que me maravilha na minha família é a força, o poder de adaptação. Eu sinto que tenho isso em mim. Consegui passar por muitas coisas e me reerguer. Isso está na gente.
Faz um alerta, entretanto: há ainda muitas informações que precisa descobrir nessa busca que nunca acaba. O que traz nesse relato é um fragmento entre toda memória que quer resgatar e registrar.
– Não tem como parar. É muita história!
Os Robazzi
A história brasileira dessa família italiana começa no nome. Quando saíram da Itália, os bisavós maternos de Ana carregavam o sobrenome Robazza. Em terras brasileiras, porém, quando iam registrar os filhos, eram chamados: “São os Robazzi”, como plural. Os cartorários passaram a utilizar a variação como sobrenome – e ficou.
– Meus sobrinhos que tiraram cidadania italiana tiveram que mudar a certidão.
Tudo o que Ana sabe foi contado por alguém. Documentos conseguem comprovar algumas versões. Outras se tornaram verdade pela repetição entre as gerações da família.
O que se conta é que o bisavô dela, Antônio Robazza, foi morto no porto quando estava embarcando com a família para o Brasil. Viviam na região de Génova, região da Liguria. Pelos conflitos políticos no país, decidiram tentar uma vida melhor no Brasil. Antônio seria contrário a Giuseppe Garibaldi que, com uma legião de seguidores, buscava unificar a Itália.
No Porto, sua mulher, Anna Michelin Robazza, já havia subido no navio com os quatro filhos: Annibale, Giovanni, Marieta e Vicenzo. Antônio teria voltado para uma resolver uma questão e foi assassinado. Ela, então, seguiu viagem sozinha com os filhos e teve que se casar com um homem solteiro no navio para conseguir desembarcar.
Ana Lúcia acredita que, por isso, não encontrou registros da chegada da bisavó em nenhum lugar. Supõe que ela tenha mudado o sobrenome para desembarcar com segurança. Ela, então, não sabe quando a bisavó desembarcou. Estima que tenha sido no final do século XIX.
Entre os filhos que vieram da Itália estava o avô de Ana Lúcia, Annibale Bonaventura Robazza. A família se fixou em Santa Rosa do Viterbo, onde ele conheceu a esposa, Santa Bonin, e se casou em julho de 1906.
Santa também veio da Itália com seus pais, aos 13 anos, em 1897. Desembarcaram no porto de Santos em 14 de novembro, no navio Arno. Vivia em Treviso, Veneto, cidade que continuou viva nas histórias que ela contava para a neta. Dizia que sua família tinha “posses” na Itália, mas decidiu tentar “nova vida” no Brasil.
Santa e Annibale passaram a viver em São Simão por volta de 1920. A cidade tinha pouquíssimos habitantes, o que fez com que eles se tornassem queridos e respeitados pela vizinhança que viram crescer. Tiveram uma grande serralheria. Annibale, Ana conta, era especialista em telhados e fez móveis para muitas e muitas famílias.
A casa grande no centro da cidade, onde a mãe de Ana Lúcia nasceu, ainda está lá. A neta tenta preservar o local de alguma maneira, brigando com as avarias do tempo.
Luzia Robazzi, mãe de Ana Lúcia, é a caçula de 11 filhos. Seus irmãos, por algum tempo, continuaram com a serralheira dos pais. Depois, porém, foram tomando rumos diferentes. Na grande família há dentistas, advogados, professores.
Luzia foi uma das três filhas a se formar professora. A sala de aula foi o palco para seu encontro com a família Bignelli.
Esse trecho da história também se encerra no nome. Luzia foi chamada a vida toda de Lúcia. O nome foi registrado errado, pela pronúncia italiana que transformava o “ci” de Lúcia em “ti”. No momento do registro, o cartorário optou por Luzia e ela só foi descobrir o equívoco décadas depois, quando um professor lhe disse: “Seu nome é Luzia, não Lúcia”.
Quem iria mudar o nome escolhido e registrado por uma vida toda? Ficou Lúcia na oralidade.
Os Bignelli
Nas histórias que Ana passou a infância a ouvir, tem mais um falecimento com navio como cenário. A bisavó paterna, Angelina Bertochi, embarcou noiva da região de Mântua e desceu viúva no porto de Santos. O noivo ficou doente e eles se casaram mesmo assim, mas ele faleceu antes mesmo que o casamento fosse consumado.
Em São Simão, cidade onde foi morar, ela conheceu Pedro Bignelli. Ele transportava toras de madeira no Rio Pardo e também havia deixado a Itália. Ana Lúcia não tem muitas informações sobre o bisavô. Está na lista de pendências que ela ainda quer descobrir.
– É um trabalho que não tem fim.
Pedro e Angelina se casaram em São Simão, no dia 2 de janeiro de 1902, e tiveram três filhos. O avô de Ana, Felício Bignelli, nasceu em 1906. Ele foi taxista em Ribeirão Preto, com ponto na esquina da rua Álvares Cabral com a Duque de Caxias, conforme mostra o cartãozinho guardado por Ana.
Se casou com Cláudia Ricci, cujos pais – José Ricci e Maria Ciccone Ricci – também vieram da Itália, de Nápoles. Desembarcaram no porto de Santos em 29 de agosto de 1901, no vapor Attività Savoia. Ele tinha 28 anos e ela 18. Nos documentos de sua chegada, arquivados pelo Museu da Imigração, consta que José – Giuseppe até então – era agricultor e estava embarcando “por conta do governo do estado”, conforme consta no registro de matrícula.
A história compartilhada entre as gerações conta que, na Itália, José foi amigo de escola do Papa Pio XII e que os dois puderam se reencontrar no Rio de Janeiro na visita do pontífice ao Brasil, em 1934. José já estava com 61 anos.
Casados, Felício e Cláudia passaram a viver em uma casa da rua Tibiriçá. E aí a história se cruza com a da Casa da Memória Italiana. A residência dos avós de Ana Lúcia ficava ao lado da morada de Pedro Biagi, que hoje abriga a Casa da Memória.
Ali funcionou a oficina mecânica de Felício por décadas. E ali cresceram os três tios de Ana Lúcia – Milton, Pedro e Jenny – e seu pai, Oswaldo Bignelli.
O tio Pedro fez amizade com Pedro Biagi, seu xará. Subia no muro do vizinho para papearem, quando não estavam juntos no quintal.
Ana acredita que a oficina se estendeu no mesmo lugar até o final da década de 50. Seu pai trabalhou por anos ali, antes de se tornar diretor de escola.
Bignelli e Robazzi: encontro com amor
Os pais de Ana Lúcia se conheceram na sala de aula. Oswaldo, que ajudava a família na oficina mecânica, só pôde estudar mais velho, quando os irmãos mais novos tinham sido encaminhados.
Lúcia estava iniciando sua carreira como professora e encontrou Oswaldo como aluno. Ele era quatro anos mais novo do que ela. Namoraram por cerca de sete anos e se casaram em 1957: ela aos 31 e ele aos 27.
– Olha como ela era avançada para aqueles tempos!
A filha diz, cheia de orgulho.
Lúcia trabalhou como professora a vida toda. Se especializou em artes, disciplina chamada na época de “trabalhos manuais”. Oswaldo foi terminando os estudos aos poucos. Quando a filha Ana Lúcia já tinha 15 anos ele se formou como advogado.
Ela se lembra de ler os livros que o pai precisava estudar e narrar os escritos com um gravador para que ele pudesse ouvir entre os intervalos da jornada de trabalho.
Além de Ana, a caçula, tiveram também Oswaldo Robazzi Bignelli e outros dois sobrinhos que acolheram como filhos.
– Eles ajudaram muito os sobrinhos. A casa estava sempre cheia. Tiveram dois sobrinhos que perderam a mãe cedo e passaram a morar com a gente. São como irmãos.
Foi por influência desses “irmãos” mais velhos que Ana escolheu seguir pela carreira de dentista, apesar de seu interesse pelo Direito. Seu irmão também foi para a mesma profissão.
Depois que se casou, ela morou por três anos em Porto Velho, antes de voltar para Ribeirão, divorciada, com seus dois filhos. Escolheu viver com a mãe na casa que a família comprou em 1962, no Centro de Ribeirão, quando Ana Lúcia era uma criança de colo.
Seus pais viveram um tempo em Pitangueiras, onde Oswaldo era diretor de uma escola. Quiseram se mudar para Ribeirão para que Ana Lúcia pudesse frequentar boas escolas. Em 1976 passaram a viver na casa que fora comprada anos antes e ainda hoje é morada.
Pelas paredes, a história da família se exibe em quadros que Lúcia ou Ana pintaram. A mãe passou a herança das artes para a filha. Nas estantes, louças e bibelôs também feitos pela mãe. Porta-retratos com fotos da família. E um pouco de vazio.
Oswaldo faleceu em 2004, aos 74 anos. Lúcia faleceu em agosto de 2018, aos 91. Para Ana, que era sua companheira, ficaram as boas lembranças, que se transformam em saudade.
– Minha mãe era uma italiana muito brava. E o meu pai mais tranquilo. Os dois eram muito queridos, da mesma forma.
As lembranças de Ana
Ana me recebe com a mesa cheia: bolo de fubá, rosca, suco. Não é de cozinhar, mas é cliente assídua da padaria próxima. Vem lá das avós: se vai receber visita, a casa precisa estar farta e limpa. Sua mãe não tinha economia. Os pratos eram feitos sempre para o dobro de pessoas que compunham a mesa.
– Eu falava: ‘Mãe, que exagero!’. E ela respondia: ‘Eles comem!’.
O avô Aniballe Robazza era de hábitos. Às 5h da manhã, a polenta já estava no fogão. Chamavam os funcionários para tomarem café juntos e a refeição era uma festa de tanta gente: os 11 filhos mais os convidados.
– Era o dia inteiro fazendo pão, polenta, bolos. A gente não parava de comer.
O melhor destino de férias era a casa dos avós, em São Simão. A polenta que sobrava ia para a chapa no outro dia e Ana ainda sente o gostinho da delícia.
A avó Santa foi com quem ela mais teve contato. Era ela quem lhe contava sobre as águas de Treviso, as Dolomitas (cadeia montanhosa dos Alpes) que se via ao longe, o vilarejo que deixou menina e nunca mais pôde ver.
Quando Ana Lúcia esteve lá eram as memórias da avó que pulsavam na mente.
– Foi emocionante poder olhar e ver as coisas que ela falava.
Dona Santa se dava bem com todo mundo. O marido morreu cedo, em 1941, e ela ficou tomando conta da serralheria. Era querida em São Simão e tinha amizade com toda gente.
Se escutava as netas falando da vida de alguém, ia logo interferindo. “Amigado com fé, casado é”, dizia sobre os relacionamentos “falados” para a época.
Ela faleceu em 1968, aos 84 anos, quando Ana tinha 8 anos. Continua viva na história que a neta guarda com tanto carinho.
Da avó Cláudia Ricci, que faleceu quando tinha seis anos, Ana se lembrava apenas dos longos cabelos pretos. Não sossegou até encontrar uma foto que lhe trouxesse mais memórias.
Sabe que ainda tem muitas peças para encaixar nessa grande história. Muitos laços familiares para investigar e datas para descobrir. Tem, então, missão para a vida toda.
– Quero guardar um dinheiro bom e fazer um mochilão na Itália!
Continua fazendo aulas de italiano e criando laços: preparando, de alguma forma, sua viagem pela memória.
Na árvore genealógica enorme que criou da família pela internet já está também a família do genro, que é norte americano.
Ana – ainda bem – é guardiã da história de suas famílias italianas e das outras que está a formar. Laço do passado no presente. Elo entre memória e vida.
– A árvore é uma coisa aberta, nunca acaba.
Legendas
1: Ana Lúcia segurando a foto que mostra a serralheira dos Robazzi em São Simão
2: Maria Ciccone e José Ricci: pais de Claudia Ricci
3: Os filhos de Felício Bignelli e Cláudia na oficina que ficava ao lado da Casa da Memória Italiana: Milton, Pedro e Oswaldo embaixo; Jenny no capô.
4: Fotos do casamento de Oswaldo e Lúcia
5: Felício Bignelli e Cláudia com os filhos Pedro, Oswaldo e Milton
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Obrigada pelo carinho Daniela . Amei ler a história de minhas famílias retratado de forma tão delicada . Muito obrigada por não deixar nossa raizes italianas morrerem . Bj
Que lindo tudo isso Ana Lucia. Que presente você está dando para nós todos, os Robazzi. Muito comovente ler o que você declarou e ver as fotos dos avós e tios. Só de ler chorei de saudades. Você é demais, prima.
Prima, fiquei muito feliz por você não ter deixado a história da nossa família morrer e lendo todo o texto chorei muito. Gratidão!!!!
Olá, muito legal conhecer outras histórias, estou na busca de meus antepassados, que tem sobrenome parecido com seu, Bizinelli. É um longo caminho a percorrer!