Heloisa busca levar acolhimento para mães que perderam seus bebês

9 março 2020 | Histórias do Proac 2019/2020

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Esta história foi narrada pelos integrantes do projeto Doadores de Voz, dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Unaerp!

 

 

Vale a pena ler de novo! História publicada pela primeira vez em 19 de novembro de 2018! 

 

Heloisa cuida de uma dor que ninguém quer sentir. Mas muitas famílias sentem e, por tanto não querer e tão pouco falar, não se sabe como lidar com ela.

– Um bebê que morre quando se espera a vida é um contrassenso muito difícil de entender. Ninguém imagina que um bebê ou uma criança vá morrer.

Bebês morrem. Às vezes, antes mesmo de chegarem à vida, ainda na barriga. Outras, durante o parto ou poucos dias depois de chegar ao mundo, chamado período perinatal. Pesquisando, Heloisa descobriu que nem mesmo os profissionais de saúde sabem lidar com esse luto.

Heloisa de Oliveira Salgado estuda a relação entre bebês e suas famílias desde que decidiu cursar Psicologia, na década de 90. Em sua trajetória profissional, pesquisou temáticas diversas, com os mesmos atores. Desenvolvimento infantil, contexto familiar pós-parto, assistência ao parto.

O luto perinatal sempre esteve por ali, nos relatos das mães, nas conversas de hospital.

– As mães diziam que, depois de perder o bebê, a pior coisa que passaram na vida foi a assistência que receberam. E eu me perguntava: como é possível a pessoa passar pelo pior dia de sua vida e ainda receber a pior assistência?

Heloisa se aproximou ainda mais do tema quando uma grande amiga, Kika, foi quem viveu a dor. A amiga morava no Canadá, no entanto, e a assistência em saúde que recebeu por lá fez a vivência do trauma mais calorosa, mais amena.

 

Aquela UTI, daquele hospital, nunca mais esquecerá. Também não esquecerá de enfermeiras e médicas carinhosas e fraternais, outras nem tanto, também da falta de higiene de algumas delas que chegaram a pegar papel do chão e em seguida mexer com os bebês, foi traumatizante. O que nunca mais saiu de sua memória é a carinha das suas meninas, que foram e não foram suas. Isso nunca mais saiu de sua mente.

Helena, mãe de Clara e Dora  

 

A dor é imensa e para isso não há remédio. Mas Heloisa percebeu que havia um jeito melhor de lidar com ela. Ela pesquisou o protocolo de saúde canadense, que conduz o acolhimento prestado pelos profissionais nesses casos. E concluiu que o sistema de saúde brasileiro está bem longe desse padrão humano de atendimento.

– O que a nossa cultura faz? A gente acha que quando um bebê morre o melhor a fazer é ajudar logo aquela mãe a virar a página, como se nada tivesse acontecido. E essas mães querem o contrário. Elas não querem se esquecer do bebê. A sociedade toda se esquece e não deixa que esse bebê seja história, memória.

Toda essa pesquisa, motivada pela necessidade de dar às mães e famílias brasileiras o atendimento adequado, motivou a escrita de um livro, em parceria com a ginecologista Carla Andreucci Polido. O guia “Como lidar: luto perinatal”, escrito para profissionais da saúde, foi lançado em setembro deste ano e já está sendo compartilhado pelo Brasil afora.

– Essa procura grande está ocorrendo porque há um buraco na formação neste tema. Ninguém está preparado para viver esse luto, nem o profissional, que não recebe formação ou capacitação para isso.

Há quase dois anos, ela criou também o grupo de apoio Travessia, para famílias de Ribeirão Preto que vivem o luto. Heloisa bem sabe: precisamos falar sobre a morte de bebês e toda dor que ela traz.

Heloisa Salgado livro luto perinatal

Heloísa conta que, na infância, quis ser arqueóloga. A vontade não se concretizou e a vida foi seguindo outro rumo. Escolheu Psicologia porque “gosta de gente, de interagir com as pessoas. Dia desses, refletindo sobre sua trajetória, entendeu que, de alguma forma, o desejo de infância havia se realizado.

– Minha veia de arqueóloga não se perdeu. Eu continuo buscando, como os arqueólogos buscam coisas físicas. Mas busco histórias e emoções.

Ela fez faculdade em Ribeirão Preto, sua terra natal, e, recém-formada, foi para São Paulo, onde viveu por cerca de 10 anos.

Por lá, pesquisou a relação do bebê com sua família, trabalhou com educação, teve um aborto espontâneo com péssimo atendimento médico e se inquietou com a assistência prestada. Depois disso, seu primeiro filho nasceu. Passou por uma cesárea,  não teve licença maternidade e não conseguiu amamentar seu bebê.

– Eu estava triste, frustrada. Tudo havia sido completamente diferente do que eu havia programado.

Começou, então, a buscar apoio em grupos de mães pela internet. E descobriu que muitas mulheres viviam as mesmas frustrações.

– Eu comecei a entender a situação do Brasil com a realização das cesáreas. Passei a conhecer, estudar.

Surgiu a vontade de voltar a pesquisar e, em 2010, ela ingressou no mestrado em Saúde Pública, pela USP de São Paulo, com assistência ao parto como objeto de pesquisa.

Nessa mesma época, enfrentou uma turbulência familiar. O ex-marido, pai de seu filho que na época tinha três anos, morreu por um tumor no cérebro. E Heloisa sentiu que era necessário voltar para Ribeirão Preto.

Voltou, mas não parou de estudar. A amiga que morava no Canadá, Kika, engravidou também nessa mesma época. A cabeça – e o coração – da psicóloga ficaram repletos de sentimentos e angustias.

– Tudo o que minha amiga contou ficou na minha cabeça. Fiquei surpreendida positivamente. Sempre que eu escutava algum relato de mãe, eu me lembrava da Kika.

Já no doutorado, em 2012, pesquisando os danos que a assistência ao parto provoca nas mulheres no Sudeste do País, Heloisa sentiu necessidade de fazer algo com tudo o que guardava na mente.

– O resultado da minha pesquisa que mais chama a atenção é que menos de 2% das mulheres não sofreram danos.

A psicóloga começou a comparar o protocolo canadense de assistência ao luto perinatal com o que é feito no Brasil. E descobriu diferenças abissais entre as assistências.

Para o livro, escrito em parceria com a amiga ginecologista, colheram, então, o relato de 12 mulheres que viveram o luto perinatal.

Passaram cerca de cinco anos preparando o guia, com uma pausa nesse período. Heloisa teve dois abortos antes do nascimento de seu segundo filho, com seu companheiro atual. Precisou de um respiro para viver esse momento. Dessa vez, porém, teve a assistência adequada, da obstetra de confiança que compartilha as mesmas ideias.

Heloisa Salgado livro luto perinatal

 

“Já sangrando, perguntei para o ultrassonografista se ele tinha visto alguma coisa. E ele, secamente, respondeu: ‘Seu útero não tem nada dentro. Aliás, nem grávido parece que ele esteve’. E tudo o que eu queria escutar era que eu continuava grávida, apesar do sangramento. Enfim, eu ainda tinha sintomas. Foi como se naquele momento ele tivesse tirado de dentro de mim o filho que eu tinha planejado por tantos anos e carregado por várias semanas.”

Hellen, sete semanas de gestação

 

Heloísa explica que a conduta mais adequada quando um bebê morre na barriga, durante ou pouco após o parto (período chamado perinatal) é permitir que a mãe viva a sua história com aquele bebê. Que ela possa pegar o filho no colo, fazer fotos, guardar lembranças daquele momento.

– Todo trabalho com o luto perinatal é para ajudar a construir uma história dessa família com o bebê. Muitas mulheres reclamam que não puderam estar com seus bebês, vê-los.

A mãe e a família precisam, também, receber as informações e o acolhimento necessários para vivenciar essa dor.

– A mulher vai para casa, vai ficar sozinha, a família não sabe lidar com isso. Ela precisa saber quais sentimentos são normais nesse momento e quando é hora de buscar ajuda.

Até mesmo para questões físicas, como Heloisa ressalta.

– Muitas mães nem sabem que o leite vai descer. Elas dizem: ‘Eu recebi alta e ninguém veio conversar comigo para explicar o que aconteceu com o meu bebê’.

Para Heloisa, essa assistência falha é fruto da falta de preparo dos profissionais.

– Os profissionais também são humanos, não recebem formação e têm seus lutos para lidar. São formados com a ideia de que não podem deixar transparecer seus sentimentos e, então, em uma situação dessas, muitos se afastam, abandonam, negligenciam.

Ela espera que o livro possa auxiliar na construção de um novo caminho de assistência. E continua participando dessa construção. O grupo “Travessia” conta hoje com cerca de 30 famílias, que se reúnem fisicamente uma vez ao mês, mas que estão sempre conectadas virtualmente, compartilhando vivências.

– O grupo de apoio é uma das ferramentas mais poderosas para esse luto, porque é um lugar onde as pessoas vão te entender. Ninguém vai te falar: ‘Deus quis assim’.

Heloisa, mãe e mulher, sente que está fazendo sua parte em transformar o inóspito em acolhimento.

– O nascimento e a morte são momentos muito agudos na vida de uma pessoa. Que o único trauma dessa mulher seja por ter perdido o seu filho. E que ela possa ter lembranças boas de todo o resto.

Ninguém quer sentir essa dor. Mas todos precisamos saber lidar com ela.

 

 

*Quer traduzir essa história em libras? Acesse o site VLibras, que faz esse serviço gratuitamente: https://vlibras.gov.br/

 

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