Arte de Elson Sposito tem raízes nas heranças italianas

19 março 2020 | Força Italiana, Histórias do Proac 2019/2020

Esta história faz parte do projeto “Força Italiana”, iniciativa da Casa da Memória Italiana, produzida em parceria com o História do Dia. Para conhecer mais acesse: 

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Um senhor de bicicleta vendia caminhõezinhos de madeira em uma carrocinha acoplada. Passava pela rua e instigava a imaginação de um Elson ainda menino: “Um dia vou conseguir fazer isso”.

O caminho foi extenso até que o artista, enfim, alçasse voo. Elson Sposito fez Zootecnia, trabalhou com avicultura, empreendeu na área de autopeças: escreveu trajetória extensa e, então, se encontrou nas artes plásticas. Experiências que amadureceram a pessoa e o artista, que já pulsava gerações antes.

– Quando alguém elogia o meu trabalho é o trabalho deles que estão elogiando também: dos meus pais, meus avós. Estou dando continuidade ao que eles começaram. Ficou tudo lá, encubado.

Na escola, ainda menino, recebeu elogios dos professores por uma releitura do Abaporu, de Tarsila do Amaral. Não era de surpreender. O trabalho de Elson, que arranca suspiros de todas as idades, tem raízes na família italiana, que fez arte de todo tipo.

Seus avós paternos tiveram uma encadernadora de livros na rua Sete de Setembro, Centro de Ribeirão. Costuravam à mão as capas duras, que resistem ao tempo e ajudam Elson a aliviar a saudade. Seu pai pintava telas, que hoje estão expostas nas paredes da casa do filho. Só não pôde seguir com a arte porque precisava, junto com a esposa, manter a família.

Um de seus tios abriu uma fábrica de bonecas, Urubatan, na Vila Tibério. Seu pai fazia as fôrmas e sua mãe costurava os vestidos, fazia os cabelos, a maquiagem e, também restaurava peças.

– Os dois eram artistas!

Em meio à conversa, ele mostra um novelo feito com pedacinhos de barbante. É uma das heranças que guarda de seu avô materno, Vicente Aloi. A recessão que vivera na Itália fez com que, a vida toda, aproveitasse o máximo das coisas. Guardava, então, os pedacinhos de barbante que amarravam as embalagens caso precisasse, um dia, reutilizar.

Hoje, ninguém usa os fios desse novelo. É lembrança da origem, relíquia. Elson faz sua arte com material reciclado. Sua história é um emaranhado de fios outros, valores que recebeu em novelos, telas, bonecas, exemplo.

– Isso tudo tem uma importância na minha formação… até mais do que uma aula acadêmica.

São mais de cinco mil peças produzidas com arame reutilizado, papelão, materiais que poderiam ir para o lixo e ganham bela destinação. Ganha prêmios, expõe Brasil afora, tem esculturas espalhadas pelo mundo. Tudo feito com um artigo principal:

– É a emoção. Se não tiver, não sai do jeito que eu quero. Emoção é esse sentimento de lembranças, das raízes.

Crianças soltando pipas, brincando no parque, correndo. Bailarinas em poses. Um elefante de duas patas, que parece ter quatro. Cenas do cotidiano, lembranças da infância, nostalgia em forma de arte.

 

Elson Sposito artista ribeirão preto

Da Calábria para o Brasil

São muitas histórias dentro da mesma trajetória. A cada nova fase, Elson avisa: “Aí, começou uma nova história”. Nosso início está na vinda ao Brasil, na chegada cheia de esperança.

– Não tem muita informação documental. O que sabemos é de ouvir os pais, os avós. O que a gente achou mais importante fica gravado na memória.

História oral, patrimônio que não tem forma.

Tanto a família materna quanto a paterna vivia na região da Calábria.

O avô materno, Vicente Aloi, nasceu em Cosenza, comuna na região da Calábria, e deixou a Itália por volta de 1915, como desertor da guerra.

Contava que estava servindo o governo e fora escalado para o combate. No porto, prestes a embarcar, soube que havia um navio partindo para o Brasil. Conseguiu entrar na embarcação e nunca mais pôde voltar para seu país. Se fixou em Ribeirão Preto, onde trabalhava vendendo verduras de casa em casa.

A avó materna, Francisca Ritano, nasceu em Catanzaro, outra província da Calábria. Perdeu o pai muito cedo. Sua mãe se casou de novo e veio para o Brasil. Ela, ainda menina, permaneceu na Itália, na companhia do avô. Só após o falecimento dele é que pôde, já moça, vir ao encontro da mãe e, então, conhecer os irmãos, nascidos na nova terra.

Conheceu Vicente no Brasil. Se casaram e tiveram cinco filhos. A mãe de Elson, Anna, foi a terceira. Nasceu em 1930. Era conhecido por todos como “Nenê”.

Nas lembranças que Elson tem da avó estão os muitos pratos caprichados. Ainda guarda o cilindro que ela usava para fazer a massa de macarrão e o moedor de café, sempre preparado na hora.

– Ela fazia muita comida italiana! Tinha um prazer tão grande em cozinhar! Bolos, pastéis, peixes. A casa era muito perto do Mercadão Municipal, no Centro. Ela comprava muita coisa, fazia e distribuía para a família toda. Era para todo mundo.

Também se lembra da história que a avó sempre contava. Lá em Catanzaro, estava com uma amiga indo levar marmita para os avós e pais, que trabalhavam no campo, quando foi abordada por um homem. As estradas eram muito vazias e ela dizia que o homem estava cavando um buraco. Pretendia violentá-las. Foram salvas por uma pessoa desconhecida, que apareceu de repente. A história marcou a trajetória da avó e foi replicada para filhos e netos. Elson também faz sua parte, compartilhando-a.

Na família paterna, o bisavô, Salvatore Sposito, e a bisavó, Rosa, não deixaram muitas informações sobre a partida da Itália. Elson sabe apenas que eram todos da região da Calábria.

Em Ribeirão, abriram um armazém na rua São José com a Prudente de Moraes, Centro. O tempo não permitiu que Elson convivesse muito com seus bisnonnos. A lembrança que tem é de ter ido, ainda menino, visitar o bisavô, já doente, na casa que ficava junto ao armazém.

– Tinha muito bacalhau pendurado, latas. Ele estava deitado na cama, tossindo muito. Morreu logo depois.

Seus avós, José Spósito e Maria Locatti, também de família italiana, tiveram a encadernadora de livros, na rua Sete de Setembro, por décadas.

Faziam exemplares para seminaristas, padres, toda gente letrada.

– Esse pessoal lia muito e queriam conservar os livros bem. O meu avô fazia as capas duras e a avó fazia as costuras.

O primeiro livro que Elson leu, cujo exemplar ainda está conservado em sua casa, foi “O Urupês”, de Monteiro Lobato, encadernado à mão pelos avós.

Tiveram três filhos. Seu pai, Francisco, foi o do meio. Assim como Anna, nasceu em 1930.

Se encontraram quase duas décadas depois.

 

Elson Sposito artista ribeirão preto

Bonecas feitas com arte

Anna e Francisco se conheceram na praça Sete de Setembro. Vivendo no Centro de Ribeirão, passeavam sempre por ali. O casamento foi em 1950 e, a partir daí, “começa uma nova história”, como diz Elson.

Recém-casados, foram convidados pelo irmão de Anna, Domingos Aloi, para trabalharem na fábrica de bonecas que ele estava abrindo, em Jardinópolis. Passaram a viver na pequena cidade e começaram o trabalho na fabricação dos brinquedos.

Por volta de 1955, ano em que Elson nasceu, transferiram a fábrica para Ribeirão Preto, na rua Santos Dumont, Vila Tibério. O negócio cresceu. Chegaram a ter 30 funcionários, a maioria mulheres. Nesse início, quase todo o processo era feito à mão.

Seu pai moldava a escultura da boneca para as fôrmas de ferro fundido onde, depois, ia a modelagem de serragem e cola. O corpinho era feito de pano.

Uma das bonecas costuradas por sua mãe, dona Nenê, ficou famosa entre jovens adultas e era até difícil dar conta da demanda. Se chamava “Dorminhoca” e tinha um zíper na barriga, onde as mulheres colocavam, por exemplo, lingerie.

– Minha mãe contava que eles chegaram a vender mais de duas mil bonecas em um ano! Ela começava a trabalhar de madrugada.

Conforme a busca pelos brinquedos foi crescendo, o negócio foi se transformando. Passaram a comprar brinquedos e outros produtos para revender. Se adaptavam às festividades, com produtos especiais para o Natal, Páscoa, Dia dos Namorados, Dia das Mães. Logo vieram também os importados.

Elson crescia ali, entre os brinquedos, na companhia dos primos e, depois, do irmão Nilson, cinco anos mais novo. Testavam os produtos, preenchiam a infância de novidade.

– Eu me lembro de quando chegou o primeiro autorama da Estrela, em 1972. O Fittipaldi tinha sido campeão. Foi uma alegria!

A diversão extrapolava os muros da fábrica, com a criançada da vizinhança na rua.

– As esculturas do brincar que eu faço hoje trazem essas brincadeiras. Bola, pião, pular do alto da escada. Eram brincadeiras sadias.

 

Elson Sposito artista ribeirão preto

Trajetória extensa

A infância foi farta do brincar, do convívio, da troca. Viviam em uma casa de quintal enorme, na Vila Tibério. Tinham jabuticabeiras, goiabeiras, galinhas e o cachorro Chaveiro.

Em uma véspera de Natal, o cachorro foi doado. Elson ainda se emociona para contar. Seus avós construíram uma casinha no quintal dos filhos, para estarem todos juntos, e algumas mudanças foram necessárias. Cortaram o pé de jabuticaba e doaram o cachorro, da raça policial, companheiro fiel de Elson.

– Marcou. Até hoje eu não esqueci.

Infância sempre rememorada. Lembranças transformadas em arte. Algumas delas, feitas de muita tristeza.

Um acontecimento marcou a história da família. Seu irmão, Nilson, faleceu em 1977, aos 16 anos, por um erro médico durante atendimento no hospital. Elson já estava com 21.

A comoção tomou conta da cidade. Os amigos organizaram passeatas, a família tentou superar a dor.

– Minha mãe nunca mais foi a mesma.

Elson tenta segurar a emoção ao falar. Tarefa difícil de conseguir.

Conheceu sua esposa, Elisabete de Carvalho, a Bete, de família portuguesa, quando os dois ainda eram adolescentes. Ela era irmã de um grande amigo dele, o que, no começo, causou alvoroço. Hoje, história para contar entre risadas.

Da mesma turma, estavam sempre juntos nas saídas, festas, cinema, cantorias nas praças. Nos momentos bons e ruins: ela também relembra a morte do cunhado com tristeza.

O namoro dura ainda hoje. Os dois são companheiros na arte e na vida. Na década de 70, ele fez Zootecnia na Unesp de Jaboticabal e ela fez Letras, na Unesp de Araraquara.

Formados, se casaram em 1979. A fábrica havia acabado de fechar as portas, por volta de 1977. A concorrência se intensificou, vieram os Shoppings e o negócio de tantos anos não aguentou. Hoje, o espaço é um local de eventos da família, preservando o nome Urubatan como memória.

Bete e Elson começaram a vida a dois, passo a passo. Ela dava aulas, ele trabalhou em avicultura, mas o negócio acabou fechando. Foi, então, de um emprego a outro até começar a trabalhar para a autopeças do tio, em 1983. A família precisou se mudar para Araçatuba, onde ficava a loja. Os três filhos vieram em escadinha: 1980, 1982 e 1984.

Viveram lá até 1995, quando voltaram para Ribeirão. Elson montou sua própria autopeças, que deu certo por um tempo, mas não era o que lhe realizava.

Vendeu em 2006, seguindo recomendações médicas:

– Meu médico falou: ‘Ou você vende, ou fecha ou vai morrer’. Não era para mim.

Sincero, confiava na sinceridade alheia e acabou levando alguns tropeços. Quando decidiu vender, já sabia para onde ir.

 

Elson Sposito artista ribeirão preto

Arte como herança

A esposa, Bete, foi quem deu o impulso. Trabalhando como professora, ela não se limitava aos livros para ensinar. Gostava de inovar. A escola tinha concursos de arte e, então, ela tinha espaço para criar.

Imaginava uma boca grandona dos Rolling Stones cobrindo toda a sala e Elson confeccionava, com uma língua de tapete por um onde o público passava por toda sala. Pensava em uma fonte de palavras e o marido fazia acontecer. Os alunos entrando pelo cano? O artista tornava a expressão popular realidade.

– Todo mundo me perguntava se ele era artista. Eu imaginava e ele executava.

Usava todo tipo de material para as obras. Caixas, vidros, coisas que ia pegando no autopeças. Quando Bete aposentou, logo depois que venderam a loja, Elson ficou perdido.

– Eu fiquei sem chão! Era muito gostoso de fazer!

Começou, então, a produzir peças em casa. Foi buscar lá atrás, nas memórias, as raízes para criar uma técnica própria. Arames reaproveitados, com silicone e cores dão forma às mais diversas figuras.

Também confecciona esculturas com papelão, manequins e tudo o que encontra e vê potencial artístico. A Vênus do século 21, uma manequim toda encapada de jornal, que tinha como base um cesto cheio de lixos, passou por diversos locais da cidade.

O empurrão que tornou seu trabalho conhecido foi em um show do Chico Anísio, aqui em Ribeirão Preto. Quis expressar sua admiração pelo artista transformando um de seus personagens, Pantaleão, em escultura aramada.

Chico adorou! E Ribeirão Preto também! Naquele mesmo ano, 2010, Elson foi contratado para confeccionar 200 peças, entregues de presentes para os mais diversos artistas e autores que passaram pela Feira Nacional do Livro de Ribeirão.

Lutando contra o tempo, trabalhando dia e noite, com o apoio de toda a família, conseguiu entregar a encomenda. E não parou mais. Vieram outras, e outras, e outras.

Há quatro anos, passou a produzir peças baseadas nas obras de Portinari, que são expostas no museu de Brodowski. A infância pulsou ainda mais intensa.

– Brincar é um resgate. É transmitir o resgate das memórias para pessoas adultas.

Está sempre participando de encontros com a criançada de escolas, que se surpreendem: “Nós vamos conhecer um artista vivo?”.

Ali, entre gente miúda, vê brotar sementes, como a menina que se encantou ao saber que seu avô, que é um catador de recicláveis, estava fazendo algo muito bom pelo meio ambiente. “Eu posso ser artista também?”, perguntou empolgada.

Em outubro de 2019, Brodowski se tornou cidade-irmã de Chiampo, na Itália, onde nasceu o pai de Portinari. Os italianos foram presenteados com obras de Elson. E lá foram elas cruzar o oceano, de volta às origens.

– Estamos muito ligados!

Aos 65 anos, o artista não pensa em parar: verbo que não conhece. Nos momentos de descanso, à noitinha, no sofá, arruma sempre um jeito de fazer alguma coisa.

Tem confeccionado estandartes de santos. Mastros coloridos, feitos com um pouquinho de um monte de coisas que ele vai coletando: fitas, medalhas, panos, grãos de café que, com arame, também se transformam em joaninha.

– Eu não tenho como expressar o que a arte é para mim. É tão importante que, se eu tiver qualquer preocupação de rotina, se torna mínima. É como se eu tomasse um remédio para tirar a dor. Um remédio desses: não tem terapia melhor!

Entre todas as artes, a que mais gosta nasce com destino certo. Os netos Lara, Theo e Elis ganham prédios, foguetes, caminhões, navios que o avô confecciona. Passam as tardes entretidos com os brinquedos feitos pela mão do avô, com um toque dos bisavós e tataravós.

Nenhuma outra peça industrializada é mais querida.

– É o trabalho que eu mais tenho prazer em fazer, por causa da alegria que eles ficam. É mais do que qualquer encomenda com valor financeiro.

Conta orgulhoso que o pequeno Theo, 5 anos, já faz desenhos com noção de perspectiva. Pede, inclusive, que o avô siga seus “projetos” na confecção dos brinquedos.

Herança que continua a ser passada, de mão em mão. Conhecimento que não se aprende em livros ou teorias. O afeto, que tem raízes lá atrás, é o grande professor.

 

Legendas:

Foto 1: Família Sposito no Brasil por volta de 1937

Foto 2: Casamento de Francisco e Anna, pais de Elson

Foto 3: Elson Sposito com suas obras

Foto 4: Elson e a esposa Bete na sala de casa. Na parede, as telas pintadas pelo pai de Elson, Francisco Sposito.

 

 

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