Esta história faz parte do projeto “Força Italiana”, iniciativa da Casa da Memória Italiana, produzida em parceria com o História do Dia. Para conhecer mais acesse:
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A história de fé foi compartilhada pelos filhos e netos. Depois de combater na Primeira Guerra Mundial, o avô paterno de Vincenzo Spedicato viu seus cinco filhos partirem para a Segunda Guerra.
Fez uma promessa: se visse todos eles voltando, poderia ficar cego. E ficou. Perdeu a visão pouco depois que seus meninos retornaram para casa, fisicamente bem. As marcas psicológicas de uma guerra, ele bem sabia, não vão embora.
Partir para o Brasil foi decisão justificada pela tristeza do pós-guerra que pairou nas memórias de sua família italiana. Vincenzo Antônio Spedicato, neto, filho e sobrinho de combatentes, não quis o serviço militar também em sua trajetória.
– Eu tinha aversão. Nasci no pós-guerra. Achei uma solução para não perder dois anos com isso que eu tanto abominava.
Um amigo lhe contou que, para não precisar servir a Marinha da Itália, ele poderia prestar serviços técnicos em países em desenvolvimento, como uma permuta. Não teve dúvidas. Em poucos meses, encontrou uma forma de colocar a ideia em prática.
O pai, Giuseppe Vittorio Spedicato, talvez por perceber do que escapava o filho, deu apoio. A mãe, Chiara Vetere Spedicato, se entristeceu. Palpite de mãe não se engana. O dito vale no Brasil, na Itália ou em qualquer parte do mundo.
– Ela sentiu que eu não iria voltar.
Talvez, percebesse que, além do horror à guerra, outro sentimento também pulsava dentro do Vincenzo de 20 anos.
– Minha cidade, apesar de cheia de histórias, era pequena, com poucas oportunidades. Eu queria um lugar onde pudesse realizar meus sonhos, que eram grandes. Minha vontade de vencer superou todos os percalços. Eu sempre tive em mente que queria ter uma indústria.
Em 1968, então, ele deixou Veglie, província de Lecce, na Itália, dizendo que iria voltar. Mas o palpite da mãe estava mais certo. No Brasil, realizou sonhos, constitui família, construiu sua indústria com atuação mundial.
Na foto, posa com um globo terrestre nas mãos: retrato de um italiano que partiu em busca de conquistar o mundo. Começou com cinco funcionários e hoje são 1,5 mil. Aos 71 anos, quer continuar com seu propósito.
– Quando você percebeu que deu certo? Que você conseguiu realizar o que queria?
Pergunto, e a resposta vem rápida:
– Não percebi ainda. Eu olho e penso: ‘O que eu fiz?’. Se eu pensar nisso, estou chegando no fim. Agora, eu estou no meio.
Família de histórias
Para conseguir amenizar a saudade de casa, que nunca foi embora, Vincenzo precisou criar estratégias. Comer macarrão todos os dias é uma delas. Foi promessa feita lá na infância.
– Minha mãe queria que eu comesse legumes, verduras e só queria macarrão. Pensava: ‘Quando crescer, vou comer macarrão todo dia’. Faz pouco tempo me dei conta de que estou cumprindo essa promessa.
Também é apaixonado pela música italiana, que lhe foi apresentada pelo avô, e, nos últimos 15 anos, consegue visitar a Itália anualmente. No começo, as viagens eram espaçadas.
Conta, tentando conter a emoção, que sua mãe faleceu dois anos depois de sua partida, aos 49 anos. Depois disso, teve certeza de que não voltaria mais.
– Quando o cordão umbilical foi cortado, as agruras de deixar a família, todos esses sentimentos se transformaram em vontade de vencer.
Era o único filho homem de pai e mãe, que tiveram também três meninas. Depois, o pai se casou novamente e teve outros dois filhos.
Giuseppe Spedicato era agricultor, na pequena Veglie, que hoje tem entre 14 e 15 mil habitantes. Seguiu os caminhos de seus pais, Vincenzo Spedicato e Luigia Bisconti.
Os avós maternos, Vincenzo Vetere e Addolorata Potí, eram artesãos, com uma fábrica de sapatos.
De raiz muito católica, a rotina de domingo da família era a missa. Vincenzo conta que, com esse contato na igreja, pôde aprender o latim.
Nasceu em 10 de dezembro de 1948. E faz um adendo:
– É o dia, mês e ano da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Uma das maiores conquistas da humanidade. Nunca houve tão significativa evolução do ser humano na conquista da civilidade.
Entre as lembranças da família, não pode passar pela guerra sem notas. Seu pai integrou o exército de Mussolini. Contava que, já no final da guerra, os ânimos entre soldados italianos e alemães ficaram acirrados. Apesar de serem aliados no começo, alguns soldados italianos foram presos em campos de concentração alemães.
Enquanto jovem, preferia silenciar suas lembranças. Só na velhice compartilhou com os filhos um pouco do que lhe afligia. No campo, era ordenado a levar prisioneiros para o “banho”, sem saber se voltariam ou se seriam mortos.
Um dia, se deram conta de que estavam sozinhos ali. Os guardas alemães haviam ido embora. Com medo e sem saber o que estava acontecendo, empreenderam fuga a pé. Foram caminhando da Alemanha até a Itália, escondidos durante o dia e andando a noite. Só souberam que a guerra havia acabado quando, finalmente, chegaram ao destino.
Giuseppe foi presidente de uma associação que prestava apoio aos combatentes e suas famílias. Na casa de Vincenzo, havia latas de mantimentos que o pai distribuía. Já grandinho, ele foi compreender que se tratava do Plano Marshall, iniciativa dos EUA para reconstrução dos países aliados no pós-guerra.
Seu pai distribuía mantimentos para famílias que foram para a guerra. Muitos dos homens das casas não haviam retornado. Todas essas vivências falavam alto dentro do Vincenzo jovem.
– Por isso, quando eu vim para o Brasil o meu pai falou: ‘Vai’. Com a guerra, ele se tornou um homem do mundo.
Vincenzo conta que sempre foi muito estudioso. Entrou na escola aos cinco anos e, aos 21, quando partiu, já estava formado em Engenharia Elétrica.
– Eu nunca havia pensado em morar em outro lugar. Mas sentia que meu mundo lá era muito pequeno. Acabei mudando de cidade, de país e de continente.
Chegou com emprego em uma empresa de telefonia. Viajava o Brasil todo, no tempo em que o telefone ainda era de manivela nas cidades do interior. Esteve em Orlândia para implantar o sistema de telefonia da empresa, e se encantou.
– É como se estivesse replicando minha cidade lá na Itália. Em cada rosto daqui, vejo um amigo de lá.
Havia encontrado o lugar perfeito para implantar o sonho. E se apressou em começar. Pediu demissão e, em 1973, fundou sua própria empresa: Intelli (Indústria de Terminais Elétricos), com cinco funcionários.
Nesse começo, produzia terminais elétricos, luvas de emenda e conectores. Hoje, possui portfólio com quase 10 mil produtos para os setores de transmissão e distribuição de energia, sistemas de aterramento e de transmissão de dados.
Foi por volta da década de 70 seu primeiro casamento, que lhe trouxe os dois primeiros filhos, Renzo e Chiara. Nesse começo, dividia os turnos. Na metade do período cuidava da empresa recém-aberta e na outra parte do dia prestava consultoria para telefonia. Era preciso manter as contas.
A empresa foi crescendo, expandindo territórios para além da pequena Orlândia. Em 1990, passou a atuar também na produção de bimetálicos, que consiste na utilização de dois metais diferentes na produção do mesmo fio, combinando as propriedades dos materiais puros de maneira otimizada, segundo a necessidade dos clientes.
Hoje, 47 anos depois, o grupo possui um complexo fabril com quatro unidades na cidade de Orlândia, uma fábrica em Campinas e outra em Três Lagos (MS) e exporta para 60 países.
– A sorte só ajuda o audacioso. O cara que não faz nada nunca vai ter sorte.
Compartilha a frase que ouviu, na história das conquistas do Império Romano, em latim: “Audaces fortuna juvat”.
Futsal: paixão brasileira
Foi encantamento ao primeiro gol. Logo quando chegou no Brasil, Vincenzo se encantou pelo futsal. Mas fez uma ressalva: “Esse esporte deveria estar na Itália, que é frio. Não nesse calor, jogando em ambiente fechado”.
Não levou o futsal para lá, mas tomou o esporte como uma paixão brasileira.
Procura estar sempre envolvido na comunidade das cidades onde vive. Enquanto morou em Orlândia, participou de associações, entidades na cidade. Depois que se mudou para Ribeirão Preto, após o segundo casamento, em 1989, manteve a mesma conduta por lá.
Do segundo matrimônio, com Márcia Prudente Correa, sua atual esposa, vieram os filhos Marina, Lorenzo e Fiorella.
O futsal, assim, está entre um dos legados que se orgulha em deixar. Criou o time de futsal de Orlândia e, como presidente e financiador, viu a equipe conquistar prêmios e se tornar conhecida Brasil afora.
Foi tema de reportagens no meio esportivo por uma característica peculiar. Tinha lugar cativo no banco de reservas, para estar perto dos jogadores. Era registrado como massagista, apesar de nenhuma vocação para a função. Uma maneira de manter-se ali: pertinho do campo, sentindo o cheirinho da bola entrando pela trave.
– O que eu faço aqui em Orlândia é para retribuir à cidade o que ela me deu ao me acolher.
Também encontra uma forma de estar conectado com sua terra natal e com Ribeirão Preto, onde mora há três décadas, com caminho de ida e volta diário para Orlândia.
Há 18 anos, foi nomeado vice-cônsul da Itália na região. Comprou uma casa em Ribeirão e transformou em consultado. Em 2007, realizou ópera no Theatro Pedro II para comemorar a ponte entre Itália e Brasil, com homenagem à sua mãe, Chiara.
– Eu devolvi tanto para a sociedade aqui, então tenho que devolver também para a minha pátria, que me deu o natalício.
Coração dividido
Em toda entrevista, uma pergunta Vincenzo se negou a responder. Garantiu que essa resposta vai levar consigo, quando partir dessa terra. Quando jogam Brasil e Itália, para quem vai a torcida do coração?
– Eu já sou campeão por antecipação. Se ganhar o Brasil, sou campeão. Se ganhar a Itália, também sou. Mesmo que exista uma preferência, vou esconder até o meu túmulo. Quem você honra? A mãe nativa ou a mãe que te adotou?
Tem dupla cidadania, buscando honrar as duas pátrias do coração. E ensina esse amor para os filhos, brasileiros de nascença e italianos em raízes.
Entende a importância de se preservar a história.
– Ninguém pode olhar para frente sem olhar para trás. A vida é uma corrente. Se você perder algum elo, se perde.
Vice-presidente da Casa da Memória Italiana, participou da fundação da instituição.
– O homem tem memória curta. Um monumento é lembrar de alguma coisa que aconteceu. Se não houver o monumento, o homem perde a história, um elo de sua vida, e perderá a si próprio.
Na sua sala, lá na empresa, honrarias, homenagens, quadros e fotos se multiplicam pelas paredes. Reconhecimento pela trajetória.
O pai conta, cheio de orgulho, que seus quatro filhos estão trabalhando na empresa. A caçula, ele espera, logo há de vir. Assim como os netos. E por aí vai.
– Hoje eu não tenho mais o direito de vender. Não tenho o direito de vida e de morte sobre a empresa. Quantos trabalhadores estão aqui? Penso em perpetuar as coisas através dos netos. Tenho que ensinar a voar para ter sucessão. Não é simplesmente deixar patrimônio.
Os filhos estão ali, mas ele continua trabalhando. Na empresa, a seriedade é pilar. Diferente da postura descontraída de casa.
– Não pode confundir seriedade com tristeza. Você sai para a vida e tem que desempenhar papeis.
As pessoas próximas até falam: por que não diminuir um pouco o ritmo? Nesse assunto, Vincenzo é italiano teimoso. Não tem conversa.
– Estou com 71 anos, mas me sinto como alguém de 30. Vou me esforçar para ver onde vou chegar. A vida é isso para mim: uma missão. Quanto mais você faz, mais tem que trabalhar para cuidar do que construiu.
Segue trabalhando e garante: tem ainda muita história para escrever.
Legendas
1: Vincenzo Spedicato: coração dividido entre a Itália e o Brasil
2: Vincenzo na Itália, pouco antes de embarcar para o Brasil, por volta dos 21 anos
3: Chiara Vetere e Giuseppe Spedicato: pais de Vincenzo
4: Família Spedicato: Vincenzo rodeado pela esposa, filhos e netos
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Linda a história do Vincenzo, um grande amigo que o Brasil ganhou.
Sou natural de orlândia, e posso dizer uma coisa com muita certeza, esses europeus só vieram para o Brasil com intenção de parasitar nossas riquezas. E no caso desse italiano, também não é muito diferente…
Sr Vincenzo deu muito mais a Orlandia do que qualquer um poderia pedir. Transformou uma cidade na capital brasileira do futsal, gerou centenas de empregos e auxilia inúmeras famílias. Se isso é parasitismo no seu conceito, acredito que sua concepção está um pouco equivocada.
Sou motorista de um grande amigo do Sr.Vincenzo aqui na cidade de São Paulo, e conheci o Sr.Vincenzo e conforme o histórico e a importância que ele tem na sua cidade e por tudo que está fazendo em prol da sociedade com os seus projetos de inserir os jovens no mercado de trabalho,venho parabenizar o Sr.Vincenzo e família por tamanha generosidade e grandeza.
Parabéns família pela justa homenagem e pela fundação da
Instituição” IVAS”