Advogado, político, pai, filho, mestre das palavras: Feres Sabino é muitos. No currículo de 26 páginas não faltam titulações, menções, honrarias.
Sobretudo, há em cada face um humanista.
Ele conta da profissional que compilou seus textos e organizou em ordem cronológica. Na apresentação da obra, ela assim definiu: “Em todos os textos os valores são os mesmos”.
São 78 anos construindo valores. Construindo, porque o trabalho continua. Feres engana o tempo com a mente – mais que sã – em pleno senso crítico.
– Sou um otimista inveterado, mas nunca perdi o senso de realidade. Tenho a pretensão de nunca chegar ao delírio da idiotia.
Amarga a decepção de, mais uma vez, testemunhar um país despedaçado. E segue.
Quando assumiu cadeira na Academia Ribeirão-pretana de Letras teve Euclides da Cunha como patrono. No seu discurso, lembrou ‘Os sertões’, para falar de um Brasil que “ainda hoje bate a cabeça na história”.
Falou também das palavras, que são tão individuais quanto coletivas, porque repletas de sentidos.
Neste texto do História do Dia, de um Feres tão individual quanto coletivo, as muitas faces de Sabino estão divididas em temas, assim como o livro de Euclides.
Não há outra forma de perfilar vastidão.
Feres das palavras
Antes de tudo, Feres descobriu as palavras. Foram elas que o levaram a escolher o Direito. Nos debates da escola, entendeu que com elas poderia construir o que quisesse, inclusive Justiça.
Compreensão que veio no amanhecer.
Aos 14 anos, já atuava no Diário de São Paulo, com escritório e telefone próprio em Ribeirão Preto: luxos da época.
Aos 17, fez entrevista que marcou sua história. O Diário de São Paulo pediu que o menino entrevistasse Ana dos Santos Gabarra, ribeirão-pretana que acabara de ser eleita Mãe do Ano, pelo Concurso da Mãe Paulista, dos Diários Associados, por criar 11 filhos. Hoje, uma escola leva o nome dela.
– A entrevista não teve nada de excepcional. Excepcional é a história dela.
Modesto.
Teve a reportagem publicada na capa do jornal e anos mais tarde foi citado em um livro do filho de Ana. Houve um equívoco, porém:
– Ele citava o estudante de Direito que havia entrevistado sua mãe. Eu não era estudante de Direito. Eu era um aluno de colegial!
Cai na risada. Espirituoso que só, coloca poesia até no riso.
– Meu riso é filosófico.
No corredor da casa onde mora, honrarias se misturam a um texto de Feres tombado junto à obra “Painel Bandeirantes”, parte do Acervo Artístico e Cultural do Palácio do Governo de São Paulo, e a um poema de Cora Coralina, dedicado à sua esposa Kátia.
Conta que receberam a preciosidade em mãos da poetisa mineira, que se tornou amiga de um amigo e querida pelo casal.
Não há cargo que Feres tenha assumido sem um discurso pensado palavra por palavra. Não há problema em que as palavras não tenham sido caminho para a solução.
Já era de se esperar a nomeação para a Academia Ribeirão-Pretana de Letras Jurídicas. Mas Feres vai além. Torna literário o artigo jurídico.
“A propósito, um princípio vale mais que uma regra”, escreve no requerimento publicado em Diário Oficial, contestando a não admissão de um preso em concurso público. Suas palavras rodaram as unidades prisionais, intentaram mudança.
Escreve artigos de opinião, colabora em jornais, já fez prefácio de livro, publicou textos em revistas. Hoje, criou um site próprio como espaço para publicar o que pensa. E o faz, com frequência e sem limites de caracteres.
“Aquela fila indiana formada por pessoas de variadas idades e etnias quase cortava ao meio a Praça da Sé, e elas subiam silenciosas as escadarias da Catedral. Os fiéis se aproximavam, passo a passo, do corpo sem vida encoberto pelos cânticos religiosos. Esse retrato revela que se realizava ali a maneira como ele escolheu para ser lembrado – amigo do povo”, escreve em um artigo sobre Dom Paulo Evaristo Arns, que titulou de “O semeador da esperança”.
Houve quem questionasse: um advogado na Academia Ribeirão-pretana de Letras? Os textos responderam ao questionamento e, em 1999, Feres passou a ser membro do órgão.
– A palavra sempre foi para mim uma pátria de uso rigoroso, para que as pessoas não se iludam com o que quer que seja.
Define o uso delas. Sem significar, porém, que, por definidas, sejam limitadas.
– Rigor? Não sei se essa é a palavra certa para definir a forma como eu as uso. Porque tem liberdade poética! Com rigor, seria reprimir a palavra.
Feres do Direito
– O Direito é vocação.
Entrou com naturalidade, pelo percurso do colégio. Ele diz que o colégio “foi além da educação formal e clássica”. Deu a dimensão da vida política.
Feres pensou em ser médico. Escolheu as optativas científicas, na escola da época. Percebeu rápido que o caminho era outro.
Aluno do Otoniel Mota, criaram um parlamento estudantil, como semente na formação do senso crítico político. Quando o colegial terminou, estava imerso na busca pela democracia.
Em 1960 foi para o Largo São Francisco, Faculdade de Direito da USP São Paulo, e por lá passou os cinco anos mais quietos – e reflexivos – da vida. É o que explica quando a pergunta é se sempre teve o humor na ponta da língua.
– A exceção foi a faculdade. Eu fiquei silencioso e só falava coisas sérias. Depois, fui voltando ao normal. Retomando o que sou: sempre tive bom-humor com a vida!
O silêncio interno serviu para escutar cada ruído da efervescência externa.
Depois de formado, Feres exerceu o Direito em suas múltiplas formas: foi advogado, criou a Associação dos Advogados de Ribeirão Preto em 1970, foi presidente da OAB de Ribeirão Preto e, em 1985, chegou a Procurador Geral do Estado, no Governo Montoro.
Do cargo, guarda placa – pendurada junto ao poema da Cora – assinada por Montoro, que agradece ao advogado pelos serviços prestados. E a lembrança da manifestação de agradecimento com 400 assinaturas que recebeu quando se despediu do cargo, dois anos depois. Agradeceu com discurso, como só poderia ser.
– Nada fiz que não pudesse contar sorrindo pelas esquinas da minha cidade.
Em 1996, foi nomeado diretor-executivo da Funap, fundação que presta apoio ao preso de São Paulo. O cargo consta no currículo. É preciso um tempo de conversa com Feres para saber que, à frente da instituição, ele abriu diálogo entre presidiários e crianças.
Criou programa em que os presos reformavam carteiras escolares. Como agradecimento, os alunos escreveram cartas que foram entregues aos detentos e, depois, transformadas em uma cartilha que rodou o Brasil.
Ali, mais uma vez, Feres colocou o humano acima de qualquer instituição. E as palavras das crianças, em carta, intentaram a mudança.
O Direito de Feres é assim: humano.
Integrou a Comissão de Direitos Humanos Federal e Estadual da OAB e em Ribeirão Preto presidiu a Comissão da Verdade, criada em 2014 com o objetivo de tirar do passado as atrocidades da ditadura.
Encerrou o trabalho em que ouviu os depoimentos dos torturados com um texto: “A história que não queriam fosse contada”. Feres a contou.
Feres da Política
Direito e Política estão de mãos dadas para Feres. As palavras dão liga às duas instâncias.
Às vezes, falam além do que deveriam. Feres conta que foi chamado de “comunista” por longos anos em Ribeirão Preto.
– As pessoas atravessavam a rua para não falar com a gente, tal era o clima de radicalização.
Diz que o apelido, porém, não incomodava.
Em 64, foi preso pelo Dops em São Paulo porque seu nome estava na mesa do presidente da Supra (Superintendência de Reforma Agrária). Prestou depoimento e saiu no mesmo dia.
Na mesma década de 60, atuou em uma cooperativa de trabalhadores de Guatapará. Fizeram um experimento: colocaram os trabalhadores, os homens que lidavam com a terra, para coordenar a plantação de melancia no lugar dos agrônomos.
A plantação prosperou tanto que, assim como Feres, era chamada de “experiência comunista”.
– A melancia dos agrônomos ficou pequena como uma abóbora. Mas uma abóbora nanica. A dos trabalhadores, ficou enorme.
A pressão da polícia na “melancia comunista” foi tanta que tiveram que parar a plantação. A ideia política semeada ali sempre esteve com Feres, porém.
– Eu sempre acompanhava a preparação dos trabalhadores, as reuniões que faziam. Em uma delas, um dos homens instigou: ‘Águas passadas movem moinhos?’. E respondeu: “Movem, sim. O moinho seguinte!’.
A política, como as palavras e o Direito, também vieram ao amanhecer de Feres.
Além do parlamento estudantil na escola Otoniel Mota, em 1958 foi presidente do Centro Nacionalista Olavo Bilac.
– Nós fizemos campanha e distribuímos a frase: ‘Eleitor, exija de seus candidatos dupla declaração: de bens e de princípios’.
Na faculdade, Feres fundou o Partido Socialista Acadêmico.
Já formado, foi um dos fundadores do partido MDB (Movimento Democrático Brasileiro), que foi contrário ao regime militar em 1964. Pela legenda, se candidatou à prefeitura de Ribeirão Preto em 1976.
Não ganhou, mas se sentiu vitorioso.
– Nós tivemos só 40 dias para a campanha e conseguimos 10 mil votos.
Em 2008, tentou a candidatura à prefeitura mais uma vez, pelo Partido dos Trabalhadores – do qual frisa que não faz parte mais desde 2014.
A decepção de Feres com a política atual se materializa nos olhos baixos e na cabeça que balança de um lado a outro enquanto repete:
– Hoje está pior que em 64.
A sensação é de, mais uma vez, entregar o país ao caos.
– A gente sempre quis ter um país diferente. Agora, vê um país desossado, sendo vendido aos pedaços. As estruturas de poder estão assentadas sobre a desigualdade social e a economia.
Hoje, a consternação tomou conta. Feres, de tanta luta, tenta pegar as gotas finais de esperança no riacho poluído.
– Eu sou otimista, mas não sou ingênuo. Por enquanto, a perplexidade tomou conta. É um momento de retrocesso. Um país como esse só pode ser a eterna promessa.
O Feres de tanta política, aos 78 anos, é desânimo.
Feres da vastidão
Na mesinha da sala, local de destaque, Feres coleciona imagens de São Francisco de Assis. O protetor dos animais esculpido em diversas formas e materiais.
O homem das palavras, do Direito, da Política é um homem de fé.
– A minha fé é inabalável em qualquer tipo de experiência.
Feres Sabino nasceu em Brodowski, filho de pais libaneses, que vieram ao Brasil tentar a vida. O pai era comerciante, a mãe dona de casa e os cinco filhos – três homens e duas mulheres – conquistaram formação superior.
– Meu pai tinha fama de ser rico. Ele dizia: ‘Sou mesmo, porque tenho cinco filhos com profissão’.
A família mudou para Ribeirão em 1947, pelo estudo dos filhos.
Feres só casou em 1971, aos 33 anos. O “só” vem pelas tradições da época, do matrimônio o quanto antes como regra.
Imerso no Direito e na Política, ele não guardava tempo para romances.
Kátia, porém, “estava predestinada”. É o que a história conta. O amigo que apresentou os dois avisou antes do primeiro encontrou: ‘Você vai conhecer a mulher com quem vai casar’. Mas Feres não quis ir. Fugiu, dessa primeira vez.
Seis meses depois, porém, não conseguiu escapar. Encontrou Kátia tentando fugir do segundo encontro armado pelo tal amigo.
– Que coisa, né? Foi muito forte meu encontro com a Kátia.
Casaram menos de um ano depois, tiveram dois filhos meninos, conquistaram juntos muito mais que o poema da Cora Coralina com dedicatória emoldurado na parede – e olha que, por si só, o poema bastaria.
Mas a vida nem sempre é poesia.
Em 1984, Kátia morreu em um acidente de carro. Mesma época em que Feres foi indicado ao cargo alto da carreira, Procurador Geral do Estado.
– Foi um momento gigantesco na minha vida. Uma realização profissional em meio à tragédia familiar. Foi um desafio para nós todos.
Não se casou mais. Não que as paixões não tenham surgido. Diz que, sim, ocorreram. E hoje até se questiona:
– Me pergunto porque não me casei com todas elas, tamanho é o respeito que tenho por cada uma!
Mais que nunca, o humor está na ponta da língua.
Feres ambienta a entrevista com música clássica, janelas da sala bem abertas para o sol, nenhuma pressa. Não atropela as palavras, não se incomoda em repetir.
Mostra o livro que está lendo no momento, aproveitando o tempo que a cirurgia de abdômen que fez recentemente abriu durante a recuperação.
Aos 78 anos, atua como advogado e não entra em papo de aposentadoria.
A conversa só termina porque o relógio não entende o tempo da vastidão.
À pergunta quase final, ele responde com elogio. Modesto – mais uma vez.
– Se eu me sinto realizado? A sua presença aqui me dá a sensação de colheita. Quando você vem saber da minha história, sinto que estou colhendo o que plantei.
Diz que não tem medos – com a voz ainda mais serena, como se quisesse evitar qualquer dúvida.
– O medo e a omissão são duas palavras que não passam pela minha gramática.
Quando a entrevista termina, troca a música clássica por um bom sambinha. Enterra as angústias políticas e as tristezas passadas entre as palavras cantadas.
Está de bom humor com a vida – ou sempre esteve?
Tive a honra, quando Coordenador Nacional da CDH, do Conselho Federal, OAB, gestão Batochio, de contar com inestimável assessoria de cidadão desse quilate. Um sábio, caráter retilíneo, espírito lúcido. Honra, com dignidade, a luta que lhe foi destinada!
Tenho a honra de conhecer Feres Sabino dos idos de 1986, quando me associei a AARP, a qual participou da fundação, sendo seu primeiro Presidente. Tenho a honra de receber quando oportuno, as lições por ele dadas, ainda na AARP. E, tive a honra de conhecer nesse texto, a humildade de um grande homem. que trilha seu caminho, sem deixar seja colhido pela desesperança. Gratidão Feres Sabino.