Esta história faz parte do projeto “Patrimônio em Memórias” realizado com apoio do Proac LAB, programa da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo.
Texto e fotos: Daniela Penha
Ilustração de Luciano Filho, exclusivamente para o projeto “Patrimônio em Memórias”
Na pequena sala, ao final do corredor de madeira, parte mais antiga da escola, a história se materializa. Carteiras de tinteiro, telefones, bandeiras, relógios, fotos, recortes de jornal, jogo de café, o esqueleto das aulas de ciência, castiçais, televisores. A trajetória da Escola Estadual Guimarães Júnior, a mais antiga de Ribeirão Preto, está guardada em objetos que marcam tempos, relíquias que relembram o quanto a sociedade se transforma.
– O papel da história é dar às pessoas a janela para que possam fazer o próprio caminho. Quando não se tem referências, não se pensa no amanhã.
Alfredo Carlos Poggi, 69 anos, é um colecionador. Coleciona memórias e histórias. Para tal, valoriza cada objeto do ontem que ajude a explicar o agora. Se tornou, assim, restaurador. Não como profissão, mas por gosto. Usou esse conhecimento para criar o Museu Didático da Escola Estadual Guimarães Júnior, que se espreme na tal sala ao final do corredor e já soma 12 anos de existência.
Ele mesmo restaurou os objetos que garimpou na escola. Também doou peças do seu acervo pessoal para ajudar a compor o acervo do museu.
– Muitas peças se desmancharam com o tempo, outras foram vendidas, doadas. Não se pensou em guardar essas memórias… Teríamos um acervo muito maior!
Primeiro conheceu a escola em suas raízes. Entrou como diretor em 2001, depois decidiu seguir como professor e foi descobrindo os segredos escondidos na instituição centenária.
– Ali eu me achei, me encontrei. Fui entendendo o que era aquela escola, o que eram aquelas paredes.
Está aposentado desde 2015. Então, assumiu o papel de voluntário. Ia à escola diariamente para transformar em material preservado documentos e registros deteriorados, mofados, abandonados.
Manter o museu funcionando há tanto tempo exige muita insistência – e um bom tanto de paciência também. A semente da preservação precisa ser regada todos os dias.
– O museu mudou de lugar três vezes. Ele acaba ficando destinado ao espaço que sobra na escola. Ainda não ganhou a praticidade para as visitas dos alunos, não faz parte do circuito de museus de Ribeirão, não é divulgado.
Ele, então, segue sua jornada. Atualmente, reduziu as visitas à escola, mas não consegue ficar longe. Se preocupa em saber se as coisas estão no lugar, se a salinha continua repleta de memórias. É um guardião de memórias.
Imigrantes italianos
Em seu nome há história. Alfredo Carlos também foram os nomes de seu avô e bisavô. Família de imigrantes italianos, vieram para trabalhar nas fazendas do interior de São Paulo. As péssimas condições de trabalho, bem diferentes do que fora prometido, fizeram o bisavô esconder uma garrucha Laport para fugir do dono da fazenda, em meio a tiros.
– Eu tenho até hoje essa garrucha!
Se estabeleceu como comerciante no ramo de transportes, feitos naquela época por carroções puxados por burros. Dos quatro filhos, dois sobreviveram. Entre eles, o avô de Alfredo, que teve sete filhos. O pai de Alfredo foi um deles. Aos 18 anos, partiu para São Paulo construir a vida.
Alfredo nasceu em 1953, em terras paulistanas. Em 1959, a família se mudou para Ribeirão Preto, de onde ele não mais saiu.
– Aqui eu casei, tive meus filhos, trabalhei, me aposentei e estou até hoje!
Assim como seu pai, ele estudou na Fundação Paula Souza. Saiu com formação técnica em artes manuais. Então, passou na prova de admissão ao ginásio, exigência daquela época.
– Isso foi um evento para a minha família. Fui o primeiro da família a ir para o ginásio!
Educação que transforma
Por um tempo, Alfredo não pensou em ser professor. Cursou Administração de Empresas e trabalhou na área por alguns anos. Quando tinha seus 31, 32 decidiu cursar História, na faculdade Barão de Mauá.
– Na minha família, a profissão de professor é muito antiga. Minhas tias eram todas professoras! E muitas lecionaram ali, no Guimarães Júnior.
Viveu a faculdade quando o Brasil recém saía da Ditadura, entre 1983 e 1986. E decidiu lutar. Participava do Diretório Acadêmico, fazia manifestações contra o governo, gritava por direitos.
– É o afã de querer mudar a realidade do mundo.
Por um tempo, conciliou o trabalho em uma empresa multinacional alemã com as aulas em uma escola. Mas a saúde pediu trégua.
– Tive um blackout cerebral! Apagou a memória. O médico avisou que eu não poderia mais continuar com aquela rotina, trabalhando 15 horas por dia.
Escolheu continuar na sala de aula e pediu demissão.
– Se você fizer alguma coisa na qual não acredita já está fadado ao fracasso. Você precisa acreditar que aquilo pode mudar realidades. Esse é o papel da educação: mudar realidades, mostrar que existem outros patamares a serem atingidos.
A Educação na qual acredita entende os alunos como singulares e a sala de aula como espaço para troca, construção, abertura.
– Todo conceito, seja qual for, precisa ter uma explicação prática para mostrar ao aluno que a escola tem sentido, ela é viva.
Lecionou por seis anos em uma escola de Cruz das Posses. Os alunos trabalhavam cortando cana no contraturno escolar.
– Ninguém queria lecionar lá. Eu me realizei plenamente. Vi meu trabalho render frutos. Tive um aluno que levava os livros para o canavial e estudava para chegar já sabendo a matéria. Ele dava uma aula com as palavras locais.
Museu vivo
Chegou na escola Guimarães Júnior em 2001, como vice-diretor. Entre 2008 e 2009, decidiu se dedicar exclusivamente à sala de aula, como professor do Ensino Médio. Em 2010, começou a montar o museu. Diz, todo orgulhoso:
– É a única escola de São Paulo que tem um museu didático dentro das suas instalações.
No acervo, procura retratar a trajetória do ensino na instituição.
– Tudo o que tem dentro do museu é ligado às funções da escola: Ciências, Arte, Literatura. Até mesmo a merenda escolar está retratada.
Entre suas pesquisas e restauros, passou a conhecer a história da escola em profundidade.
– Tudo passa, tudo se transforma, tudo se modifica. Esse é o processo. Nada vai ficar igual para sempre. A gente tem que ir resgatando o que está parado e mostrando o que é importante para a sociedade.
Conta que a escola, criada em 1895, ficava em outro prédio. Só foi transferida para o atual em 1920. Seu primeiro nome era 1º Grupo Escolar, fazendo jus à classificação de primeira escola da cidade.
Depois, foi rebatizada com o nome de Guimarães Júnior, um médico que teve papel fundamental para a criação da instituição.
Alfredo pode passar horas contando as histórias da escola, e não fica sem assunto. Caminhando pelos corredores, ele enche o peito de orgulho. No museu, conta a história de cada peça, em detalhes.
Lá fora, posa em frente ao enorme ipê que também é legado seu. Ganhou a muda em uma ação ambiental e plantou ali, décadas atrás. Hoje, quando o ipê amarelo floresce, ele relembra a importância do semear, de se fazer e ser história.
– Como será o amanhã? O homem que não busca conhecer seu passado, não entende seu presente e muito menos seu futuro.
Aos 69 anos, diz que só é idoso na regulamentação. A cabeça é energia pura, que pulsa e se manifesta nas muitas ideias que ele transforma em palavras, artes, feitos. Pinta quadros, já escreveu livros com a trajetória de sua família como legado para os netos.
Tem um tantão de planos para esse amanhã, que se pauta em muita história.
Quer ver o museu vibrante, como todo museu deve ser. Funcionando e ensinando alunos e professores.
– Museu é lugar de conhecimento, formação, opinião, cultura. Ali, nossas raízes ficam preservadas. Eu quero ver o museu vivo!
Pensa também em cursar Arquitetura.
– Quero aprender, ser aluno de novo. É muito bom ser aluno!
O aprendizado, assim como a história, está sempre a se renovar. Segue, então, colecionando vivências presentes, memória no futuro.
História do patrimônio
A Escola Estadual Guimarães Júnior foi inaugurada em 1º de julho de 1895, somando 127 anos de história. Inicialmente, a escola funcionava em dois prédios, um na rua Duque de Caxias e outro na rua do Comércio. Depois, a escola foi transferida para o edifício onde está ainda hoje, na rua Lafaiete, número 584, construído a partir de um conjunto de projetos de José Van Humbeeck.
Assim como a Escola Estadual Sinhá Junqueira, a instituição foi construída durante a Primeira República, época marcada por políticas públicas de valorização do ensino primário, com a formação de professores e professoras para a docência.
É a escola mais antiga de Ribeirão Preto. Pesquisas do professor Alfredo mostram que no ano de 1907, o número de matrículas foi de 401 alunos, dos quais 209 eram meninas e 192 meninos. O prédio foi tombado pelo Conselho do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat), em agosto de 2002.
Mais informações sobre o tombamento: http://condephaat.sp.gov.br/benstombados/e-e-dr-guimaraes-jr/
Mais histórias de afeto com o patrimônio
Incrivel! Parabens professor Alfredo.
Que delicia de matéria. Fui alfabetizado na escola estadual Guimarães Júnior nos anos de 1980 e 1981.
Queria tanto saber os nomes das minhas professoras. Essa escola me traz lembranças de minhas descobertas e das primeiras escritas e contas. Ah matemática!!! Risos.