Aos 62 anos, Lina faz faculdade de Pedagogia na USP Ribeirão Preto

9 dezembro 2019 | Gente que inspira, Histórias do Proac 2019/2020

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Na agenda de Lina as atividades se misturam. Participa de um grupo da terceira idade no clube, com aulas de ginástica e dança de segunda à sexta. No mesmo cronograma, coloca as aulas da graduação em Pedagogia que está cursando na USP Ribeirão Preto.

Aos 62 anos, é a aluna mais velha da sala. Nem por isso deixa de ser convidada para as festas e barzinhos. No seu aniversário, inclusive, os colegas organizaram uma comemoração com bolo e tudo na casa de uma das meninas.

Lina, que não é muito de festas, esteve presente nessa. Às 22h30 foi para casa, porque se sentiu “atrapalhando” os festejos que seguiram até a madrugada.

A vontade de estudar começou na infância. Conta que sempre foi a melhor aluna da sala. Os caminhos, porém, a fizeram trocar o sonho da faculdade por muito trabalho. Não desistiu. Guardou-o em uma caixinha, por dentro.

Mesmo sem a formação acadêmica, desde muito jovem ela dá aulas particulares em casa. Diz que, entre as dezenas de livros que devora, estão muitos de gramática e inglês, fonte do conhecimento que procurava passar aos seus alunos.

– Eu nunca deixei de aprender!

Depois dos 60, percebeu que havia chegado a hora. Os dias estavam mais calmos e era tempo de resgatar o sonho. Passou na USP em 2018, através do Enem, e está no segundo ano do curso.

– Eu sou mais velha do que os professores!

É um fato. Mas não lhe incomoda.

– Esse negócio de tempo… nunca dei atenção para isso. Nunca me senti criança, adolescente e não me sinto velha. Parece que ser atemporal é ir vivendo!

Antes de começarem as aulas, se preocupou um pouco. Se define como “conservadora e crente”, em suas palavras. Segue a religião evangélica e tem suas opiniões sobre assuntos que causam polêmica. Teve medo de ser “rejeitada”. Na turma feita de gente com décadas de distância, entretanto, encontrou um espaço de empatia.

– Quem me convida para o grupo é um ateu comunista, um filósofo, um economista e uma moça homossexual. Eu os respeito e eles me respeitam. Eu os vejo como pessoas boas, que buscam algo, assim como eu.

Assim como a vontade de Lina, “aprender” e “respeitar” são verbos que não envelhecem com o tempo.

Lina USP Ribeirão Preto

Gonçalina Barbosa dos Santos é a mais velha entre 10 irmãos.

– Lembro que, a partir do terceiro filho depois de mim, eu já me sentia responsável, junto com minha mãe, por cuidar deles.

Ajudava em casa e aos nove anos começou a trabalhar fora, fazendo faxina na vizinhança. Aos 12, já tinha carteira assinada.

Como era miudinha em estatura, os pais acharam que aos sete anos ela ainda era muito pequena para entrar na escola. Como a vontade de aprender a ler era grande, Lina pedia que os tios mais velhos lhe ensinassem as letras. Quando finalmente foi matriculada, aos oito anos, já sabia todo o alfabeto.

– Mas eu não via a hora de juntar, formar as palavras. Fui uma aluna sempre muito adiantada. Amava aprender!

A família se mudava muito, pelo serviço de motorista e tratorista do pai, que também trabalhava na lavoura. Ela cursou o grupo em quatro cidades diferentes. Em Morro Agudo, encantados com a menina que havia lido toda a obra de José de Alencar disponível na biblioteca, os professores se ofereceram para ficar com ela quando a notícia de uma nova mudança veio.

– Meu pai nunca iria aceitar! Mudamos para Ribeirão.

Chegaram em 1970 e, naquele ano, o pai não quis que ela se matriculasse na escola. “Tá pronta, já estudou bastante”, dizia ele, que nunca na vida custosa pôde estudar e achava mesmo que a filha já havia trilhado um bom caminho.

Lina não desistiu. Passou um ano sem ir na escola, mas no seguinte, aos 13, se matriculou e buscou ajuda na Secretaria de Educação. Ela trabalhava, mas entregava todo o salário em casa. Como o pai não aceitava a escola, não iria lhe comprar os materiais para estudar.

– Eles me ofereceram cadernos, canetas, livros usados.

Ganhou o uniforme antigo de uma colega de sala, que comprara peças novas e foi estudar.

Entre um esforço e outro, Lina conseguiu terminar o Ensino Médio, com técnico em administração. A jornada era dividida – e corrida. Trabalhou dos 13 aos 18 anos em uma fábrica de caixas de sapato e embalagens para joias.

Em 1975, conseguiu trabalho em uma grande fabricante de eletrônicos. Dois anos depois, quando terminou e chegou a hora da faculdade, não teve muita escolha. Explica que, na época, não conseguiu cursos públicos no período da noite. Tinha que trabalhar o dia todo e essa seria a única opção para uma faculdade.

– A noite, eram particulares e eu não podia pagar. Mesmo querendo muito, não pude.

Mesmo sem o curso de Pedagogia, conta que, desde muito jovem, começou a dar aulas particulares. Ensina inglês, português para estrangeiros, dá aulas de reforço. Seguiu assim.

– Eu nunca parei de aprender.

Mesmo depois de casada, ela continuou ajudando sua família.

– Eu sempre soube que ser responsável pela minha família era minha missão.

Decidiu não ter filhos, por opção.

– Fui muito cobrada por isso. As pessoas não se conformam com as escolhas da gente. ‘Quando vem o bebê?’. Não vem!

Quando a empresa onde trabalhava fechou, em 1995, resolveu continuar com os trabalhos em casa, cuidando dos pais e de um dos irmãos, que tem síndrome de Down.

Continua nessa rotina ainda hoje. Seu pai teve um derrame em 2008 e ficou em uma cadeira de rodas. Faleceu em 2014. No ano passado, cogitou até trancar a matrícula porque as condições de saúde da mãe pioraram. Mas os irmãos incentivaram, intensificaram a ajuda e ela pôde seguir.

 – Eu tenho muita fé. Creio em Deus. Se eu sobrevivi a todas as dificuldades desde que nasci, é porque ele tem um propósito para minha vida.

Formada pela gramática e pelo uso correto da Língua Portuguesa, Lina diz que está aprendendo uma nova maneira de pensar na faculdade, que valoriza o conhecimento intrínseco de cada ser, a educação que não elimina a diferença.

– Eu brinco com os professores. Saí de uma sala no Ensino Médio, em 1977, e caí em uma sala da USP, em 2018.

Não aceita notas baixas.

– Eu quero o melhor. Se não der, tudo bem. Mas não vai ser por falta de tentar.

A formatura é daqui a dois anos, e ela já faz planos para o futuro. Já fala de mestrado. Por que não? Quer também atuar na rede pública de ensino, para agradecer o que recebeu. E nas “escolas cristãs”, como diz.

– Eu gosto de ensinar. Tenho isso como uma coisa natural.

Quando criança, sonhava em ser escritora. Mas diz que, apesar de ser muito leitora, nunca escreveu nada. Sonhou também com o Direito, mas o caminho se mostrou outro.

Depois dos 60, realiza, todo dia, o sonho do passado, renovado. A vida é mudança, afinal.

– O sonho era fazer uma faculdade. Não queria morrer sem realizar. Eu me sentiria infeliz se estivesse estagnada, sem visão de futuro. Meu pai não sonhava… eu tinha tanta pena. Eu quero ser uma pessoa que se maravilha, que se encanta e sonha.

Nesta semana, teve uma confraternização da sua turma de faculdade. Lina estava lá. Também não dispensa os encontros com as amigas dos grupos de terceira idade. “Ser atemporal, é ir vivendo”, ela bem disse.

 

*Quer traduzir essa história em libras? Acesse o site VLibras, que faz esse serviço gratuitamente: https://vlibras.gov.br/

 

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3 Comentários

  1. Luiz Nunes

    Parabéns! Aliás no Instituto Bíblico onde estudei em RP ela era a Professora de Português. Me alegro pela sua persistência.

  2. Ester

    Muito interessante ??
    Parabéns Lina por sua dedicação e empenho
    Que Deus continue a abençoar em seus objetivos ??

  3. isaias divino

    Interessante história, que possa lograr êxito nos próximos degraus propostos.
    Que o SENHOR te guie sempre.

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