Aos 82 anos, Simone lança livro e enfeita a vida com sua arte vinda do mundo

19 setembro 2019 | Histórias do Proac 2019/2020

Esta história foi narrada pela jornalista Daniela Penha. Para ouvi-la, é só clicar no play: 

 

 

Com a mãos, Simone transforma a rotina e enfeita a vida. Pintura à óleo, bonecas de pano, desenhos, quadros feitos de papel, sabonetes, porcelana, cerâmica, bordados, bolos, bolachas, poesias, reiki: não há o que ela não faça – ou não possa aprender.

Teve salão de cabelereira por décadas e diz que gostava de inovar nos penteados. Em cada cantinho de sua casa há uma peça a despertar encanto. No ateliê, são mais de 300 obras, ela me diz. Soma prêmios como artista plástica e, recentemente, aos 82 anos, lançou um livro de poemas.

Não é um livro comum – como só poderia ser. Encadernou cada um dos 72 exemplares à mão, com fitas de cetim, pano de bolinhas branco e azul claro, pérolas para adornar.

– Eu tenho que ter o pincel ou a caneta nas mãos. Gosto de criar.

E não barra a criatividade. Tem uma coleção de livros de confeitaria, mas modifica as receitas pela sua vontade. Faz vestidos de boneca de açúcar, bolachinhas enfeitadas com poesia para presentear uma amiga querida.

– Tem dias que eu levanto enlouquecida, querendo fazer tudo. E as mãos nem acompanham o que eu tenho na cabeça.

Elas se esforçam, porém. Já entenderam a parceira perfeita que se estabeleceu em 82 anos de trajetória.

– São as mãos e a cabeça: tudo de mim. Tem coisas que não sei explicar. Mas acontecem. Quando eu vejo, já saiu. E eu me pergunto: de onde vem tudo isso? Não sei!

Talvez venha de suas andanças mundo afora. Simone Abi Kalil Neves nasceu no Líbano, cresceu na África, se casou com um português, passou um tempo em Portugal e quis viver no Brasil.

– Esse é meu país. É aqui que estou. Mas acho que sou do mundo! Estive em muitos lugares.

Conseguiu se formar como artista plástica já aos 65 anos, na Escola Panamericana de Arte e Design, em São Paulo.  Já somava carreira e prêmios no currículo, mas fez questão de conquistar o diploma. Para isso, precisou terminar o supletivo, para ter a formação do Ensino Médio em instituição brasileira.

Coloca tudo o que colheu por aí nas cores, nas formas, na criação. E vai compartilhando, entre uma obra e outra, a sabedoria que mora no coração, o maior porta bagagem que poderia ter:

– A vida não é só alegria, felicidade. É mais tristeza do que alegria até. Mas faz parte da vida. E vale a pena! Vale por encontrar pessoas que te dizem um “bom dia”, que te perguntam se está tudo bem: amigos!

Artista Plástica Simone Kelil Neves Ribeirão Preto

Simone já adianta:

– Minha história? Eu sinto que se eu for falar por dois meses, tenho dois meses para falar!

Conta que começou a escrever um livro sobre a sua vida. Parou um pouco quando chegou nos momentos que não sabe bem como tirar de dentro. Mas é um dos planos para o futuro – e são vários, aliás.

Com três meses de vida, viajou com os pais do Líbano para a África, fugindo da guerra. Passaram um mês no navio.

– Meus pais quase me perderam…

Não sabe o que levou os pais a escolherem o continente africano. Pensa que foi convite de algum conhecido. E agradece. Guiné-Bissau – e os muitos países onde viveu – são hoje uma grande saudade.

Os pais abriram uma loja de tecidos e foram prosperando. Logo, eram duas lojas e uma frota de ônibus. Simone diz que os filhos tinham que ajudar, principalmente em um cenário de escassez de estrutura.

– Para comer o pão, tínhamos que preparar em casa. Para comer o arroz, os nativos tinham que descascar, pilar. O sabão era feito com as cinzas de uma árvore. Faltava tudo o que você possa imaginar.

Foi crescendo assim, na estrada de terra que ligava as duas cidades onde os pais tinham loja – Cacheu e Canchungo – e por onde apareciam onças, cobras enormes durante o trajeto semanal da viagem.

Para aprender ler e escrever, os pais contrataram um professor de Cabo Verde, que ministrava aulas um dia sim, o outro não. A mãe reforçava o aprendizado, ensinando árabe e francês. Também fazia as filhas aprenderem a costurar.

– Ela dizia que mulher tinha que saber fazer de tudo!

Simone levou à serio. Ao longo da trajetória aprendeu mais coisas do que pode enumerar.

Conheceu seu marido aos 15 anos. Ele foi enviado pelo governo de Portugal para realizar um censo entre as populações africanas. Apanhou do pai, que não queria sua filha casada com um “estrangeiro”. Mas não desistiu.

Se casaram pouco antes dela completar 18 anos. Os três filhos nasceram na África. E por lá Simone abriu seu primeiro salão de beleza, com os aprendizados que tinha durante as férias anuais em Portugal. Em terras portuguesas, fez cursos de confeitaria, pintura, cabelereira.

– Mas eu era dondoca. Aqui tive que ir à luta.

Artista Plástica Simone Kelil Neves Ribeirão Preto

Só deixaram o continente no início da década de 70, quando os movimentos para a independência de Angola se fortaleceram e o cenário ficou tenso. Diz que deixaram tudo o que tinham por lá, já que partiram como se estivessem tirando férias.

– Trinta anos de trabalho ficaram por lá.

Ela já havia feito contato com um cônsul brasileiro, pedindo autorização para vir morar no Brasil. Passaram um curto período em Portugal e embarcaram. O contexto político de Portugal, ela diz, não agradava. Preferiram começar no zero em terras brasileiras.

Vieram para Ribeirão Preto por indicação de um amigo, que morava em Monte Alto, 45 anos atrás. Ela estava com 37 anos.

Só buscaram os filhos em Portugal quando conseguiram se estabelecer por aqui, com emprego e perspectivas. O marido trabalhava como administrador. Ela cortava cabelos, dava aulas de cabeleireiro, fazia e vendia bolos, confeccionava artes de todo tipo: tudo ao mesmo tempo. Seu ateliê de pintura ficava no mesmo prédio de seu salão. Criaram e encaminharam os filhos, escreveram bonita trajetória.

Soma dezenas de cursos feitos e ministrados, em áreas diversas, relacionadas ao potencial das mãos. O trabalho artístico de Simone ficou conhecido Ribeirão afora, mas também sua destreza com cabelos. Diz que formou muitas e muitos cabelereiros e ensinou muita gente a pintar.

Depois dos 60, decidiu que queria ter o diploma de artista plástica. Precisava, antes, concluir o supletivo. Se matriculou e revezava o tempo entre os cortes de cabelo e as aulas.

– Enquanto eu não era formada, dizia que eu pintora. Depois, pude falar artista plástica.

Começou e parou dois cursos, pelos problemas de saúde do marido. Com a rotina um pouco mais calma, se matriculou na Escola Panamericana de Arte e Design e viajava toda semana para São Paulo, de segunda a sexta. Voltava nos finais de semana e fazia questão de deixar no congelador os pratos favoritos do marido, para amenizar sua falta. Por volta dos 65 anos se formou.

– A arte é tudo, tudo. Sem isso eu não vivo.

Simone perdeu o marido faz pouco mais de um ano, depois de quase uma década lutando com problemas de coração, coluna, intestino.

Na mesma época, ela teve um AVC e passou 10 dias na UTI. Estava em Portugal na ocasião, cuidando de documentos do marido. Tem dificuldades de mobilidade, por um tornozelo que quebrou. Nada disso, porém, a impede de continuar.

Continua aplicando reike, bordando toalhas para doar ao bazar solidário, desenhando, assando bolos, criando! Não entende a rotina de outra forma.

– Quando eu era menininha, nem sabia o que seria do meu futuro, pegava a caneta e começava a rabiscar…

O livro de poemas foi um desafio. Tinha o costume de escrever só para si. Jogou muitos e muitos escritos fora. Uma amiga jornalista foi quem incentivou a publicação. E Simone tomou gosto. Agora, já pensa no segundo.

– Não sei o que sai primeiro: o de poesias ou da história de minha vida. Mas algum vai sair!

Não conta o tempo em anos, mas em vida. Então, ele fica leve:

– A idade para mim não pesa. É só contar os dias, anos que a gente viveu e que passaram. A idade não me diz nada. Só dirá quando eu sentir que não posso raciocinar.

Sua realização só não é completa porque sente a falta da valorização das artes.

– Em Ribeirão, não se reconhece o artista, não se dá valor ao trabalho. Não falo só de dinheiro. Meu eu não é atrás de dinheiro. É fazer o que eu gosto e encontrar alguém que fale que está bom.

Continua criando, entretanto. Com as mãos e a mente ocupadas, esquece o que não é bom:

– A gente se esquece do mundo, dos problemas. Esquece até de comer!

 

*Quer traduzir essa história em libras? Acesse o site VLibras, que faz esse serviço gratuitamente: https://vlibras.gov.br/

 

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