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Esta história foi narrada pelos integrantes do projeto Doadores de Voz, dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Unaerp.
Vale a pena ler de novo! História publicada pela primeira vez em 7 de janeiro de 2019.
– Descansar é um erro. Você fica em casa acomodado e vem os problemas. Acomodação dá doença.
Não é preciso muita prosa para perceber que dona Cida, aos 94 anos, é de riso seleto e muita firmeza. Sentada na mesa de entrada do restaurante, ela vê quem entra e quem sai, pesa os pratos, faz as contas e as cobranças.
Antes de abrir as portas, porém, já foi ao mercado, organizou o que estava faltando, deu os comandos para a cozinha e, no tempo vago, jogou algo ou leu uma notícia no tablet.
As funcionárias dizem que ela nunca precisa de calculadora para saber quanto deu uma conta. E ela, para confirmar que não se trata de boato, conta do moço que achou que seu troco estava errado e, quando viu que dona Cida estava certa, pela confirmação da calculadora, não sabia onde enfiar o sorriso frouxo.
Se dona Cida vai com a cara, o acolhimento faz o cliente se sentir almoçando em uma casa de mãe.
Foi para uma dessas clientes que contou a história que chegou até mim. Aos 94 anos, ela comanda um restaurante tradicional no Centro de Ribeirão Preto, atendendo de 50 a 60 pessoas diariamente. Administra sozinha o negócio há 26 anos, já depois de se aposentar do cargo de auditora fiscal da Receita Federal.
Conta que ela e o marido fundaram o estabelecimento para os filhos, mas eles encontraram outros caminhos e, ao invés de fechar as portas, dona Cida resolveu empreender.
Descansar, afinal, é erro, como ela já disse lá em cima e gosta de repetir.
Todos os dias, então, de segunda a sexta-feira, ela serve ali, no restaurante Canto Brasil, o almoço com gosto de casa. Acorda às 5h da manhã, chega ao restaurante por volta das 7h e fica até fechar, às 16h. Não pense, porém, que é ela quem vai para cozinha.
– De cozinha eu não sei nada!
Fica mesmo com a administração, cuidando da equipe como se fosse família. Quando o expediente acaba, volta para casa dirigindo seu próprio carro.
Mora sozinha e gosta de enfatizar que não precisa de qualquer ajuda para as atividades diárias. Com uma aposentadoria confortável, não precisaria ter um negócio. A justificativa passa bem longe do financeiro.
– Por que eu continuo com o restaurante? Para unir a família! Todos comem aqui: meus filhos, meus netos, minha irmã. Além disso, o contato com o público me dá muita força. Um conta uma coisa, o outro conta outra. A gente faz amizade. Isso é muito importante para a gente viver.
Das poucas ajudas que recebe na administração, está a da neta, que fica por ali todos os dias e a acompanha às compras três vezes por semana. Dona Cida conta, toda coruja, que a jovem é arquiteta, ótima profissional. Mas vai logo avisando:
– No mercado ela é muito esbanjadora! Eu tenho que segurar!
Antes de começarmos a entrevista, ela chama as funcionárias do restaurante e vai apresentando uma a uma. Conta que a mesma cozinheira trabalhou ali por 28 anos, quando a administração ainda era dos filhos. Só parou recentemente, por problemas de saúde.
Diz também que no seu restaurante só contrata funcionárias mulheres:
– Homem briga muito! Não dá certo!
Quando se esquece de algum fato ou data da trajetória, chama pela Andreia, que está na equipe há 18 anos: “Quando foi mesmo que isso aconteceu?”. E a funcionária tem a resposta na ponta na língua.
Ninguém nega que dona Cida é rigorosa com o trabalho. Quer ver tudo funcionando com perfeição, apesar de dizer que hoje está mais tranquila.
– Eu já fui muito exigente. Hoje não. Aconselho mais do que exijo.
Da mesma forma, todas concordam quando ela diz que ali são da “mesma família”.
Maria Aparecida Gomes Ribeiro da Fonseca conta que nasceu no Sul de Minas, mas veio com os pais para a região de Ribeirão Preto ainda bebê. O pai era chefe da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro e ela diz, então, que cada um dos nove filhos nasceu em uma cidade diferente, já que ele estava sempre a ser transferido.
Fixaram raízes no interior e Cida estudou em São Simão e Jardinópolis. Fez curso de contabilidade e conta que, em 1942, aos 18 anos, prestou concurso para o INSS, que antes se chamava IAPI. Foi trabalhar em São Paulo, mas, como estava noiva, diz que “tratou de voltar logo” para Ribeirão Preto. Só se casou aos 31 anos, porém, idade nada comum para a época. Focou na carreira primeiro: o que também não era nada comum.
Depois de um tempo trabalhando como fiscal no INSS, prestou concurso para auditora fiscal da Receita Federal, e passou. Se aposentou em 1977, aos 53 anos, após 35 de trabalho.
Por volta de 1993, passou a administrar o restaurante. É sobre essa fase que ela dá mais detalhes. Se atém mais ao presente do que ao passado em seu relato.
Já estava viúva havia dois anos quando decidiu empreender. O marido morrera em uma cirurgia, por uma parada cardíaca.
Conta, com pesar, que tiveram quatro filhos. Dois morreram. Um aos 18 anos, em acidente de carro, no trajeto de Londrina para prestar vestibular. O outro faleceu recentemente, por problemas no coração. Mantem a força ao contar.
– Tem que ser forte. Muita força.
E fica em silêncio por alguns instantes.
– O meu grande sonho era que meus filhos realizassem o que eles quisessem com a minha ajuda e, graças a Deus, eu consegui.
Dona Cida toma alguns remédios, para controlar a pressão, cuidar do coração, manter a saúde que, como ela relata, está em ordem.
– Você sabe que eu não sinto nada de dor? Eu fico boba de ver! Deito, levanto! Só as pernas que não querem que eu ande muito…
Não é de comer em grande quantidade, apesar de fazer ótima propaganda da comida do restaurante – e com razão!
– Acho que enjoei. Tantos anos com a mesma comida! E também não é bom fazer exageros na minha idade…
Outro dia uma neta queria levá-la ao shopping, para comprar uma blusa de presente. Falou que não ia, não.
– Eu gosto é de ficar em casa, assistir filmes na televisão. E de ir para a fazenda no final de semana.
Vaidosa que só, trabalha de unhas feitas, roupa bem arrumada, colar bonito.
Conta, com certo inconformismo na voz, que passou por exame para renovar a carteira de motorista e o médico deu “só mais três anos” para ela parar de dirigir.
– Eu dirijo todo dia!
Diz que a gente vem ao mundo para “purificação”.
– Nós viemos para realizar as coisas, mas com muito sacrifício.
E se preocupa:
– Depois que a gente realiza tudo, Deus leva a gente.
Se preocupa porque entende que ainda não é seu tempo de partir.
– Eu acho que ainda não estou na hora de ir. Tenho coisas para realizar. Preciso botar tudo no lugar. É difícil…
O “tudo” que quer arrumar, como já era de se imaginar, tem a ver com os filhos. Quer resolver pendências para dividir os ganhos com a família.
No dia a dia de restaurante, vê muita gente correndo, engolindo o almoço sem sentir o gosto. E se angustia.
– Eu falaria para as pessoas irem devagar, porque andando a gente também chega. Hoje mesmo falei com meu filho!
A vida é boa? Para ela, com tanta vontade de viver, só há uma resposta:
– É muito boa! Mas tem que saber viver! Viver com sabedoria, gastar aquilo que você tem e não o que vai ter, e com muita amizade. Eu tô aqui dentro, mas tenho amizade com todo mundo. Se eu chego ali na calçada, todos vêm cumprimentar.
Diz que “amanhã ou depois”, quando não puder mais administrar o restaurante, irá encerrar o expediente, porque os netos “não têm obrigação de cuidar”.
Enquanto isso, vai mantendo a rotina que tanto faz bem. Em dezembro, fecha por 15 dias de férias. E só. Entende que é mais do que suficiente.
– Descansar é um erro. Você fica em casa acomodado e vem os problemas. Acomodação dá doença.
Ela já disse.
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