Texto e fotos: Alice de Carvalho Leal
Trabalho, trabalho e mais trabalho. Enfrentar a correria do dia a dia, se alimentar mal e não praticar exercícios físicos. Cuidar da casa, do filho e ainda levar parte do serviço para concluir no horário de descanso. Dormir no sofá ao encostar para assistir a um filme acompanhada de uma latinha de cerveja. Acordar cedo no dia seguinte para recomeçar. Tudo de novo. Hábitos.
Essa costumava ser a rotina de Michelle Trevizani Osorio, auxiliar administrativa, hoje com 39 anos de idade. “Workaholic”, como ela mesma se descreve – a gíria inglesa é utilizada para definir alguém viciado em trabalho, um trabalhador compulsivo.
Há anos, Michelle experimentava uma vida sem pausas. Não havia uma hora do dia que fosse reservada somente a ela, pensando em cuidar de si.
Não poderia imaginar que, logo, a vida faria essa exigência.
Conhece alguém “ligado no 220v”, como a antiga expressão diz? Ela sempre foi essa pessoa. Jovem, sonhava em seguir os passos do pai e se tornar delegada, mas, ao mesmo tempo, também queria cursar História. Chegou a prestar o vestibular, mas enfrentou crises alérgicas fortíssimas, que a impossibilitaram de ir morar longe da família.
– Ninguém sabia do que era. O médico chegou a falar para minha mãe que eu poderia morrer de choque anafilático ou edema de glote. Passei na faculdade em Assis. Fiquei com medo de ir, passar mal e não ter assistência.
A saída foi recorrer ao Direito. Logo de início, não se identificou com o curso e trancou a faculdade no segundo ano. Michelle, que sempre gostou de cozinhar, optou então por fazer um curso técnico em Nutrição. Foi quando adquiriu conhecimento na área e aumentou ainda mais a paixão que sentia. Se propôs a fazer uma faculdade voltada ao tema, mas não havia universidades próximas.
Em meio a todos os fatos, descobriu a gravidez, dois meses após o término com o namorado. Optaram por voltar e tentar uma vida juntos, mas não vingou. Os dois viraram grandes amigos e dividem a responsabilidade de cuidar do filho Miguel desde o início.
– Meu pai me colocou na parede: e aí, vai fazer o que? Direito, Engenharia de Alimentos? Resolvi retomar o Direito em uma faculdade mais próxima de casa, assim minha mãe cuidava do Miguel.
Logo quando se formou, foi aberto um concurso para a Delegacia de Polícia, mas não obteve pontos suficientes para conquistar a vaga que queria. Aos poucos, o sonho de se tornar delegada foi ficando para trás.
– Chutei o balde e resolvi trabalhar, mas não na área, porque nunca me identifiquei. Não me vejo sendo advogada, não tenho nem registro na ordem. Sorte que não virei delegada, o que ia ser de mim?
Desde então, Michelle trabalha como auxiliar administrativa em uma clínica odontológica em Ribeirão Preto e é apaixonada pelo que faz. Tão apaixonada que não conseguia desgrudar do serviço – levava para casa, trabalhava quando deveria descansar, aos finais de semana, feriados e madrugadas. Hábitos.
Em janeiro de 2017, ao lado do filho Miguel, conseguiu financiar um apartamento e realizar o sonho da casa própria. Juntos, passaram dez meses colhendo frutos dos esforços empenhados. Até chegar o décimo primeiro mês. Dos hábitos não tão bons, uma surpresa nada boa: novembro bateu à porta trazendo a notícia de que Michelle estava doente. A mudança de casa precisou ser ressignificada para se tornar também uma mudança de vida.
2 de novembro, quinta-feira, dia de finados. Ela estava em casa com o filho decidindo qual seria o cardápio do almoço.
– Quando me aprontava para ir ao mercado, coloquei o sutiã e senti uma pontada no peito. Achei até que tinha alguma coisa no próprio sutiã, mas não era nada.
Sem ao menos imaginar que algo poderia estar errado, foi às compras e o dia transcorreu normalmente. Ao terminar o almoço, foi direto para o quarto. Descansar? Trabalhar, é claro.
– Sentei na minha escrivaninha e sem querer encostei o peito nela, doeu de novo. Dessa vez, o incômodo não queria passar.
O segundo sinal também foi ignorado. No final do dia, Michelle foi jantar na casa dos pais, como de costume. Ao retornar, a dor havia passado de leve a um incômodo moderado. Antes de dormir, ligou para o namorado e contou pela primeira vez o que estava sentindo.
Ele disse:
– Dor de que?
E ela:
– Dor no peito.
– Mas dor de infarto?
– Não, dor no peito!
Desligou o telefone e foi tomar banho. Resolveu fazer o autoexame das mamas e encontrou um nódulo. Ligou de volta para o namorado e combinaram que ela tentaria um atendimento de urgência no dia seguinte. Por ser uma sexta-feira pós-feriado, a clínica estava fechada.
No final de semana, a dor passou de moderada a insuportável. Não conseguia encostar em nada sem que o peito doesse. Buscaram, então, o pronto atendimento. A médica constatou que realmente havia um nódulo, mas que poderia significar várias coisas, inclusive uma inflamação muscular. Receitou uma medicação e orientou que buscasse uma mastologista no dia seguinte.
E foi. A especialista propôs realizar uma punção no nódulo. Caso fosse somente um cisto, por exemplo, ela conseguiria remover o líquido e o problema acabava ali. Michelle topou. Não saiu nada.
– Ela me pediu um ultrassom e corri para fazer no mesmo dia, porque eu sou desesperada. Não consigo dormir com esse barulho, entende?
A médica avaliou o exame, constatou que era um nódulo benigno, mas, por conta da aparência, recomendou uma punção guiada. Só então ela resolveu comunicar a família.
– Eu cheguei para jantar na casa dos meus pais com toda a família reunida e falei: aproveitando que estão todos aqui, vou dar uma notícia: estou com um nódulo no seio, ainda não sei o que é, mas já estou avisando.
A mãe, a partir de então, quis acompanhar todo o processo. Após um dia da realização do exame, recebeu uma ligação do consultório médico orientando que ela voltasse para uma nova consulta ainda naquele dia. Na hora, não foi possível manter o pensamento positivo.
– Pensei: deu ruim, mas não fiquei desesperada. Sabia que tinha dado errado, ia adiantar me desesperar?
Ao lado dos pais e do namorado, recebeu a notícia de que estava com câncer de mama maligno e teria que ser submetida a uma cirurgia o quanto antes, pois o nódulo crescia rápido. A ideia era removê-lo antes que se desenvolvesse ainda mais. O protocolo de tratamento só poderia ser definido após a operação, quando identificado o tipo do câncer.
Michelle entrou para as estatísticas. Segundo o Ministério da Saúde, o câncer de mama corresponde a cerca de 28% dos novos casos de câncer em mulheres. É o tipo mais comum entre o sexo feminino, apesar de também acometer homens.
Começou a bateria de exames. Fazia tudo na hora do almoço, já que optou por não deixar o trabalho. Antes mesmo de encerrar o mês de novembro, conseguiu colher tudo o que havia sido solicitado pela médica. A cirurgia foi marcada para o dia primeiro de dezembro.
– Não deu nem tempo de sofrer, de pensar que ia dar errado. Eu continuei minha vida, correndo para lá e para cá, trabalhando.
Durante a operação, constataram que o câncer não estava enraizado em outras partes da mama e não havia metástase no corpo. Tudo transcorreu da melhor forma. O problema veio na cicatrização. Michelle teve reações alérgicas ao fio utilizado para fazer o curativo e todos os pontos estouraram. Foi preciso refazer a cirurgia, mas dois pontos voltaram a abrir.
O procedimento teve que mudar. A saída foi recorrer a um tratamento hiperbárico por um mês, onde o paciente é submetido à inalação de oxigênio puro para renovar as células do corpo. Para a felicidade dela, foi autorizada a retornar ao trabalho.
O diagnóstico chegou: era câncer de mama triplo-negativo, um dos mais agressivos. Pesquisas apontam que esse tipo da doença representa, em média, 15% dos casos de câncer de mama e é mais frequente em mulheres jovens.
A boa notícia é que apresenta perspectivas de cura quando descoberto precocemente. Só que, diferente dos outros tipos, não é possível definir qual fator desencadeou a doença. Por isso, não há um tratamento específico, é preciso fazer todos.
– Os médicos explicaram que é um câncer de hábito. Pode ser genético, mas normalmente seu estilo de vida faz você desenvolver esse tipo de câncer.
Câncer de hábito. De quem trabalha, trabalha e trabalha. De quem enfrenta a correria do dia a dia e acorda cedo no dia seguinte para recomeçar. Tudo de novo. Hábitos.
Foi preciso fazer os dois tipos de quimioterapia e, na sequência, radioterapia. Quinze dias após a primeira dose de quimio, o cabelo começou a cair.
– Você acha que não vai cair, até chegar o décimo quinto dia. Sai tufos e mais tufos de cabelo, eu não dei conta. Liguei pro meu namorado e pedi para levar a máquina em casa. Raspei tudo.
A decisão de Michelle era não se abater. Em todas as sessões de quimioterapia, levou um acompanhante para conversar e dar muitas risadas: namorado, mãe, tia, amigas. Não abandonou o trabalho, mas diminuiu o ritmo.
– Nunca pensei que ia dar errado. Eu estava fazendo o que tinha de melhor na Medicina. Se toda vez que a gente reclamasse caísse dinheiro na nossa conta, ia valer a pena. Mas não cai.
Após um ano da descoberta, o tratamento chegou ao fim, mas o acompanhamento não. A cada quatro meses, são feitos novos exames para garantir que não há uma célula sequer de câncer crescendo dentro do corpo.
– É uma doença de excessos: na alimentação, no trabalho, na falta do exercício físico. Eu não tenho mais o câncer em mim, mas não significa que não posso voltar a ter. Depende muito do hábito de vida.
Hábitos. Foi aí que Michelle resolveu mudá-los. Hoje, faz natação três vezes na semana. Reduziu o volume de trabalho, pelo menos em casa. Medita todos os dias antes de dormir. Dorme direito e na cama! E a melhor das mudanças: recuperou a antiga paixão por cozinhar. Não come produtos industrializados, cortou farinha, açúcar, embutidos.
– Eu faço toda a minha comida. Se estou com vontade de comer um bolo, faço do meu jeito. O corpo fica tão nutrido que nem sinto desejo ou vontade de exceder.
A partir das redes sociais, começou a se inspirar em muitas personalidades que seguem o mesmo estilo de vida. Voltou a estudar e fazer cursos de alimentação e criou a própria rede: um perfil no Instagram chamado ComElo Cozinha. Lá, publica todas as receitas que dão certo e as refeições que faz ao longo do dia. A ideia agora é comercializá-las. Aos poucos, a proposta sai do papel.
– Você não pode fazer da exceção a regra, mas isso não significa que na sua vida nunca vai ter exceção.
Michelle, que sempre reclamou pouco, hoje reclama menos ainda.
– Tem gente que faz tudo o que eu fazia e não tem câncer? Óbvio! Mas calhou de ser em mim. Não tenho medo, o câncer não vai voltar.
Fotos 1 e 2: Cíntia Louzada
Foto 3: Alice de Carvalho Leal
Foto 4: Arquivo pessoal
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Parabéns toda família está contigo, e desejamos o melhor da vontade Divina para você, sua fé, sua energia positiva abriu o presente para o futuro e te prepara um novo amanhecer a cada dia.
Michele, embora conheça sua história de vida…amei lê-la…é inspiradora, aliás vc é inspiradora, te admiro! Sua luta e Vitória é como um bálsamo que alivia as dores de tantas e tantos outros que passam por situações parecidas.