Vale a pena ler de novo! História publicada pela primeira vez em 5 de julho de 2018!
Esta história integra o livro “História do Dia 2”. Para conhecer mais sobre a obra clique AQUI.
– Vida boa é como a minha, com saúde!
Em poucos segundos, Deonilo sobe os degraus da escada de madeira e está no telhado. Não contente, se deita sobre as telhas verde-amarelo e arrebita as pernas como se a qualquer momento fosse arriscar uma cambalhota com destino às nuvens.
– Sempre fui peralta! Desde que nasci! Quer tirar foto aqui no alto?
De volta ao chão, faz uma flexão apoiado nos corrimãos da varanda. E vai tirando vantagem, sem qualquer modéstia: outro dia, um amigo do filho, que tem seus 28 anos, fez um desafio. “O senhor tá ruim das pernas, seu Moré?”.
Bastou.
Deonilo Moré deitou no chão e foi competir em flexões com o moço. Garante que ganhou, com muita folga.
– Isso é saúde! Essa disposição vem da saúde que eu tenho!
Na hora de revelar a idade, mantem o mesmo humor de todo discurso.
– Vou te falar que são 89 anos e três meses. Mas é mentira! Na verdade, na cabeça tenho 51!
Fui até a casa do seu Nilo contar sua façanha de pintar o telhado com a bandeira do Brasil pela terceira Copa do Mundo seguida. O fato, porém, foi ficando pequeno perto do baú de histórias que ele guarda na memória intacta.
– Você sabe que eu sou dançarino? É! Já ganhei muitos concursos! No cruzeiro mesmo…
E vai contando em detalhes como arrancou os risos do navio todo dançando samba.
Produz sua própria pinga com canela e limão para sempre ter com que presentear os amigos – e bebericar também.
Tomar remédio? Nem pensar! Tem suas receitas próprias para espantar a gripe!
– Desde que vim para Ribeirão, há mais de 40 anos, nunca tomei uma injeção!
É tanta alegria que a gente custa a acreditar na vida dura que escreveu seu passado. E, quando ele chora contando do trabalho na roça, queremos mais é mudar de página rápido.
Seu Deonilo fica bonito mesmo ensaiando cambalhota no telhado e exibindo o sorrisão em anedotas!
Ele, que não teve “um dia de escola”, em suas palavras, foi dono do próprio negócio, aprendeu a construir casas e diz que fez mais de 100 delas por toda Ribeirão.
A Copa é mais uma de suas tantas aventuras!
Quando fala do passado, Deonilo troca as cambalhotas pela tristeza.
– É que nem diz o ditado: tem lembrança, mas não tem saudade. Minha vida na roça foi só trabalhar.
O mais velho de 17 irmãos, conta que começou a ajudar o pai aos oito anos. Levantavam quando ainda era madrugada para tirar leite e depois começavam o trabalho do campo.
– A gente não tinha dinheiro nem para comprar alpargata. O pé ficava vermelho de frio.
O cargo de irmão mais velho não lhe deixou ir para a escola. O pai determinou: além da roça, Nilo tinha que ajudar nos afazeres de casa.
– Eu aprendi a bordar, cuidar dos meus irmãos, lavar muita roupa.
Mas a peraltice já habitava o menino em vontade de aprender.
Em frente à fazenda onde a família vivia, a sete quilômetros de Severínia, havia uma vendinha.
– Era na beira da estrada, pouso de boiadeiro. Naquele tempo, se levava a boiada por terra, não por caminhão.
Aos finais de semana, quando tinha folga do trabalho na roça, Deonilo trabalhava empacotando os produtos da venda, com um objetivo maior.
– Eu aprendi a somar um mais um, dois mais dois. E, depois, durante a semana, eu fazia as contas com os galhos, na plantação. Hoje, nem calculadora ganha de mim!
Nessa hora, ele interrompe a entrevista, me pede um pedaço de papel e começa a fazer contas gigantescas em questões de segundo. Acerta todos os resultados.
– Agora você ficou encabulada, né?
Aos 19 anos, Deonilo conheceu a jovem que seria sua esposa. Dois anos de namoro e ela, que era vizinha, se mudou para Votuporanga. Ele conta que, naquele tempo, levava um dia todo para chegar de ônibus até a casa da moça.
– Eu ia a cada três meses! Mas ia!
Se casaram quando ele tinha “23 anos e meio”, com exatidão no tempo. E foram viver em Barretos, onde o pai dele havia comprado algumas terras.
Nessa parte, de novo, Nilo é choro.
– Eu levantava 3h15 da manhã e, quando o caminhão de leite passava, às 6h10, eu já tinha tirado 120 litros de leito sozinho. Sozinho! Aí, pegava os bois, ia campinar, ficava o dia todo na enxada. Tudo o que eu consegui foi trabalhando.
Ficou quatro anos nessa rotina, até chegar a notícia de que o dono da vendinha – aquela onde aprendera a fazer contas – estava com câncer. Foi desejo dele que Deonilo assumisse o ponto: “O menino já sabe como é”.
E, então, sua família comprou o armazém.
A essa altura, mais que conta, Nilo aprendera a ler e escrever, com muita vontade e pouca instrução de uma professora particular que o pai levara à fazenda.
Assumiu o negócio cheio de vontade de crescer. E não demorou.
Diz que fez da pequena portinha o armazém dos fazendeiros da região. E cresceu tanto que conseguiu comprar um armazém bem maior em Olímpia, onde ficou por 10 anos.
– Arrumei a casa e mudei com os seis filhos e a esposa para lá. Cheguei a ter oito empregados para me ajudar!
Mas sua “molecada” foi crescendo e, quando chegou o tempo de faculdade, uma tragédia fez surgir o ímpeto de mudança.
– Em Olímpia não tinha faculdade para eles. Tinha que ir para Rio Preto. Mas teve um acidente feio de estudantes.
O acidente do Rio Turvo marcou a história do país, com a morte de 59 estudantes da fanfarra de uma escola de São José do Rio Preto. Nilo decidiu que seus filhos não iriam estudar de ônibus pelas estradas. Tinha parentes em Ribeirão Preto e, em 1974, se mudou para a cidade.
– Eu liquidei o armazém e vim embora.
Por aqui, decidiu se aventurar em outra área. Sem nunca ter construído antes, começou a comprar lotes de terra e a construir casas.
– Eu fui aprendendo. Chamava um pedreiro, aprendia com ele. Fiz casas na cidade toda! E ganhei meu dinheiro: graças a Deus! Comecei do nada e ganhei trabalhando.
Conquistou patrimônio. Construiu a casa onde mora, rodeado pela família. Quis imitar as fazendas onde cresceu, com casas espalhadas para os lados, uma capelinha ao centro, árvores e os filhos debaixo da asa.
Em época de Copa, pinta os telhados para inspirar a torcida.
– Aqui dentro não se escuta o barulho de fora. Oh: não se escuta nada!
Deonilo estampou um azulejo com sobrenome e idade: “Moré – 89 anos”. Exibe a “placa” para as fotos, com sorrisão no rosto.
Aos 89 anos e três meses, é quem administra os imóveis da família. Diz que há uns três ou quatro anos parou de construir. Mas aluga e faz a manutenção das casas que tem. No dia da entrevista, estava na ativa desde às 7h, consertando uma caixa d´água que deu problema.
– Meus filhos falam: “Larga disso, pai!”. Largo nada! Para que?
Ficou viúvo há 17 anos. E se “arrumou” com outra companheira. Ela mora na “fazenda urbana”, mas em casa separada.
– Ah, assim é bom!
Fala, de boca cheia, que come de tudo. Carne de panela com mandioca é prato preferido. Não regula nada do que gosta.
Nessa semana, vai reunir amigos e família em uma grande festança junina. Dos seis filhos, perdeu um há três anos. Mas se alegra lembrando dos oito netos e dois bisnetos.
– Tem quentão, fogueira, precisa ver!
A pintura do telhado não foi à toa. Futebol e desenho são os programas preferidos na TV. Se o Palmeiras joga, então, é alegria – quase – certa!
Nas últimas duas copas, a pintura não deu muita sorte. Mas nessa, Deonilo está confiante. Foram dois dias colorindo as telhas com pincel e ajuda de um pintor.
Mais que a torcida, a ideia extravagante é acertada pelos holofotes. Há algumas semanas, ele é foco de jornais e curiosos. Recebe a todos com o mesmo carisma!
Quando a entrevista já está acabando, relembra o dia em que “competiu na enxada” com um homem mais forte e mais velho. Aos 19 anos, já vencia com folga: tira vantagem, sem modéstia.
Mostra os troféus e medalhas que ganhou dançando e conta mais um tanto de histórias das suas danças. Quer deixar claro o que as pernas rápidas subindo ao telhado já revelaram. Deonilo é campeão em suas aventuras.
Diz que agradece a Deus todos os dias pela saúde que tem. Aquela que faz a vida ser boa.
– Eu me sinto feliz!
E me entrega a pinga de canela e a caipirinha que faz para presentear os amigos, sempre em estoque.
– Volta para a festa junina!
Adverte, com toda sua alegria, antes da partida.
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