Em memória – Barbearia Garcia: meio século de história na Vila Seixas

17 abril 2017 | Gente que inspira

Em  memória: Antônio Garcia faleceu em outubro de 2020. Deixou sua história como legado. Aqui, fica nossa singela homenagem.

 

Clique no play para ouvir a história:

Esta história foi narrada pelos integrantes do projeto Doadores de Voz, dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Unaerp.

 

A fachada conserva tijolinhos à vista, portas de ferro daquelas de enrolar e nenhuma propaganda. É preciso virar o rosto à cima para enxergar a placa discreta, quase coberta pelas folhas da árvore: Barbearia Garcia, telefone, tesoura e pente para ilustrar.

Depois de 48 anos cortando cabelos, Antônio Garcia não precisa se preocupar com publicidade. É história, parte de Ribeirão e da Vila Seixas, com salão que nunca deixou a rua Prudente de Moraes.

Na porta, o convite em letrinhas de plástico já perdendo a cor: “Entre. Ar condicionado”. É modernidade quase única. Dentro do salão, a impressão é de voltar no tempo.

Os pisos são originais da década de 70: quadriculados de branco e preto/cinza/o tempo não deixa definir.

A cadeira onde já se sentaram políticos, jogadores de futebol, gente de todo tipo é da década de 80, no mais fino retrô. Estofado vermelho, metalizada em prata, giro de 360 graus.

O sofá onde tanta gente esperou horário, na época em que Garcia chegava a cortar 30 cabelos por dia, ainda é o mesmo. Estrutura de concreto, com tijolinhos à vista e almofadas cinza.

Nas paredes, quadros de ontem e hoje. Os de ontem estampam Airton Senna, o símbolo do Comercial, imagens religiosas. Os de hoje são de tinta a óleo, que a netinha de Garcia pinta e faz questão de presentear.

Uma televisão antiga em cima de uma mesinha baixa é passatempo entre um corte e outro. Bibelôs e fotos confirmam o carinho da clientela com o barbeiro de quase meio século.

Garcia conta, imerso em nostalgia, que reformou cada pedacinho do salão, com dinheiro financiado, lá em 1976.

Comprou o ponto de outro barbeiro por 12 mil cruzeiros emprestados pelo sogro e quitados em suaves prestações de 500.

Garcia trabalhava das 7h30 às 22h, de segunda a sábado para dar conta da freguesia. Era tanta gente que mal dava tempo de almoçar.

Hoje, aos 75 anos, reduziu a carga das 7h30 às 19h, faz uma hora e meia de almoço e tem horários livres entre um corte e outro, mas não vai para casa.

Passa os dias dentro do salão que, ele diz, é mais que lar.

Quando pode, relembra o passado, com vontade de voltar.

– Se eu pudesse, eu voltaria. Era bem melhor, minha filha. Não tinha tanta violência, tinha mais movimento. Hoje, a gente trabalha de porta trancada.

Na barbearia do Garcia, a impressão é de que o tempo não passou. Reduto que o barbeiro construiu para estar no ontem, de onde nunca quis sair.

Antônio Garcia aprendeu o ofício de barbeiro com 23, 24 anos. Até então, a única memória que tinha da profissão vinha do avô, que cortava cabelos na fazenda.

– Tive uma instrução.

Deixou a fazenda aos quatro anos e veio com os pais e os oito irmãos para Ribeirão Preto. Como era de costume na época, a molecada começava a trabalhar cedo para ajudar em casa. Antônio começou no Mercadão, em uma banca de cereais.

O convite para aprender a barbearia veio do primeiro sogro, que tinha um salão na quadra 16 da rua Prudente de Moraes.

– Ele perguntou: ‘Você topa?’. E eu topei! Gostei tanto que tô aqui até hoje!

Diz que levou dois anos para pegar o jeito. Em 1976, seis anos depois de segurar a tesoura pela primeira vez, já era dono do próprio salão.

Com suaves prestações, dinheiro financiado, instalou a plaquinha com seu nome na mesma Prudente de Moraes, quadra 14.

Garcia perdeu as contas de quanto cabelo já cortou em tantos anos de ofício. Alguns nomes, porém, continuam frescos na memória. Raí e toda a família de Sócrates – menos o craque, que nunca deu as caras.

O prefeito Welson Gasparini e a família Nogueira. Grande parte dos jogadores do Botafogo e, apesar de comercialino, Garcia jura que nenhum botafoguense saiu de lá insatisfeito!

Diz que hoje já corta o cabelo da terceira geração de um tantão de famílias e exibe a foto que ganhou de presente: um menino de não mais que três anos, sentado em um pedaço de madeira apoiado entre os braços da cadeira retrô, cortando os cabelos com o barbeiro oficial da família.

– Em primeiro lugar é o ambiente que você faz. Freguês já não é freguês. É amigo.

Garcia teve quatro filhos e conseguiu passar o ofício à frente para o mais velho. Montou barbearia para ele e tudo. Mas conta, baixando os olhos, que o filho foi assassinado.

– Briga de moleque… ele não levava desaforo… achou o que não devia achar.

O barbeiro também é história de perda. Antes de perder o filho, perdeu a primeira esposa no parto.

Casou de novo, reconstruiu família com quatro filhos, 13 netos e duas bisnetas.

Não é de ficar falando da parte triste do passado. Prefere outras. Prefere a profissão que escolheu amar.

Mostra o alvará de funcionamento feito em máquina de escrever e emoldurado na parede.

– É de 1976, minha filha!

Quer continuar cortando cabelos “até quando der”.

– Deus me dá força e eu vou indo!

E conta o segredo de quase meio século de profissão.

– Em primeiro lugar é amor. Gostar de trabalhar. E criar amizades.

Transforma em palavras o que a história, por si só, já diz.

Na Barbearia Garcia o tempo parou na euforia do primeiro corte, no amor do barbeiro.

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12 Comentários

  1. Humberto

    Excelente profissional com muita tradição envolvida.
    Quem realmente quer conhecer uma barbearia tradicional deve ir visitar o Sr. Garcia.

  2. Daniel Rocha

    Dia 08/10/2020 o Garcia nos deixou. Ele partiu deixando muita saudade.
    Cuidou de tanta gente é sempre com muito carinho.
    Vamos sentir sempre muita saúde do nosso amigo Garcia!
    Obrigado por tudo meu amigo!!

    • Carlos cesar de Souza

      Comecei a cortar cabelo quando criança, junto com meu Pai,o salão era na mesma Rua Prudente Morais,só que dois quarteirões para traz, depois o salão foi para quase escostado com o Bar da Neia, depois foi para esse último salão, no início cortava cabelo com o Irmão dele,depois ficou sozinho, Garcia vai deixar saudades,grande Comercialino,muitas histórias, uma que contava que o ex jogador Mauricinho, passava com o Pai em frente ao salão ia treinar no Comercial,muitas Histórias, Cortou Cabelo de 3 gerações, muito Obrigado Meu Amigo.

  3. Daniel Rocha

    Dia 08/10/2020 o Garcia nos deixou. Ele partiu deixando muita saudade.
    Cuidou de tanta gente e sempre com muito carinho.
    Vamos sentir sempre muita saudade do nosso amigo Garcia!
    Obrigado por tudo meu amigo!!

    • Daniela Penha

      Olá, Daniel! Eu não sabia do falecimento do Garcia. Obrigada por me avisar. Ele escreveu uma linda história! Um abraço!

  4. Sergio Rizzi

    Um verdadeiro amigo – inteligente, crítico lúcido, sabia conversar horas a fio, homem simples e excelente pai de família. Senti muito sua morte. Sentidos pêsames aos seus familiares.

  5. FLAVIO DE OLIVEIRA PILEGGI

    Pois é Seo Garcia. Sempre cortei meu cabelo lá desde pequeno. Nunca me esquecerei da alegria dele quando raspou minha cabeça ao entrar na Universidade. Fez questão de não cobrar…… Vai deixar SAUDADE……

  6. José Carlos Moura

    Vinte anos atrás chegava em Ribeirão, e acabei conhecendo a barbearia do Garcia, é perto de casa. Todo mês cortava o cabelo com o Garcia que virou um daqueles amigos especiais. Sempre conversava sobre muitos assuntos enquanto cortava. Que perda. Que Deus conforte toda família.

  7. Rogério Massanori Itikawa

    Lembro quando o Garcia contou uma historia que o meu pai(Massaro) foi cortar o cabelo e pediu;

    -Capricha no corte porque hoje o meu filho vai nascer. (foi no dia 03/03/1975)

    Um amigo de verdade que vai deixar muita saudade.

    Meus sinceros sentimentos para família.

    • Carlos cesar de Souza

      Alguém sabe do que o Garcia Faleceu, Obrigado

  8. Rogério M. Itikawa

    Lembro quando o Garcia contou uma historia que o meu pai(Massaro) foi cortar o cabelo e pediu;

    -Capricha no corte porque hoje o meu filho vai nascer. (foi no dia 03/03/1975)

    Um amigo de verdade que vai deixar muita saudade.

    Meus sinceros sentimentos para família.

  9. Agnaldo Aparecido de Almeida

    Garcia cortou meu cabelo pela ultima vez no fim de setembro, prometi voltar antes do Natal. Fui hoje, 28/11, vi a placa de aluga-se no salão; imaginei o pior, e infelizmente foi o que pensei. O conheci a apenas 3 anos; era um bom homem, talvez o mais digno que conheci em RP. Vai fazer muita falta! Meus sentimentos a amigos e família.

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