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Esta história foi narrada pelos integrantes do projeto Doadores de Voz, dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Unaerp.
Por Daniela Penha
“Te faço um bom café?”, enviou Bia Amorim por mensagem, quando confirmamos que a entrevista seria na casa dela. Eu, do lado de cá da tela, com cara de “E agora? Conto que não gosto de café ou espero chegar lá?”.
Decidi esperar. Era só entrar e pedir uma água gelada. Sem erro. Já estou mesmo acostumada a repetir que não gosto de café desde a infância, acho forte, acelera o coração, etc, etc. Assim foi, logo nos primeiros dois minutos de conversa.
Mas Bia não se abateu.
Seguiu sua rotina tão simples e tão especial. Pesou os grãos de café. Moeu e, já aí, eu me interessei: “Mas o que você tá fazendo, Bia?”. Café, ueh. Eu já sabia a resposta. Mas imaginei o expresso saindo da máquina ou no máximo um pretinho de bule. Que ingênua! Só quem não conhece Bia Amorim comete tremendo disparate.
– A gente faz café todos os dias. É ritual. Mas é preciso se encantar com as coisas da rotina. É contemplação mesmo. Contemplar as coisas da rotina. Sou contemplativa!
Bia não toma café expresso. Nada contra quem toma, claro. Cada qual com sua rotina. A dela, porém, precisa ter um quê de diferente. A rotina ao avesso. É assim para o trabalho, que nunca é um só. Para as ideias, que saltitam na mente e saem em forma de muitas palavras soltas com rapidez e sem dificuldade em formular as frases.
O trabalho em uma cervejaria de Ribeirão foi o “mais legal que já teve”, ela diz. Mas pediu demissão depois de dois anos e foi montar seu próprio negócio. O comodismo estava sentando na mesa para pedir um café. Opa! Não na rotina de Bia.
Ela diz que aos 15 anos já sabia o que queria fazer da vida. Servir. Quer coisa mais complexa?
– É legal que as pessoas se inspirem no meu caminho, mas elas precisam saber o que querem. Eu quero acordar para fazer café, servir uma cerveja para alguém. Mas servir é trabalhar de final de semana, à noite, cozinhar no Natal. Você quer fazer isso?
Hoje, Bia Amorim, 36 anos, é jurada do Reality Eisenbahn Mestre Cervejeiro transmitido pelo Multishow, Publisher da Farofa Magazine, que é criação sua, está à frente da área comercial da cervejaria Pratinha, é colunista de cervejas na rádio CBN Ribeirão, tem mais de 26 mil seguidores no Instagram: mulher referência no mercado de cerveja artesanal. Sua história, entretanto, soma quase 20 anos de trabalho e estudos na área de gastronomia e serviços.
Trabalhou como garçonete, bartender, compradora em restaurante, representante comercial, gerente de marketing de grande cervejaria, professora.
– As pessoas não podem achar que vão fazer um curso de sommelier de cerveja e ficar famosas. É uma construção. Se você não sabe atender, tratar com respeito, não vai dar certo.
Ela acredita que é preciso prestar atenção ao que a gente come e bebe. Resgatar a história das coisas, como a cerveja, que é parte da humanidade há milhões de anos. Checar a procedência. Se encantar com o alimento bem feito.
– A partir do momento em que você come ou toma alguma coisa e aquilo te modifica, você cria uma relação com aquela bebida ou comida. Eu nasci para fazer isso. Esse é o meu papel na vida.
A conversa fluía enquanto o cheiro de café contagiava a cozinha. Cheiro – diferente – de café. Bia soube logo na primeira pergunta, “O que você tá fazendo?”, quando ela pesava os grãos, que eu já havia sido capturada por aquele cafezinho nada rotineiro.
“Você vai provar, né?” – eu respondi que sim. Ainda estava um tanto tensa, confesso. Eu realmente não gosto de café, repetia mentalmente. Mas aquele cheirinho…. Hummmm. Ela encheu uma xícara, mas advertiu: “Não precisa tomar tudo!”.
Uma vez na faculdade li um texto de Philippe Delerm que falava sobre o primeiro gole de cerveja. Uma crônica inteira para tentar traduzir a sensação da bebida gelada caindo na garganta pela primeira vez, a sede sanada, o prazer. O texto faz parte do livro “O primeiro gole de cerveja e outros minúsculos prazeres”. Bem Bia, né?
Penso, agora, em escrever sobre o meu primeiro gole de café, aos 29 anos. Eu já havia provado cafés, claro. Mas nunca o café da Bia, feito com muita técnica, sim. Hario V60 é o nome. Mas com carinho. Piegas? Não acho. Afeto pode ser rotina sem perder o encanto.
Tomei a xícara toda e ficava repetindo: “Tô chocada, Bia! Que diferente! É muito gostoso! Tem um gosto frutado! Não é forte, mas é saboroso”. Espero que ela não tenha achado que sou boba. Se bem que ficar boba de consternação é o melhor tipo de bobeira.
Agora posso dizer que gosto de café. Como a Bia, porém, é preciso um quê a mais na bebida de todos os dias.
Bia é especialista em cerveja. Essa é sua principal área de atuação profissional. Ficou conhecida justamente pelo conhecimento que tem sobre a bebida que o brasileiro tanto toma, mas pouco sabe. Se tornou barista dois anos atrás, por uma gastrite, entretanto.
– Eu brinco que sou barista de mim mesma!
Quer cliente mais importante?
Sempre tomou – muito – café, mas o problema gástrico em 2015 a obrigou a ficar um ano sem uma xícara sequer. Pesquisando, soube que os cafés de torra clara eram menos abrasivos para o estômago e decidiu estudar.
Foi se encantando pelas muitas possibilidades de um só grão e fez, então, o curso.
Agora, nas viagens que faz à trabalho, leva todo seu equipamento para garantir o café do jeito que gosta. E não passar apuro. Alguns apuros, porém, terminam bem, como quando foi para Itumbiara dar uma palestra, dirigindo por seis horas, precisou de um café e acabou batendo em uma escola, que estava de portas fechadas.
A funcionária que estava lá dentro se comoveu com o desespero da moça e a deixou entrar. Bia saiu assinante do clube, que envia por correio os grãos que ela mói para o café. Por que contar tudo isso? Porque foi assim, falando de café, que eu comecei a entender um pouquinho sobre a Bia. Não basta tomar cerveja, café, comer pão com manteiga. É preciso ir além. Descobrir porque tudo isso é tão bom.
– Quando eu sei que vai chegar o café, vou dormir que nem criança na véspera do Natal, sabe?
Quando criança e adolescente, Bia já seguia pelo incomum. Pulava o muro da escola para soltar pipa, comprar salgadinhos, curtir o dia. As notas, então, não eram lá muito boas.
– Mas sempre fui campeã de truco, tá? Obrigada!
Aos 15 anos, ela descobriu a hotelaria em uma feira de profissões da escola. Afirma, mais de uma vez, que decidiu ali o que queria fazer da vida. E não mudou de ideia.
Fez o curso em Águas de São Pedro e depois foi morar em São Paulo, cidade onde nasceu. Sua família se mudou várias vezes, passando também por Ribeirão Preto.
Antes da formação, ela conta que já havia feito bicos em restaurante e como bartender. Recém-formada, custou a encontrar emprego. Distribuiu “100, 200 currículos”, como diz. Conseguiu vaga como auxiliar administrativa de um bar, onde fazia um pouco de tudo.
– Foi o único emprego em que eu fui mandada embora! Chorei um monte!
Mas logo estava trabalhando de novo, e não parou mais. Passou por restaurantes chiques e outros mais simples, de comidas inesquecíveis. Conta que em um deles aprendeu na prática a essência do servir bem.
– A dona é uma deusa. Só isso! Aprendi sobre o respeito ao cliente. Até hoje quando eu vou lá, ela sai da cozinha e vem me receber.
Nessa época, por volta de 2006, casada, ela engravidou. Precisou deixar o curso de sommelier de vinho, que tinha ganhado seu encanto. Como aprender sem provar? Mas conta que trabalhou até a barriga estar enorme. Nas definições do que é faz questão de colocar “mãe”.
Passou mais um tempo em São Paulo, mas decidiu que era o momento partir, em busca de melhor qualidade de vida. Vieram para Ribeirão Preto e a rotina continuou feita de trabalho. Passou por restaurantes, foi representante de vendas, deu aulas em faculdade.
– Dar aulas faz com que a gente aprenda muito mais!
Foi durante visita à fábrica de uma grande cervejaria com seus alunos que ela conheceu o dono, se encantou pelo trabalho e em uma semana fazia parte da equipe.
Em pouco tempo, foi convidada para assumir o cargo de gerente de marketing e, no pacote, conquistou uma vaga para a primeira turma de sommelier de cerveja do Senac. Fez. E se apaixonou ainda mais pela bebida que descobriu ser milenar. Parte da história da humanidade.
Ficou por dois anos na cervejaria e montou sua empresa de consultoria em serviços em 2012: “Por obséquio”, é o nome nada rotineiro.
De lá para cá, Bia movimentou o cenário de gastronomia em Ribeirão, mas com uma pegada diferente. Em 2015, levou 15 mil pessoas para “A Feira”, evento montado na rua. Foi aí que surgiu a ideia da Farofa Magazine, colocada em prática em 2016.
A revista, que também é portal, tem a proposta de valorizar a gastronomia além dos holofotes. Fazer conhecidos restaurantes, bares fora da zona central e sul da cidade.
Do pequeno empório ao grande restaurante: todos têm espaço. Nessa onda, elegeram a coxinha da tina Nena como a mais gostosa de Ribeirão e fizeram os apaixonados pela iguaria conhecerem o boteco na zona Norte, com mesas de bilhar, bolo de prestígio caseiro em assadeira de inox e uma senhorinha simpática na cozinha. (relembre a história da tia Nena AQUI)
– Eu quero que a Farofa apresente outra gastronomia. Não vendemos matérias porque queremos colocar a senhorinha que faz uma comida deliciosa na capa. Mostrar o que não é mostrado.
O convite para o Reality Eisenbahn Mestre Cervejeiro surgiu em 2017
– Eu resolvi aceitar porque quero passar essa mensagem para as pessoas, muito verdadeira, sobre a gastronomia, o servir. O que vai ser da próxima geração? É importante que as pessoas da área de gastronomia se valorizem. Antes, quem cozinhava para você era sua avó, sua mãe, que te amam. Quem cozinha para você no restaurante?
Na cozinha de Bia, latas e garrafas de cerveja de todo tipo se acumulam. A bebida é constante na rotina. Tanto que às vezes, para as horas de festa, ela prefere outra coisa.
– Eu não consigo tomar a cerveja sem avaliar. E vou tomar julgando.
Para ela, as mulheres conquistaram espaço no mercado cervejeiro. E o fazem cada vez mais.
– A gente se uniu. Uma vez me perguntaram como é ser mulher no mercado cervejeiro e eu respondi que é menstruar e trabalhar.
Além do reality, ela atua com sua própria empresa, dá consultorias, dirige a Farofa, faz palestras por aí. Diz que procura sempre levar informação sobre a cerveja, a história da bebida.
– Quando eu pergunto sobre a história da cerveja, ninguém sabe. As pessoas não falam de levedura como um ingrediente. Elas deveriam se interessar pelo que consomem. Eu começo minhas palestras dizendo: daqui a duas horas você vão sair daqui diferentes.
Mudar a forma de olhar, levar informação, é um dos seus grandes objetivos.
– Essas bebidas caminham com a nossa história há mais de 10 mil anos!
Quer ver a cerveja artesanal chegar a toda mesa.
– O maior problema é que ela se tornou elitista. É cara, por causa dos altos impostos. É isso que encarece.
Hoje, diz que já consegue se divertir na televisão. Antes, a tensão era o principal ingrediente. Responde a cada uma das muitas mensagens que recebe das pessoas que se tornam fãs, porque entende que isso faz parte do pacote.
– As milhares de curtidas no Instagram só valem hoje em dia. O que vai valer lá na frente é o que a gente construiu em cima de trabalho suado, honestidade. Meu caminho é muito honesto.
Está em um momento de colher frutos, mas não deixa a terra secar. Quer ver a Farofa Magazine crescer, pensa em lançar um livro com os artigos e crônicas que escreve e guarda, planeja novos negócios.
– Eu sempre quero uma treta diferente!
É apaixonada por pão na chapa. Um bom pão e uma boa manteiga, ressalta. E já chorou por comida boa, daquelas que tocam algo por dentro. Porco com mandioca foi uma delas.
– Aquilo estava tão simples, tão bem feito.
Comer, beber, servir, para ela, estão na mesma panela que o afeto.
Na tarefa de transformar a forma como as pessoas olham para o que consomem, ganhou uma apreciadora de café. E, agora, eu aceito dicas – e convites – para cafés nada convencionais.
Obrigada, Bia!
Vale a pena ler de novo! História publicada pela primeira vez em 30 de janeiro de 2019!
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