Esta história integra o livro “Incubadora Cultural: A FMRP-USP e o GEPALLE-USP abraçam as escolas da Rede Pública”, organizado por Camilo Xavier, Heloísa Martins Alves e Filomena Elaine P. Assolini, publicado pela editora FUNPEC. A história foi escrita por Daniela Penha, a convite dos organizadores.
Camilo escolheu ser ortopedista porque queria uma área da Medicina em que visse os resultados imediatos de sua atuação. A inquietude sempre morou dentro de si. E foi ela que, anos depois dessa escolha profissional, já prestes a aposentar o jaleco, se transformou em poesia, dando ao médico a possibilidade de voar pelas palavras.
Liberdade. Ele repete o substantivo uma porção de vezes na narrativa de sua trajetória.
– O que seria de nós sem o socorro das coisas inesperadas?
Escolheu construir carreira na Universidade de São Paulo porque queria ser livre por meio das pesquisas. Conta que, quando ministrava aulas, gostava de colocar nas apresentações um slide que não tivesse qualquer ligação com os outros, para incentivar a liberdade de pensamento, de criação, de interpretação.
Quando deixou nascer a primeira poesia, estava imerso na ideia de ser livre pelas palavras que correm soltas, sem a burocracia e o rigor dos artigos científicos que, por tantos anos, foram objeto de sua escrita. Desde então, há quase 25 anos, já publicou cerca de 500 poemas, em oito livros de autoria própria e colaboração em outras tantas obras.
Depois que se aposentou, em 1997, após exercer a docência por 37 anos, decidiu viver a poesia e conta nos dedos os dias de descanso.
Passou a integrar projetos culturais, é um dos coordenadores do projeto Ribeirão Cultural, é membro da Academia Ribeirãopretana de Letras e Artes e da Academia Ribeirãopretana de Letras, já tendo ocupado o cargo de presidente das duas instituições, é autor do projeto Arca Cultural e do Incubadora Cultural, em parceria com a escola Otoniel Mota; e comemora o retorno ao universo escolar.
– O que um indivíduo de 90 anos faz na escola? Ele vai colher da moçada a energia, a efervescência da mocidade.
Os 91 anos se escondem, então, na vontade de criar, recriar e ser, afinal, livre.
– No fundo, você é o resultado de muitas coisas que te antecedem. E precisa ter a sensibilidade de captar sentimentos, pensamentos e desenvolver o novo. Não ficar parado.
Camilo Xavier nasceu em Ribeirão Preto, o mais velho de três irmãos.
O pai era gaúcho, da cidade de Dom Pedrito. Sem nunca ter morado por lá, Camilo tem título de cidadão dom-pedritense, tamanha a estima que guarda de sua descendência.
Diz que escolheu sua carreira também como espelho do pai, que era médico veterinário.
– Ele tinha uma dedicação muito grande com a profissão. Eu entendi que poderia reproduzir o que meu pai fazia, mas com os humanos.
Cursou a Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, entre 1947 e 1952. Quando terminou o curso, surgiu a dúvida: voltar para a terra onde viviam os pais ou permanecer no local de onde eles saíram? Já tinha as duas como suas, mas estar perto da família foi o chamado pungente.
Retornou para Ribeirão Preto e, em 1953, começou a atuar como ortopedista. Em 1960, ingressou na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, e não mais saiu. Atuava como cirurgião, docente e pesquisador, na área de ortopedia e traumatologia, da qual foi chefe.
Entre os muitos marcos da trajetória, cita a parceria feita com a Faculdade de Engenharia de São Carlos que culminou na implantação do setor de Bioengenharia e, depois, por volta de 2000, na criação do Departamento de Biomecânica, Medicina e Reabilitação do Aparelho Locomotor, como um órgão independente.
Foi o coordenador desse projeto de criação e conta que, quando se aposentou, em 1997, o departamento já estava estruturado e todos os trâmites para sua oficialização estavam prontos. Coloca doses altas de empenho no que faz.
– Nunca fiz as coisas por obrigação. Sempre com a plena consciência de que era meu dever. Por amor, por vontade de servir.
Foi responsável pelo curso de pós-graduação da área de Bioengenharia e Ortopedia. Estudou na Inglaterra e Alemanha, como bolsista da Fapesp, fez viagens para os Estados Unidos, França e Portugal compartilhando seus conhecimentos como professor. Se especializou, estudou, pesquisou. Foi presidente nacional da Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia de 1985 a 1986.
– A vida foi preenchida no aspecto profissional.
Depois da aposentadoria, em 1997, aos 64 anos, os colegas de profissão questionavam se o professor iria abrir consultório próprio, ao que ele respondia prontamente:
– Não vou fazer concorrência para o departamento que ajudei a construir.
Decidiu, então, seguir por outras vias. Hoje, é poeta e escritor.
Em meio a construção da carreira, Camilo construía também a história familiar. Completou 60 anos de casamento, comemorando “todas as bodas” como diz. No porta-retrato da sala de casa, aparece rodeado de mulheres na foto de família. São quatro filhas e três netas.
– Elas são meu conforto, minha sobrevivência.
O cotidiano é tema em suas poesias. Escreve sobre desapontamentos e parcerias, o tempo que corre, a voz que liberta, as dores e os amores.
“Os temas colocados, /Não devem frear/ Mas libertar”, escreveu na poesia “A voz”.
Criando poemas, ele rompeu com as amarras das burocracias institucionais, do estado de alerta constante em que vivia enquanto médico, com a máxima da razão acima do sentimento.
– Liberdade é poder viver bem. É poder escolher, atuar e viver seu tempo de forma construtiva. A poesia me possibilitou o diferente dentro do padrão que era seguido.
A inspiração vem das coisas miúdas: um perfume, uma flor que nasce, o relógio que não congela o tempo. “O pior de tudo/ É que, frente a todo esse alarido,/ Automatizado, repetitivo,/ Você não ouve mais nada,/ Nem mesmo escuta/ A si mesmo…”, escreveu em “Confusão”, publicado no livro “88.com”.
O verbo amar conduziu a trajetória de Medicina e é, agora, o condutor da história que escreve na cultura. Sente que realizou sua missão nesse mundo, mas não deixa de somar planos.
– Me sinto tranquilo, no sentido de que me dediquei ao que estava ao meu alcance, sem exagerar: nem para menos, nem para mais.
A vida? Nunca encarou como “incumbência”, em suas palavras.
– É uma coisa que flui. Eu acho natural dar seguimento aquilo que cai no caminho. Não ficar estacionado. Assim, a vida acaba sendo um veículo e vai se enchendo de conteúdo.
Para terminar, cita o verso de Guimarães Rosa: “Felicidade se acha em horas de descuido”, mas faz suas complementações:
– Para mim, é um descuido vigiado, e não preguiçoso. É estar ativo, e não ser alguém passivo, que tudo aceita. De certa forma, às vezes, é preciso ir na contramão das coisas. E isso fortalece, enrijece a personalidade.
“A voz da fala não é inventada/ Tem que ter autoria./ Tem que partir da boca/ De quem sabe o que fala,/ E não se intimida,/ Com qualquer outro ruído,/ Que a faça calar…”, finaliza o poema “A voz” e conta que – pudera! – é um de seus preferidos.
A inquietude continua morando dentro de si. É a energia que o impulsiona a seguir sempre em busca do verbo. Não há, nesse criar, espaço para ponto final.
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