Texto: Daniela Penha – Fotos: Tatiane Silvestroni – Ilustração: Cordeiro de Sá – Produção: Vandreza Freiria
“No dia seguinte ninguém morreu. O facto, por absolutamente contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme, efeito em todos os aspectos justificado, basta que nos lembremos de que não havia notícia nos quarenta volumes da história universal, nem ao menos um caso para amostra, de ter alguma vez ocorrido fenómeno semelhante…”
No dia desta entrevista, João Bosco Pereira da Silva, 66 anos, contou que estava lendo José Saramago, “As intermitências da morte”. Lá atrás, pensara em estudar física e filosofia. Quem sabe compreender as coisas incompreensíveis. Por isso, o interesse pela narrativa que fala das incertezas que nos habitam, dos limites que nos fazem humano.
Entre as divagações do escritor português, há esta: “É assim a vida, vai dando com uma mão até o dia em que tira tudo com a outra”. Dialoga com a trajetória de João Bosco.
– Minha história é assim, de altos e baixos. Perdi tudo e recomecei.
Ele, entretanto, escreveria um complemento ao livro: há que se lutar para retomar o tudo que a vida leva. João vive esse processo de retomada.
O alcoolismo levou tudo. Os laços familiares, as conquistas materiais. Na fase mais crítica da doença, chegou a viver nas ruas de Jundiaí.
– Morei na rua, dormindo em calçadas e pedindo esmolas para comprar um corote de pinga.
Na Casa Santa Marta, instituição que acolhe pessoas em situação de rua, cadastrada no Mesa Brasil Sesc Jundiaí, encontrou acolhimento para recomeçar e reconstruir.
– De onde vem a força? Grande parte é amor! O amor alimenta a gente.
Paulista de origem, João Bosco Pereira da Silva conta que pôde estudar em um conceituado colégio da capital. Seu pai era diretor financeiro de uma empresa.
– Ele pôde nos patrocinar com uma educação de alto nível.
Na USP, João cursou duas faculdades – bem – diferentes: Filosofia e Economia.
Se casou pela primeira vez em 1979, ainda na universidade, e em 1982 chegou a primeira filha.
Já iniciou sua carreira profissional em grandes empresas. Foi morar no Ceará com a família, onde atuou por 20 anos em uma marca de lingerie. Chegou ao cargo de diretor e, então, começaram os problemas.
A empresa enfrentou uma grande crise.
– Da mesma forma que estive no auge, tive que segurar o abacaxi. Minha vida virou um inferno. Tinha que aguentar calado.
Tinha em sua responsabilidade cerca de dois mil funcionários. O álcool se tornou o maior companheiro.
– Desde a faculdade eu usava álcool socialmente. Mas o álcool é complicado. O socialmente vai se tornando demais…
Trabalhava das 7h à 0h. Depois que a empresa faliu, foi contratado por outra instituição. Mas as irregularidades praticadas pelos donos lhe tiraram completamente a paz.
– Não dava para continuar…
Todo esse estresse afetou o casamento. O divórcio veio em 1998. A esposa voltou para São Paulo com os três filhos.
– Eu fui bebendo cada vez mais…
Se casou novamente em 1999 e teve mais uma filha, um ano depois. Mais uma separação. Assim que a menina nasceu, ele voltou para São Paulo.
– Eu já estava com 50 anos. Não se acha mais emprego… O mercado se fechou para mim.
Foi morar com os pais, em Jundiaí. Trabalhou como porteiro, sem conseguir espaço para exercer sua formação e experiência.
– A vida me castigou e eu deixei que o álcool tomasse conta. Fui bebendo cada vez mais… Isso vai minando a vida da gente.
Os laços com a família foram se perdendo.
– A gente vai se afastando de quem gosta da gente porque eles não gostam de nos ver naquela situação…
Entre internações, recomeços e recaídas, morou por cerca de três anos na rua.
– É muito duro… você vai perdendo o amor próprio… Para não se olhar por dentro, fica enchendo a cara.
Passou algumas vezes por abrigos e clínicas, inclusive pela Casa Santa Marta.
A força para enfrentar a doença de frente veio após a quase morte. O coração acelerou demais.
– Eu vou morrer aqui, no meio da rua. Foi o que eu pensei…
Procurou um posto médico próximo e foi acolhido por uma assistente social. Conversaram muito… Aceitou o encaminhamento para o Caps da cidade, onde ficou por 15 dias antes de ir para a Casa Santa Marta.
– Só o remédio não adianta, não funciona. Eu parei de beber porque tive a determinação de fazer isso.
Inaugurada em 1998, a Casa Santa Marta, instituição de Jundiaí, abriga pessoas em situação de rua. No cotidiano, acolhe 22 homens e oito mulheres. No inverno, os números aumentam pela grande procura.
Moisés Ravagnani Leme, psicólogo e coordenador da instituição, explica que a proposta é ajudar o acolhido a resgatar sua trajetória, com um atendimento individualizado. Assim, de acordo com a necessidade de cada pessoa, a equipe auxilia na busca e inserção no mercado de trabalho, faz pontes com as famílias para resgatar laços, encaminha para os serviços de saúde. “O foco é devolver o usuário para a sociedade bem, diferente de como chegou. Devolver a ele os seus direitos violados”, diz Moisés.
A Casa recebe todo tipo de morador em situação de rua, mas ele ressalta que a maioria deles faz uso de álcool e drogas.
Os acolhidos, então, fazem o abrigo de lar e ficam o tempo que precisarem. As refeições oferecidas, assim, são parte essencial do trabalho. Desde que entrou para o programa Mesa Brasil, em maio de 2019, a entidade já recebeu quase 22,5 toneladas de alimentos.
Moisés enfatiza o quanto as doações transformam a rotina da casa.
– Com as doações eles podem comer frutas, doces, bolachas, coisas que eles nem lembravam mais o gosto. O Mesa chega para mudar a vida deles… A gente propõe uma mudança de vida e o Mesa vem colaborar com essa mudança!
Vez em quando, João Bosco almoça na Casa e aproveita para rever a equipe, que se tornou família. Morou ali por 10 meses.
Conseguiu deixar o álcool e refazer os laços com a família.
Antes, já havia passado por internações e também esteve na Santa Marta. Dessa vez foi diferente. Atrelou o tratamento à vontade de transformar sua história.
– Eu precisei me encarar e dizer: ‘Você não é assim’. Admitir o problema para os outros já é difícil. Admitir para si mesmo é mais ainda…
No tempo em que esteve na rua, perdeu sua mãe. Só ficou sabendo dias depois. Carrega essa dor em aberto. Mas pôde curá-la em partes.
Após 10 meses na Santa Marta, voltou para casa e pôde cuidar do seu pai, em seus últimos dias de vida. Hoje, mora com a irmã.
– Eu tive pais maravilhosos que nunca fecharam as portas para mim.
Reviu o papel de filho e também o de pai. Conseguiu reencontrar a filha que deixara lá no Ceará, 23 anos atrás. E reaver o contato com os três filhos do primeiro casamento. Ganhou, então, família grande, com netos e carinho.
– Quero mais o quê da vida? Eu tenho filhos maravilhosos! Faço o que eu posso para recuperar todo o tempo que estive ausente…
Há dois anos e meio sóbrio, faz planos.
– Eu tô me programando para ficar perto das minhas meninas. Quero morar na praia! Ter uma vida digna… Eu gosto muito de ler!
No dia seguinte, ninguém morreu. João Bosco, por sua vez, reinventou a vida.
– Eu me redescobri, eu renasci
Conheça mais sobre o Mesa Brasil
Que tal criarmos uma ponte entre quem precisa de ajuda para matar a fome e quem pode e quer fazer o bem? Uma ponte que consiga unir essas duas pontas, fazendo com que os alimentos que sobram para um cheguem à mesa do outro?
É isso que faz o programa Mesa Brasil, criado pelo SESC SP há 27 anos e presente em todo o país.
Caminhões coletam diariamente doações de alimentos com empresas, supermercados, cerealistas, produtores, entre outros fornecedores e entregam para instituições sociais e hospitais. Só em São Paulo são 30 caminhões circulando todos os dias para atender 95 cidades paulistas.
Realizando a coleta e a entrega dos produtos, o Sesc São Paulo facilita o caminho para quem quer doar e garante que toneladas de alimentos que seriam desperdiçados cheguem à mesa de quem precisa: uma rede de combate à fome!
Em 2021, foram 1341 instituições sociais beneficiadas, além de milhares de famílias que levam alimentos direto para suas casas. As 1191 empresas doadoras fizeram 6,4 milhões de quilos de alimentos chegarem à mesa de quem precisa.
Em Jundiaí, o programa foi implantado em maio de 2019 e já distribuiu mais de 706 toneladas de alimentos, para 44 entidades cadastradas. Ao todo, quase 9 mil pessoas foram beneficiadas pela solidariedade de 63 instituições doadoras.
O projeto “Gente que Alimenta” conta as histórias de quem faz esse programa do bem acontecer: doadores e instituições que precisam de apoio para continuarem suas atividades.
Quer saber mais sobre o Mesa Brasil? Quer se tornar um doador? Acesse o SITE AQUI e se encante ainda mais com esse bonito programa!
João. Orgulho de vc. Triste porque a gente não fez nada pra te ajudar.
Esse projeto é maravilhoso! Parabéns a todos os envolvidos pra que histórias inspiradoras como a do senhor João Bosco chegue a nós!
Oi Lolo,
Desculpe, só agora vi sua mensagem.
Não há porque ficar triste. Pelo contrário, eu é que sou eternamente grato por vocês terem sido todo esteio e fonte de carinho, que tiveram sem a Tetê.
Bom dia seu João Bosco não sei se você se lembra de mim Eu sou a Josenilda que trabalhei na sua casa quando você morava em Fortaleza gostaria muito ter notícias suas e poder falar com o senhor