Com corrida, Arilson vence a dependência química e quebra recordes mundiais

11 junho 2018 | Gente que inspira

A vitória

Arilson já havia percorrido 70 km da prova de 100. O cansaço começou a insistir que era hora de parar. Mas algo lá no fundo era mais forte.

O caminho fora bem mais longo que os 100 km da prova. O caminho fora bem mais tortuoso do que o cansaço do corpo. Ele não havia chegado até ali para desistir.

-Você está olhando para um milagre.

Fazia apenas seis meses que ele estava limpo, lutando após 32 anos de álcool e drogas. Pelo crack, chegou ao lugar mais fundo de si.

Preso por roubar uma senhora, entendeu que não havia mais saída para uma vida de vício. Amarrou uma corda de varal no pescoço e usou as grades da cela como suporte.

Pulou.

E sentiu o chão gelado como impacto.

– A corda arrebentou. Mas e se não tivesse arrebentado?

Perdeu as contas das recaídas, das vezes em que foi parar no hospital em overdose, das falas de tristeza que arrancou da mãe.

Durante esse percurso, teve uma fratura múltipla no fêmur. O médico avisou que nem mesmo o futebol seria possível. Arilson mancava da perna esquerda, que ganhou uma haste de titânio em cirurgia.

Quando o corpo insistia em parar, faltando 30 km para terminar a prova, era em tudo isso que Arilson Silva pensava. E, então, não faltou forças para continuar.

Completou a prova em 5º lugar e já sabia que seria só a primeira. Aos 47 anos, a resistência do seu corpo para corridas de longa distância é tanta que, ele diz, está sendo alvo de uma pesquisa por alunos da Medicina de Ribeirão Preto.

– Eu tenho dentro de mim uma força de vontade tão grande que aos 50 anos serei o homem mais forte do mundo.

Ele percorreu 508 km e 400 metros durante três dias: maior percurso em pista de atletismo do Brasil, um recorde mundial. Será o primeiro sul-americano a disputar o torneio mundial de corrida na modalidade 48h, que acontece na Grécia.

No cenário esportivo, ganhou o apelido de Ariman, pelo metal que carrega na perna, pela história heroica.

– O que eu mais quero é mostrar para as pessoas que é possível ser um dependente de crack e se recuperar. Minha história é real. Aconteceu.

Ele registra cada caminhada, cada treino, cada competição. No final de abril, somava 22.168 km percorridos em dois anos e quatro meses de um caminho do bem. Quer que essa métrica supere a marca deixada na trajetória do passado.

Arilson Silva ultramaratonista ribeirão preto

 

O primeiro gole

Arilson nasceu em Altinópolis e desde os 11 anos vive em Brodowski. O pai era jogador de futebol, a mãe dona de casa e ele é o segundo mais velho de quatro filhos.

Quando tinha sete anos, os pais se separaram e ficou para a mãe as responsabilidades da casa. Os filhos, então, tinham que ajudar. E Arilson começou engraxando sapatos.

Aos 11 anos, trabalhava como sapateiro, recolhendo tachinhas no chão para fazer botas. Aos 14, conseguiu emprego em uma serraria. E tomou seu primeiro gole de álcool.

– Todos os dias à tarde, os mais velhos gostavam de tomar uma pinguinha. Eu comecei a experimentar. Aquele primeiro golinho que parece inofensivo, mas não é.

Depois da pinga, veio a maconha, a convite dos amigos. E aos 18 conheceu a cocaína.

– Eu estava alcoolizado, tinha fumado maconha e um colega me ofereceu, dizendo que se eu usasse iria me deixar sóbrio. Foi amor à primeira vista.

Só não foi mais avassalador do que a sensação do crack. Aos 22 anos, no Carnaval de 1992, Arilson fumou crack. Diz que a droga estava chegando à Ribeirão Preto e ninguém sabia o quanto era devastadora.

– Aí minha vida mudou de caminho.

Nessa época, ele trabalhava de pedreiro. Conta que gastava tudo o que ganhava para comprar drogas. Usou por cinco anos, sem que ninguém da família percebesse.

Em um encontro com o pai, acabou pedindo ajuda pela primeira vez.

– Eu estava muito magro. Ele perguntou o que estava acontecendo e eu contei.

O pai o levou para um rancho, onde ficou por três meses sem usar drogas. Dias depois de voltar para casa, já estava usando de novo.

Foi a primeira de muitas recaídas que teve pelo caminho.

Quando se casou, conta que tentou com todas as forças parar. Passava alguns dias sem usar e as recaídas eram sempre muito intensas.

A esposa engravidou e mais uma promessa de mudança foi feita.

– Quando minha filha nasceu eu estava em uma favela fumando crack. Não segurei a mão da minha mulher no parto. Não vi minha filha nascer.

Jurou que mudava. Chegou a passar oito meses sem usar, mas uma nova recaída veio.

Quando a filha completou seis anos, sua esposa foi embora, depois de muito lutar.

– Eu entrei em depressão. E consumi muitas drogas. Se Deus não me levou, é porque ele tinha um propósito na minha vida.

Em 2010, veio a fratura múltipla no fêmur. Passou dias esperando a cirurgia. E outros tantos reaprendendo a andar.

Em 2014, pediu ajuda de novo e foi internado em uma clínica de reabilitação. Com um mês limpo, começou a fazer caminhadas dentro da clínica e sentia a perna melhorar.

Pelo bom comportamento, foi conquistando o carinho dos outros dependentes em recuperação e passou a coordenar alguns trabalhos na instituição, entre eles a venda de sacos de lixo em semáforos para arrecadar verbas.

A recaída veio em Espírito Santo do Pinhal. Arilson dirigia a perua que levava seus colegas para as vendas. Deixou os jovens nos pontos de comércio, pegou o dinheiro da clínica que carregava consigo e usou em drogas.

Quando acabou com tudo, se desesperou.

– Eu sinceramente não sei se eu queria roubar para devolver o dinheiro para a clínica ou se eu iria usar mais drogas.

Puxou a bolsa de uma idosa que passava pela rua. Foi preso algumas quadras depois, dentro da perua.

Arilson Silva ultramaratonista ribeirão preto

 

Novo percurso

– Como eu ia voltar para a minha cidade e olhar para os olhos da minha mãe? Não tinha mais saída para mim. Minha única saída era a morte.

Na cela, Arilson conta, havia uma corda usada em varal. Foi a forma que encontrou para pôr fim à trajetória.

– Mas Deus tinha um propósito para mim. Depois que a corda arrebentou, eu chorei muito. Passei a noite pensando o porquê de tudo aquilo.

Ele ficou cinco meses preso. E garante que, apesar da grande oferta de drogas na cadeia, ficou limpo.

Conta que conseguiu sair pela sinceridade. O advogado orientou a mentir, na tentativa de desqualificar o roubo para furto.

– Mas nos cinco meses que fiquei sem usar drogas, eu tinha na minha cabeça o que ia falar. Contei todo o meu passado para a juíza. Contei tudo o que tinha vivido para estar ali. Eu não era ladrão. Eu precisava de uma nova chance.

Voltou para casa em dezembro de 2014. Mas a chance ficou na cela.

– Minha mãe dizia para os vizinhos que eu só ia ter jeito no caixão.

Quinze dias em liberdade e Arilson voltou para as drogas.

– Você está pensando que não vai ter fim essa história, né?

Passou um ano trabalhando de pedreiro para sustentar o vício. A troca de rota veio em um almoço de família, dia 16 de janeiro de 2016.

Os irmãos e a mãe estavam reunidos e na hora de cortar o bolo Arilson sentiu vontade de fazer mais uma promessa.

– Eu olhei todo mundo naquela mesa e fiquei pensando: por que só eu sou diferente? Parei a cena e disse: ‘Mãe, a partir de hoje eu nunca mais vou usar drogas’.

Ele mesmo não acreditava no que estava dizendo. E ficou esperando o deboche da família que, depois de tantas recaídas, já tinha perdido a fé.

Mas a fala da mãe foi o ponto final.

– Algo muito forte tocou minha mãe. Ela olhou para mim e disse: ‘Minhas orações chegaram’. Aquilo tocou todo mundo. Nós nos abraçamos. Foi um divisor de águas na minha vida. Senti um milagre acontecendo.

Naquela mesma tarde, Arilson colocou um short e saiu para andar. A ideia era esfriar a cabeça. Sem saber o que era rotina de exercícios e mancando da perna esquerda, percorreu 22 km nessa primeira caminhada.

– Eu fui pedindo a Deus um novo sentido na minha vida. Já voltei diferente.

Na volta, jogou toda a droga que guardava em casa na privada. E, pela última vez, prometeu que iria mudar o percurso.  Lutar contra a dependência química.

 

Ariman

 Depois dessa primeira caminhada, Arilson passou a se exercitar diariamente, nos intervalos do trabalho como pedreiro.

Depois de um mês, já não mancava, sentia os pulmões se abrirem e trocou a caminhada pelo trote. No segundo mês, já estava correndo.

– Quanto mais eu corria, menos eu sentia vontade de usar drogas.

Conversando com um professor de Educação Física, percebeu que havia algo de diferente no seu organismo.

– As pessoas caminham dia sim e dia não, e ficam cansadas. Eu corria todos os dias e não sentia nada. O professor alertou de que eu podia ser um atleta de longa distância, um ultramaratonista.

Depois de seis meses de treinos, soube da prova de 100 km entre Franca e Rifaina. E decidiu arriscar.

Voltou com a classificação do 5° lugar e com fôlego para ser, de fato, um recordista.

– Parece que eu já sabia que ali nascia um herói. Pessoas que fazem isso a vida inteira não têm essa performance que eu tinha depois de seis meses.

Logo procurou um médico. Queria comprovar que por dentro o organismo estava tão bem quanto por fora.

– Estava tudo bem. Aí eu te falo: não é um milagre?

Completou em segundo lugar a primeira prova de 24h que fez, em Campinas. E começou a quebrar recordes. Em agosto do ano passado, organizou o percurso de 508 km, em 72 horas, na pista de Brodowski. As competições de longa distância vão até 48 horas e, então, ele ganhou os noticiários nacionais.

– Eu consegui um recorde mundial! Vou entrar para o Guinness.

Como o primeiro sul-americano classificado para o mundial na modalidade de 48h, busca recursos para arcar com a viagem para a Grécia, que será no segundo semestre deste ano.

– É muito melhor se preparar do que competir. A preparação traz vida. A competição traz cobrança!

Hoje, tem patrocinadores que lhe oferecem acompanhamento nutricional, fisioterapia, alimentação, entre outras necessidades de atleta. Ainda não tem, entretanto, um salário que lhe permita treinar com tranquilidade. Para a Grécia, então, faz campanhas, ações, corre atrás.

– Eu vou voltar campeão mundial. Pode ter certeza!

Arilson sabe que não está curado.

– Dependência química não tem cura. Eu sou doente. O dia em que eu achar que estou curado, estarei caído.

Mas encontrou na corrida o estímulo diário para continuar. Todos os dias, corre em média 40 km.

– Hoje, eu tenho algo a perder. Tenho tudo isso que conquistei!

Os planos para o futuro são audaciosos.

– Eu quero correr até os 65 anos em alto nível. E depois continuar correndo até os 100!

Diz que a grande alegria é compartilhar sua história em escolas, instituições, com quem quer que seja. Quer encurtar o caminho, abreviar sofrimentos.

– É isso que eu digo para eles: vocês vão querer passar por tudo isso que eu passei? São poucos os que conseguem sair! Se eu pudesse, nunca teria entrado.

Como não pode mudar o passado, corre em direção ao futuro.

– Eu me sinto muito feliz. Tô saboreando a vida. Posso beijar e abraçar a minha mãe. Hoje, ela conta de mim com orgulho para os vizinhos.

Constrói uma nova história em milhares de quilômetros do bem.

 

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