Com Estúdios Kaiser, Edgard ajudou a preservar prédio histórico da Cervejaria Paulista

14 julho 2021 | Destaque, Patrimônio em Memórias

Esta história faz parte do projeto “Patrimônio em Memórias” realizado com apoio do Proac LAB, programa da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo.

Texto e fotos: Daniela Penha

Ilustração de Luciano Filho, exclusivamente para o projeto “Patrimônio em Memórias”

Às 6h, às 12h e às 18h. A sirene da Cia. Cervejaria Paulista contava o tempo de quem trabalhava e vivia nos arredores da Vila Tibério e do Centro de Ribeirão Preto. Bairro operário, os trabalhadores passaram a nortear seu acordar pelo ecoar do som, hoje lembrado com nostalgia.

– A cidade se guiava por isso!

As pessoas acertavam seus relógios pelo badalar no alto da torre da fábrica. E dizem, inclusive, que quando a Segunda Guerra Mundial acabou, em 2 de setembro de 1945, a sirene, chamada informalmente de “canto da sereia”, tocou na madrugada, espalhando a boa notícia.

Edgard de Castro nasceu em 1943, durante a guerra. Muito pequeno, não se lembra do soar anunciando seu fim, mas reproduz a história que escutou.

Conta esse e outros tantos causos do prédio histórico tombado, que hoje, totalmente restaurado, é sede do Grupo Thathi de Comunicação e do Instituto SEB.

Estúdios Kaiser de Cinema

Por uma década, ele esteve ali. Montou na antiga cervejaria os Estúdios Kaiser de Cinema, cenário para a gravação de filmes com visibilidade local e nacional. O carinho que tinha pelo espaço, ele garante, já vinha de outra data. Então, só cresceu.

No tempo em que estiveram ali, com a faceta de produzir cinema no interior do estado, fizeram o restauro da estrutura, machucada pelo tempo em que ficou desocupada, e conseguiram o tombamento do prédio pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico).

– Só o pátio e o oratório, na calçada, eram tombados. Nós conseguimos tombar todo o espaço e acabaram as investidas comerciais para de derrubar o prédio. Esse resgate foi a coisa mais importante que nós fizemos.

Ali, entre as enormes instalações ainda em piso de pedras, que hoje ganhara visual novo e até mesmo um café em estilo retrô, a história de Ribeirão Preto está representada. E guardada.

– Esse espaço é um demonstrativo do poderio econômico da cidade na época, é um parâmetro da origem do Theatro Pedro II, ajudou a criar o bairrismo entre as pessoas e foi um ponto de referência para toda Ribeirão Preto.

Estúdios Kaiser de Cinema

Cinema com história

Edgard é ribeirão-pretano de nascença e de afeto. O carinho pela cidade está na história contada em detalhes que só quem muito pesquisa e se interessa pode guardar.

– O negócio do café no Brasil começa com a vinda da família imperial fugindo do Napoleão de Portugal para cá. Eles se instalam do Rio de Janeiro e vem toda a nobreza com o rei, que distribui terras para esses nobres. Uma das famílias recebe ali no Vale do Paraíba. Montaram fazendas e plantaram o café, que não tinha a projeção que tem hoje.

E vai contando toda a história da chegada de Pereira Barreto em Ribeirão, com o café criado com uma muda trazida da Libéria.

– Ele já ouvia falar que essa região de Ribeirão Preto, com São Simão, era muito fértil. Ele pega os irmãos e vem até aqui conhecer a fertilidade dessa área. A caravana Pereira Barreto vem para cá, compra a fazenda Cravinhos, planta o café Bourbon e se associa ao Henrique Dumont.

Não economiza em detalhes. Recria o apogeu cafeeiro da cidade com suas memórias feitas das narrativas que escutou e das histórias que leu.

O pai de Edgard era advogado e, então, o filho cursou Direito, seguindo a tradição familiar. Desde a adolescência, entretanto, se envolveu com comunicação. Por volta dos 17 anos trabalhou em uma estação de televisão na rua São Sebastião e, desde então, se encantou pelo cinema. Mas cursou Direito e até começou a trabalhar na área. Já depois de um tempo, finalizando mais um dia de jornada como advogado, tomou a decisão: “Não gosto nem dos meus problemas, vou resolver os dos outros? Vou largar isso!”.

Assim o fez e foi além na mudança. Com a esposa, embarcou para a Inglaterra.

– Estava ocorrendo lá uma grande mudança social.

Se separaram fora do país e, quando ele decidiu voltar, nos anos 70, fez uma parada em Roma para visitar um amigo. Entre as conversas, soube que esse amigo estava envolvido com o cinema e decidiu embarcar de vez nas produções.

Voltou para Ribeirão Preto, se uniu a um grupo de colegas e criaram uma rede de auto cines: Aquarius Auto Cine. Ficava na avenida Presidente Vargas. Nos grupos das redes sociais que rememoram as lembranças de Ribeirão são muitas as histórias e a saudade da telona onde se via os longas do carro.

Vamos fazer um filme? Foi a próxima ideia.

– Estávamos no auge do pornochanchada e não queríamos entrar por aí. Então, fizemos “A carne”, baseado em um livro de Júlio Ribeiro, proibido por ser um romance naturalista.

Lançaram a película em 1975. Edgard de Castro fez a produção junto com Renato Carrera Filho e a direção ficou com J. Marreco. No elenco, a atriz Selma Egrei, junto a outros artistas de grande impacto da época, como Newton Prado.

– Foi um sucesso! Depois, vieram outros! Mas eu pensava que tínhamos que aproveitar a experiência do cinema. Cenário, figurino: é tudo descartado após o filme. Nós precisávamos aproveitar isso!

Já nessa época surgiu a ideia de criar o estúdio. Foram amadurecendo ao longo dos anos, sem deixar de produzir. Edgard produziu outros filmes de repercussão. O premiado “Paranóia” saiu em 1977, com direção de Antônio Calmon. “O cortiço”, em 1978, inspirado na obra de Aluísio de Azevedo, com superelenco e direção de Francisco Ramalho Jr. E outros títulos: “Bacalhau (1976)”, “Raoni (1978)”, da qual a sua empresa, Omega Filmes, foi co-produtora até a edição, “Pardo Sim! Sujo Não (1991)”, “Homem Voa? Santos Dumont (2001)”, “Em Trânsito (2002)”, “Ribeirão Preto tem História (2002)” e “Tempo de Resistência (2003)”.

Em 2001, criaram o Núcleo de Cinema de Ribeirão Preto e, então, veio a São Paulo Film Commission, da qual Edgar é presidente há 20 anos. Ele ressalta que a estruturação do cinema de Ribeirão veio junto com a Feira Nacional do Livro, evento no qual ele também tem grande atuação, assumindo papeis de vice e presidente na Fundação do Livro e Leitura de Ribeirão, que administra e realiza, todos os anos, a feira.

 Inspirado pelo cinema norte-americano, Edgard explica que era preciso produzir grandes filmes nas cidades do interior, como forma de fomentar a economia, o turismo e a cultura nesses espaços.

– Você assistiu “Pontes de Madison”? Então, depois do filme esse lugar se tornou um ponto turístico. Muitos setores são envolvidos durante e após a produção de um filme: hotéis, costureiras, restaurantes.

A criação do estúdio, ideia iniciada lá atrás, se fazia cada vez mais necessária. A essa altura, o prédio da Cervejaria Paulista já estava há anos desocupado.

– As enchentes que aconteciam aqui deixaram o espaço cheio de barro, os ladrões levaram tudo: portas, janelas, fiação. Como ficava fechado, ninguém se dava conta do que estava acontecendo do lado de dentro.

Estúdios Kaiser de Cinema

Disputa do café

A Cia. Cervejaria Paulista foi inaugurada em abril de 1913, era do café em Ribeirão Preto. A cidade ficou conhecida como a capital mundial dos grãos, exportados para o mundo.

– Esses cafeicultores um dia resolveram montar uma cervejaria.

A primeira fábrica foi instalada na rua Visconde do Rio Branco. Um ano depois, em 1914, foi inaugurada a unidade na avenida Jerônimo Gonçalves, próxima à Estação Mogiana e em frente à sua principal – mas não eterna – rival: Cia. Antártica Paulista.

– Eles brigaram a vida toda. O guaraná Paulista era mais docinho e o Antártica era champanhe. A Antártica colocou seu preço lá embaixo, para derrotar a concorrência, mas ninguém comprou. A Paulista se tornou uma coisa muito bairrista mesmo.

Entre as cervejas produzidas, a Niger é uma das que deixaram saudade.

Edgard conta que toda essa rivalidade fez nascer o Quarteirão Paulista.

A Antártica resolveu montar um ponto de vendas para seus produtos. Na rua Américo Brasiliense com a Amador Bueno, Centro de Ribeirão, instalou o Cassino Antártica que, ele relembra, contava com restaurante, um teatro com pista de dança no meio e mesas ao redor e um espaço aos fundos para hospedar os artistas que se apresentavam.  

– A Antártica chamou um francês para a direção do cassino, Francois Cassoulet. E ele levou mulheres europeias, de vários lugares, mas que eram chamadas de francesas para apresentar um número ali. Passou a se chamar Cassino Eldorado, com as moças mais bonitas da cidade. Virou o sonho de toda a população masculina frequentar o cassino. Esse cassino despertou uma vontade na Cervejaria Paulista.

A Paulista inaugurou, então, em 1930, o Theatro Pedro II.

– Essa disputa trouxe para a cidade toda essa cultura!

Em 1973, as inimigas se uniram, com a fusão entre Antártica e Paulista. Depois, vieram sucessivas fusões e aquisições, até desativação da fábrica em 2003.

– O prédio é vetor das ações culturais, dos costumes e da história desse povo.

Estúdios Kaiser de Cinema

Memórias preservadas

Foram 10 anos produzindo cinema na antiga cervejaria, nomeada de Estúdios Kaiser. Conseguiram o comodato para a utilização do espaço da então proprietária Kaiser. Por isso o nome dado o projeto.

Com apoio de editais, leis de fomento, iniciativa privada, união de forças, restauraram o prédio, reformaram, reativaram.

– Aquilo era cenário para muitos filmes. Um pátio enorme, cenário permanente. Com o digital, fizemos sete estúdios lá dentro.

Edgard conta que filmes de grande repercussão foram gravados ali. O primeiro que rodou no Kaiser foi “Onde Andará Dulce Veiga”, em 2008, com roteiro adaptado da obra de Caio Fernando Abreu e que traz em seu elenco nomes como Maitê Proença, Eriberto Leão, Carolina Dieckmann, Nuno Leal Maia, Christiane Torloni, Oscar Magrini, Júlia Lemmertz e Cacá Rosset. “O Divórcio”, lançado em 2017, com direção de Pedro Amorim e produção do ribeirão-pretano LG Tubaldini Jr, também utilizou o histórico estúdio.

Em 2014, o comodato, que então era com a cervejaria Heineken, terminou e veio a proposta de compra do espaço. Edgard explica que não foi possível aceitar a oferta, que demandava alto investimento. O prédio foi comprado, então, pela Revide e depois passou para Chaim Zaher, como sede do Grupo Thathi de Comunicação e do Instituto SEB.

– Foi dolorido deixar o espaço, mas estou muito feliz com o que foi feito.

O espaço da antiga Cervejaria foi todo revitalizado e hoje, além dos estúdios de TV e rádio do Grupo Thathi também abriga projetos sociais e culturais. Uma cafeteria, aberta ao público, leva visitantes ao espaço histórico.

Edgard, vez em quando, passa por ali. Difícil segurar a saudade.

– Aqui está uma fase da história da minha vida.

Com ele, o passeio pelo prédio é pura informação. Conta do restauro dos relógios que ficam no alto da torre, feito quando começaram os estúdios. Os urubus tinham tomado conta! Relembra onde cada filme foi gravado. Anda por ali com nostalgia no caminhar.

– Aqui tudo tem história!

Ajuda, então, a preservar memórias que são de todos e todas.

– Esse prédio é vetor de uma ação cultural, dos costumes de um povo.

Um legado, ele bem sabe, é feito de matéria, mas também de afeto. E isso nunca lhe faltou.

História do patrimônio

A Cia Cervejaria Paulista foi fundada em 25 de abril de 1913, por descendentes alemães, entre eles Hanz Scherholz. A primeira fábrica foi instalada à Rua Visconde do Rio Branco. Em 1914, foi inaugurada a nova fábrica, construída a Avenida Jerônimo Gonçalves, próxima a Estação da Cia. Mogiana de Estradas de Ferro, entre o Centro da cidade e Vila Tibério, com arquitetura moderna e inovadora para a época. Foram produzidas ali marcas de cerveja conhecidas, como Poker, Niger e Trust. Em 2007, as instalações da fábrica foram tombadas pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico).

Mais informações sobre o tombamento: http://condephaat.sp.gov.br/benstombados/cervejaria-paulista/#

Mais histórias do projeto Patrimônio em Memórias:

Compartilhe esta história

2 Comentários

  1. Valter Castaldelli

    Eu fiz parte da Companhia Cervejaria Paulista, como químico responsável, em substituição ao Sr. João Pontin, de 1071 a 1976, ocasião em que está fábrica de bebidas foi adquirida pela Antarctica, e, continuei como químico desta segunda empresa até 1997, só que fui transferido para Bauru. Ainda possuo a fórmula original do Guaraná Paulista.

    • Daniela Penha

      Você deve ter MUITA história para contar, Valter! Que ótimo receber seu comentário! Abraços!

Outras histórias