Com raízes na quebrada, Leser articula realidades e faz arte como manifesto

21 julho 2021 | Destaque, Gente que inspira

Esta história faz parte do projeto “Literatura em Múltiplos Meios”, que conta com o apoio do PROAC LAB, programa da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo.

 Texto e fotos: Daniela Penha

              

Quem já viu o Leser por aí, vai se lembrar. Não só pelo longo cabelo de dread e seu estilo que é todo resistência, mas pelo jeito de acolher. De fala mansa e tranquilidade em altas doses, Leser agrega. É ponte entre a quebrada e a zona Sul. Faz seu rap, promove cultura para a juventude e realiza, dia a dia, a desafiadora tarefa de aproximar mundos diferentes, partes da mesma cidade.

– Eu sei quais são os olhares da discriminação. Nunca tive envolvimento nenhum com o crime, mas já fui enquadrado pela polícia. Vivenciei o que os meninos vivem, na pele. E aprendi a dialogar com quem não enxerga assim.

Entre 2014 e 2015, quando os rolezinhos estouraram em Ribeirão Preto (e em todo Brasil), e centenas de adolescentes passaram a marcar encontros coletivos nos shoppings da cidade, Leser foi chamado pelos centros comerciais.

A aglomeração de jovens incomodava parte da clientela e, por vezes, havia confusão. Houve a tentativa de barrar a entrada, a situação foi parar na Justiça, as críticas pela exclusão vieram fortes. Os shoppings, então, pediram sua ajuda para o diálogo.

As barreiras impostas não haviam resolvido a questão que, Leser explica, sempre esteve bem visível.

– O shopping está em uma cidade que é muito desigual. Aonde a juventude pode ir? Por que não montar um projeto para garantir espaço aos jovens? Dar dignidade, aproximar os jovens desses ambientes?

Em parceria com a administradora dos shoppings, iniciaram um projeto que tinha o jovem – e suas necessidades – como centro. Criaram espaços para a juventude se reunir, se divertir, conviver.

– Nós levamos rolês para os parques, as praças. Desfiles de moda no Parque Ribeirão, com as marcas dos shoppings na periferia e as modelos da periferia, sem precisarem se enquadrar em um padrão. O jovem pode ir para o shopping a hora que ele quiser, mas se a gente puder promover ações, arte, cultura na quebrada, por que não fazer isso?

O caso é um entre outros vários. Na Feira do Livro de Ribeirão Preto, Leser também atuou com as juventudes. Levaram cerca de 1,5 mil jovens por dia para oficinas de robótica, teatro, literatura, hip hop.

Ele participa de ações nas escolas, projetos que incentivam o primeiro emprego, conversas, encontros com a molecada, sendo remunerado para isso ou não.

– Em sempre fiz por acreditar no que eu tava fazendo. Eu abraçava essa responsa. Hoje, se fala que é ‘ativista’. Na época não tinha esse termo. A gente vivenciava muito.

E de onde isso vem? Mais uma vez, ele rompe estereótipos. Leser, jovem negro, criado na quebrada, cresceu na igreja evangélica. Sua religiosidade é tão presente em sua trajetória quanto sua arte e seu engajamento.

– Há muito tempo, a igreja tem um papel social muito relevante na periferia. Tem muita luta dos evangélicos que estão na base. Mas a igreja é o que você aceita vivenciar, viver. Tem igrejas que não me aceitam como cristão pela minha aparência. Na base, é outra coisa. É plural.

Tem muita história na trajetória de quem tem as raízes fincadas na quebrada e faz uma ponte entre os polos da cidade.

MC Leser Ribeirão Preto

Elieser Pereira, 38 anos, nasceu e cresceu no Simioni, conhecido como um dos bairros mais violentos de Ribeirão Preto. Em suas memórias tem, sim, violência e dor. Mas tem também uma infância feita pelo simples, uma família presente, amizade e laços de afeto.

– A linha de trem e o brejo sempre fizeram parte da minha infância. Era passarinho, peixe, cavalo. Sempre ia para a lagoa, o Rio Pardo. Até os 13 anos vivenciei muito isso.

Ele tem quatro irmãos. Seus pais eram vendedores ambulantes e aos 11 anos Leser também foi para as vendas nas ruas. Trabalhava na horta da favela do Simioni. Ia cedinho, para separar os maços, cortar, lavar para os vendedores levarem. Logo, começou a vender verduras também. Depois, passou a vender picolés, com um carrinho.

– Foi muito importante para mim, porque sempre tive as minhas coisas. Quis um cavalo e comprei com a grana no trabalho. Depois, troquei o cavalo na bike e aí, com 15, 16 anos, conheci o skate.

A família sempre foi religiosa e, então, Leser cresceu na igreja.

– Eu aprendi a me relacionar com a vida e com a diversidade de religiosidade que tem a periferia. Eu tinha um mano que seguia a religião africana e as pessoas falavam que eu era o crente e ele o macumbeiro. Eu não compreendia por que desrespeitar desse jeito a religião das pessoas…

Viu amigos se perderem e recebeu convites para outros caminhos.

– Eu tinha um skate zuado e eles me falavam: ‘Ô, mano. Você fica andando nesse skate, podia vender droga para nós!’. A vida de muitos jovens se modifica a partir daí. A proximidade que o jovem tem com o crime, o acesso que eles têm às drogas… todo dia o cara tá ali… muitos se perdem porque é a realidade que está mais próxima.

Conheceu o skate e passou a frequentar também outros bairros da cidade.

– Ampliou minha visão.

Foi nessa época, por volta de 1996, que vivenciou o ápice da violência.

– Foi a guerra dos bairros. Perdi 32 jovens próximos. Eu contava.

As lideranças do tráfico nos bairros das periferias passaram a brigar por espaço. O número de homicídios disparou e a polícia nomeava o fenômeno como uma “guerra civil” causada pela briga no comando das drogas. Os jovens eram as grandes vítimas.

Bem nessa época, Leser e sua família se mudaram do Simioni para o Quintino Facci 2, bairros rivais na “guerra”. O skate foi escudo.

– Eles falavam: ‘Aqueles são os moleques do skate’, e não mexiam com a gente. Foi nessa época que fiz amizade com os meninos que faziam rap. Eles me incentivavam a cantar. Me envolvi com grafite também.

A música, então, abriu outros caminhos. Entre 1998 e 1999 passou a fazer parte do Núcleo de Cultura Periférica. Estava com 15, 16 anos.

– Foi um marco. Eu comecei a estudar a luta das periferias e passei a ter orgulho de vir de onde eu vim, de ter o que eu tenho, a reverenciar minha ancestralidade apagada. Ali, a gente entendeu nossos valores e os valores dos nossos pais.

Leser conta que muitos jovens que passaram pelo Núcleo hoje têm atuação local e nacional na cultura de rua. A arte abrindo outros caminhos, se apropriando das histórias.

Passou a participar da Casa de Hip Hop de Ribeirão. Com projetos, agregavam jovens e faziam letras baseadas na realidade que compartilhavam.

Começou aí sua atuação de diálogo, seu caminho como ponte e inspiração para a molecada. Só foi ampliando e potencializando a luta.

Em parte do tempo, Leser descobria a arte de rua e reencontrava os valores de sua origem. Na outra, começou a trabalhar como office boy em uma empresa de contabilidade. O convite surgiu com os amigos do skate, que trabalhavam no mesmo escritório.

Ficou oito anos neste trabalho. E saiu entre os lamentos, mas também muito apoio, dos chefes. A rotina era de correria. Deixava seu bairro cedinho, de bike, ia para o trabalho, depois pedalava para a escola e voltava para casa. Nem sabe precisar tanto trajeto em quilômetros. Eram muitos!

– Nessa época, eu não conseguia levar a escola muito a sério. E não entendia por quê. Hoje, entendo. Eu andava de bike o dia todo! Era muito cansaço! 

Os computadores do trabalho não davam acesso a sites além dos utilizados para os serviços. Então, no horário de almoço e intervalos, Leser pesquisava sobre arte e cultura e lia os editais da área. Somou conhecimento.

– O escritório foi importante demais. Me relacionei com outras pessoas, tive contato com instituições, lugares que não conhecia.

Chegou a cogitar seguir pela área de contabilidade, mas a arte sempre foi mais forte.

Aos 20 anos, conheceu a Jaque, companheira de vida. Se casaram quando ele tinha 24 e pouco depois ela engravidou do pequeno Cauã (hoje um adolescente de 14 anos).

Na gravidez, com todos os desafios que já se apresentavam e sem saber bem o que viria, ele sentiu que era hora de mudar. Foi fazer o registro de um funcionário e encontrou na carteira um bilhete com uma frase de Victor Hugo: “O futuro tem muitos nomes. Para os fracos é o inalcançável. Para os temerosos, o desconhecido. Para os valentes é a oportunidade”.

– Eu liguei para a Jaque na hora. Entendi que eu não me encaixava ali.   

Saiu, mas deixou as portas abertas, querido pelos chefes. Passou a trabalhar como representante comercial da marca de skates que gostava e entendeu que era possível empreender com a arte que tinha. Esse trabalho, porém, exigia muitas viagens. O filho nasceu prematuro e a presença do pai era essencial.

– Eu abri mão do trabalho e o legal disso é que acompanhei todo o desenvolvimento do Cauã. Banho, consultas, reuniões, adaptação na escola.

Levou um tempo para conseguir se encaixar na cultura, como trabalho.               

– Minha tentativa de trabalhar com arte e cultura foi um peso para algumas pessoas em volta. Eles pensavam que eu não queria trabalhar. As pessoas não reconhecem a cultura como trabalho.

 

MC Leser Ribeirão Preto

Sempre atuou em projetos sociais e culturais, mesmo sem remuneração. E, então, foi se tornando conhecido, referência. Aí, vieram as oportunidades. Começou nos Estúdios Kaiser de Cinema e foram surgindo outros trabalhos, outras propostas, múltiplos caminhos.

 Na música, também foi colhendo conquistas. Lançou seu primeiro EP em 2009 e depois vieram mais dois. Como produtor cultural, viajou para a Califórnia.

– No reino de Deus você divide, não acumula. Nas minhas conquistas tem muita gente. Sempre trabalhei no que envolvia a comunidade, a coletividade.

Voou, mas sem deixar as raízes. Continua atuando em ações e núcleos da periferia.

Atualmente, Leser é coordenador de cultura do Instituto SEB, além de outras muitas ações que desenvolve como produtor cultural, nas escolas, comunidades, no Barracão Simioni e com o RAP. Tem um programa na TV Thathi, “Papo de Futuro”, onde dialoga com jovens e suas famílias.

– A articulação é fazer com que as realidades se encontrem. Eu vivo articulando.

Sabe que ainda há muito a caminhar para uma realidade onde as pontes sejam parte da estrutura e o diálogo aconteça sem imposições. Então, continua.

– Isso me marcou. Tinha um menino vendendo droga e em meio a isso ele jogava bolinha de gude. Segurava a droga com a mão e jogava a bolinha. Essa infância foi roubada. Existe uma desigualdade grande, a desestrutura familiar, as escolas sucateadas, a educação que não é atrativa. Muitos fatores contribuem para a marginalização do jovem da periferia. Tudo o que você leva, arte, esporte, cultura e a igreja também, pode tirar esses jovens do crime.

Dialogar com a juventude requer, acima de tudo, vontade. Olhar os jovens como múltiplos, com suas muitas realidades.

– Para conversar com a juventude tem que ter esforço. Não dá para falar que eles não têm jeito. Você tem que estar a fim. Precisa entender a realidade social deles.

Soube que a escola estava com dificuldade em dialogar com os alunos que usavam o celular na sala de aula. Fez um rap sobre o tema. Viajou para várias cidades levando a música. Entre as rimas, conta sua história, vai promovendo a conscientização.

– A gente tem que olhar para o jovem por dentro, se interessar.

Quer que, um dia, possa escolher parar.

– Viver articulando é desgastante, mas sou muito feliz. Mas um dia vou querer desacelerar. Não me vejo parando. Mas quando parar, é de verdade. Porque já fiz o que tinha que fazer.

Sabe que é preciso deixar legado.

– Quero ir abrindo caminhos para outras pessoas continuarem promovendo cidadania, arte, cultura, educação com esse mesmo viés.

Segue, então. Vai construindo pontes, tijolo a tijolo.

Um dia, assim, não será mais preciso construir. Elas já estarão lá.

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1 Comentário

  1. Valéria Gonçalves Rodrigues

    Que bacana! Parabéns pela sua atuação junto aos jovens! Tomara essa semente se multiplique cada vez mais! Sorte!

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