Já passa das 18h quando Walter fecha a porta da loja. Pega uma sacola cheia de calças e toma o rumo para casa.
– Isso aqui? Ah, é para descosturar à noite. Levo umas coisinhas.
Todos os dias, ele chega à alfaiataria antes das 8h. Acorda às 6h30, faz a barba, toma um cafezinho e às 7h30 está no Centro.
Antes, não tinha hora para ir embora. Agora, com novo local de trabalho, não pode se alongar muito depois das 18h, seguindo as regras do prédio.
Ainda está se acostumando. Foram 58 anos trabalhando no Edifício Diederichsen, sendo 48 deles na mesma sala 228 do segundo andar. No total, são 69 anos em alfaiataria: o único ofício que teve em 81 anos de vida.
Da janela do primeiro edifício vertical de Ribeirão Preto, Walter Feloni viu passar carnavais e caravanas políticas, acompanhou o crescimento da cidade.
– Esses prédios em volta eu vi nascer. Vi um prédio sumir e outro aparecer.
Há menos de um mês, ele deixou o Diederichsen. Não por vontade própria. Os donos do prédio esvaziaram as salas para iniciar uma reforma.
O edifício, que é Patrimônio Histórico Estadual e considerado por historiadores o primeiro edifício multiuso do Estado de São Paulo, será transformado em um centro cultural.
Walter não foi longe, porém. Alugou uma sala no prédio em frente.
Da janela, tem vista para o Pinguim, o Teatro Pedro II e o Palace, lugares que tanto ama. Da porta de entrada do novo edifício, enxerga sua sala no edifício antigo.
– É aquela ali que está com a janela aberta. Mas aqui estou melhor! No começo fiquei chateado, mas depois olhei melhor. Estava mesmo precisando de reforma…
Trouxe, porém, a mesma placa de madeira que há 48 anos faz a fachada da sua porta: “Alemão Alfaiate”.
E também um calceiro antigo, a primeira tesoura que usou, ganhada do patrão, a máquina que já soma 60 anos de uso e outras coisinhas que ajudam a contar sua história, que é também um pouco da história do Centro de Ribeirão.
– Se você quiser, dá para escrever um livro comigo. É muita história!
Walter começa pelo dia em que chegou ao mundo.
– Minha história é meio gozadinha no começo, mas depois fica melhor.
Nasceu em Ribeirão Preto, dia 5 de julho de 1937, na rua 11 de agosto, sem número. No registro de nascimento e no RG, porém, a data é tardia em seis meses.
A história que ouviu da mãe é que deu o dinheiro do registro para o tio Joseph, que ao invés de passar no cartório mudou a rota para o bar.
Só descobriram a façanha depois de seis meses, quando a documentação se fez necessária para a viagem. A família – pai pintor, mãe doméstica e três filhos – se mudou para o Rio de Janeiro, em viagem de trem pela Mogiana.
Walter conta que viveu em terras cariocas até os oito anos. A quarta irmã nasceu por lá, entre as dificuldades financeiras da família e a simplicidade que fazia a infância ser bonita.
– Eu conhecia todas as praias. Me lembro certinho dos lugares. O remédio que a gente tinha era homeopatia. Tinha um senhor que caçava na mata de Santa Tereza e sempre trazia jacaré, tatu, capivara para a gente comer.
Aos 8 anos, em 1945, os pais vieram visitar a família em Ribeirão Preto e atendendo aos pedidos saudosos decidiram ficar – à contragosto de Walter.
– Eu fugi duas vezes de casa porque queria ir embora para o Rio.
Aos 11 anos, começou a trabalhar e foi criando raízes na nova cidade. Fazia entregas em uma alfaiataria do Centro.
Conta que foi em uma dessas entregas que conheceu o Diederichsen, dono do prédio onde faria morada anos depois.
– Ele tinha uma charrete grandona e morava no Centro. Conheci ele cara a cara. Não foi sua estátua, não.
Com 14 anos, precisou deixar a escola porque as contas de casa estavam apertadas demais.
– Minha única frustração foi não poder estudar. Minha paixão era a advocacia. E eu acho que teria dado certo.
Ganhou dedal, agulha e começou a costurar.
– Naquela época, amarravam o dedal e a agulha no dedo, porque senão a gente não aguentava. Com 17, 18 anos eu já era “oficial”, que era como chamavam quem fazia ternos e paletós.
Dessa época, Walter tem as melhores – e mais vivas – lembranças. Os detalhes são feitos de saudade. É memória viva da história do Centro de outrora.
Relembra o tempo em que no calçadão duas choperias recepcionavam os turistas.
– Uma chamava Paulicéia e a outra era o Pinguim.
Conta das festas que faziam carreata pelo Centro, dos carnavais com bloquinhos subindo a General Osório, do “foot” aos finais de semana em volta da fonte.
– O pessoal passava jogando serpentina. A rua ficava lotada! Precisa ver…
Diz que viu Carlos Prestes discursar em frente ao Teatro Pedro II.
– Ele bateu no peito e falou: ‘Vocês estão diante de um comunista’.
E desfilou para Juscelino Kubitschek em 1956, no centenário de Ribeirão Preto.
– Ribeirão mudou demais. Hoje, escureceu pelo Centro, a gente tem que ir embora. É perigoso.
Walter se casou quando tinha entre 21 e 22 anos.
Só deixou o jeito garanhão de outrora porque se apaixonou pela moça que via pela janela de uma das alfaiatarias onde trabalhou, em frente a cafeteria Única: toda a história da sua vida se dá no mesmo quadrilátero central.
A única paixão maior que a alfaiataria estava nos campos. Diz que só não se tornou jogador profissional de futebol por uma apendicite que lhe tirou a vaga.
Não deixou de jogar, porém. Como apaixonado, jogou futebol com os amigos até os 65 anos.
É difícil entender de onde tirava tempo para as peladas.
Em 1960, com 23 anos, passou a trabalhar em uma alfaiataria que ficava no Edifício Diederichsen e tinha como dono um xará seu.
Passou 12 anos ali até montar sua própria loja, no mesmo prédio, em 1970, aos 33 anos.
Conta que, em final de ano, por volta de 1975, quando a demanda era grande, chegou a entregar em um único dezembro 80 calças e 20 e poucos ternos, contando com ajudantes.
Vestiu ribeirão-pretanos de todo tipo.
– Tinha que varar a noite. Minha mulher trazia o almoço e o lanche e eu começava às 5h30 da sexta e só parava às 18h do sábado.
Metódico que só, nunca gostou de atrasar entrega.
– Se eu não entregar, é porque aconteceu alguma coisa séria.
Ainda hoje é assim. Mas foi mudando as encomendas com o tempo. O último smoking que fez foi três anos atrás.
– Hoje eu não faço mais. Não tem o aviamento que a gente precisa em Ribeirão. Tem que ir até São Paulo pegar. E eu já estou com a idade avançada.
Continua fazendo calças e um número sem fim de consertos.
– O movimento é grande. É o dia todo. E hoje eu sou sozinho!
Enquanto conta a história da sua vida – ou parte dela – Walter vai terminando a costura de um paletó em reforma, depois pega uma calça: não para um segundo.
Fala do prêmio que recebeu no Palace tempos atrás, por fazer parte da história de Ribeirão Preto.
– Eu tinha tanta coisa para entregar naquele dia que nem ouvi direito! Tinha até coquetel, mas eu tive que correr de volta para terminar as costuras!
Não entende “esse negócio” de férias que duram um mês.
– Nunca tive isso na vida. Se eu ficar um mês parado, eu morro!
O máximo que ficou sem trabalhar foram 18 dias, pelo repouso obrigatório após uma cirurgia nas pernas.
Aos 80 anos, não tem previsão de parar. Mas avisa: o dia que decidir, não volta atrás.
– Fiz contrato de um ano nessa sala. Mas eu tenho um gênio! Quando falo não, não adianta insistir!
Encontrou na alfaiataria, que durou a vida toda, um jeito de ser feliz.
– Eu me sinto realizado. Um homem tem que casar, construir família, construir uma casa, plantar uma árvore. E eu fiz tudo isso sendo um simples alfaiate!
Reclama que a “molecada” de hoje em dia não tem a força de outrora.
– Eles não têm vivacidade… Sempre fui assim: batalhador!
A conversa só acaba porque é hora de ir embora, respeitando a regra no novo prédio.
Já com a porta fechada, ele volta para checar se havia apagado a luz.
– É tudo novidade. Ontem, ficou acesa.
Diz, porém, que ainda tem muito a contar. E, mais uma vez, faz o convite:
– Se você quiser, dá para escrever um livro!
Sobe a rua Álvares Cabral para buscar o carro.
Amanhã, antes que as lojas se abram, já está a postos, em frente à máquina de costura.
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Muito gratificante saber de histórias assim, seu Walter lí com carinho sua história,parabéns ao senhor!
Parabéns, seu Walter, pela história de vida tão edificante! Parabéns Daniela, por contá-la tão bem! Leitura mais que prazerosa!