Dona Diva, 80 anos, é exemplo de cidadania

18 setembro 2019 | Histórias do Proac 2019/2020

Esta história foi narrada pelos integrantes do projeto Doadores de Voz, dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da UNAERP. Para ouvi-la, é só clicar no play:

 

Vale a pena ler de novo! História publicada pela primeira vez em 30 de outubro de 2018!

 

Dona Diva tem um centro de saúde como quintal.

Não porque sua casa fique dentro da unidade. Mas porque ela escolheu fazer ali uma extensão do seu lar.

– Ah, o melhor lugar para a foto é no meu postinho!

Diz, enquanto abre o portão de casa, dobra a esquina e caminha alguns passos. Chega em frente ao Centro de Saúde da Vila Tibério, Ribeirão Preto, e abre um sorrisão.

– Nós conquistamos com muita luta, mas conseguimos!

A unidade, que teve a reforma entregue em 2006 e abrange população estimada em 6,2 mil pessoas, tem em suas paredes os esforços de Diva Gonçalves dos Santos Palucci.

Ela fundou a Comissão de Saúde Local de bairro entre 1999 e 2000, com o objetivo de reivindicar a reforma do postinho, e perturbou tanto o secretário de saúde da época que os comentários eram: “Entrega logo para ela dar sossego”.

Quando as obras foram paralisadas, em 2004, ela brigou para retomar. E pelos dois anos seguintes fiscalizou o local todos os dias. TODOS mesmo.

Ainda hoje escuta falas do tipo: “Ih, lá vem a Diva”. Não liga, não. Pelo contrário: se está incomodando, é porque não dá trégua para o trabalho.

Esconde os 80 anos na fala firme e no jeito forte. É parte do Conselho de Saúde de Ribeirão Preto, do Conselho do Idoso, da Comissão Local de Saúde da Vila Tibério, além do trabalho que desenvolve em instituições, como o Círculo Operário, e ONGS.

– Eu fui criada trabalhando. Com o tempo eu descobri que tem muitas pessoas que precisam de ajuda e que eu posso ajudá-las.

Foi criada sendo forte. Começou a trabalhar aos 12 anos e não pôde estudar, mas não desistiu de seu sonho. Aos 31, já casada e com duas filhas, voltou para a escola, terminou o Ensino Médio, entrou na faculdade de História e se formou professora.

Atuou por 17 anos na profissão, dobrando a jornada com o trabalho de atendente de enfermagem no Hospital das Clínicas. Por lá, se engajou nos movimentos sociais e participou da criação do SUS.

Quando se aposentou, decidiu que não iria parar sua luta. E se envolveu mais a fundo nas questões do bairro que é sua morada há 53 anos. Foi ampliando a atuação pela cidade sem timidez. E colhendo frutos.

No Centro de Saúde o anexo de farmácia e odontologia, que também foi implantado com sua luta e teimosia, leva seu nome. Não poderia ser diferente.

– Eu falo que esse postinho é meu no sentido de que eu cuido como se fosse meu. Mas é da comunidade.

No dia da inauguração do anexo ela plantou um pé de jabuticaba, inspirada por uma história que ouviu. Um homem se inquietou ao ver o outro plantando uma jabuticabeira: “Você não sabe que ela só vai dar frutos daqui 15 anos?”. E reproduz a resposta do sábio:

– Não é para mim. É para as pessoas que virão depois de mim. Eu não vou viver mais 50 anos para usar o anexo, mas as pessoas irão!

Centro de Saúde Vila Tibério Ribeirão Preto

Dona Diva diz que todos os dias – sem faltar – vai ao centro de saúde checar se está tudo bem. Repete a viagem umas três vezes por dia – vai que algo mudou entre uma e outra.

Conhece cada funcionário e muitos pacientes. É uma defensora assídua do SUS (Sistema Único de Saúde) e conta que participou das discussões para a criação do sistema universal de saúde, na década de 80. Diz que esteve em uma das votações em Brasília, com uma caravana de Ribeirão Preto, vencendo o medo deixado pelos anos de Ditadura Militar, época em que as mobilizações para a criação sistema se intensificaram. Só uma parte da trajetória combativa que começou cedo.

Nasceu em Miguelópolis, passou parte da infância em Guaíra, onde começou a trabalhar como babá aos 12 anos. Aos 15, era doméstica e precisou largar os estudos.

Explica que quando se mudou para Ribeirão com os pais havia acabado de inaugurar uma escola ginasial na sua cidade.

– Eu tinha muita vontade de estudar, mas naquela época era muito difícil. Não tinha estímulo, principalmente para a mulher.

Se casou aos 17 anos e logo passou a morar na Vila Tibério com o marido. Aprendeu a costurar, mas aos 20 teve toxoplasmose e perdeu a visão dos dois olhos. Não cogitou que seria assim para sempre.

– A sua mente é a arquiteta da sua vida. Nós somos os construtores da nossa história. Eu dizia: ‘Não vou perder a vista. Vou voltar a enxergar’. Eu sou espírita. E tenho muita fé.

Retomou parcialmente a visão. O suficiente para todas as conquistas que vieram.

Aos 31 anos, com duas filhas pequenas, uma escola passou a funcionar ao lado de sua casa. Era particular, mas Diva trabalhava para pagar a mensalidade.

Vendo seu esforço, o dono da instituição passou a lhe oferecer trocas. Primeiro, ela fazia o café dos professores. Depois, passou a trabalhar na secretaria e, quando conseguiu concluir o Ensino Médio pelo programa público chamado “Madureza”, o chefe a incentivou a seguir pela carreira de professora.

– Ele dizia que eu poderia ser diretora na outra escola que ele iria abrir. Mas uma fatalidade ocorreu e ele faleceu antes.

Diva seguiu com os planos, porém. Se formou em História por volta de 1980, com mais de 40 anos, e passou a dar aulas.

– Quem estuda tem a mente aberta. Eu me apaixonei pelo estudo das artes, das revoluções.

Na mesma época em que estava estudando, foi aprovada como atendente de enfermagem no Hospital das Clínicas. Explica que a vaga exigia o ensino básico que ela, então, já havia concluído.

No hospital, Diva se engajou nas lutas sociais. Participou do movimento “Diretas Já” e se apaixonou pela ideia de construir um sistema de saúde universal.

– Foi uma época muito difícil, porque quando as movimentações começaram nós ainda estávamos na Ditadura. Tivemos muito medo, mas conseguimos.

Centro de Saúde Vila Tibério Ribeirão Preto

Atuou por 17 anos como professora e trabalhou durante 22 anos no Hospital das Clínicas. Quando se aposentou, na década de 90, a Prefeitura de Ribeirão Preto havia criado programas de participação popular, como ela diz. E a unidade de saúde da Vila Tibério precisava de reformas.

– O posto estava caindo aos pedaços. Precisávamos de um grupo para reivindicar melhorias.

Fundou a Comissão Local de Saúde e começou a luta.

Conseguiram iniciar a reforma, mas quatro anos depois a empresa responsável abandou a obra e foi preciso intensificar o combate. Diva conta que o postinho perigou fechar.

Quando o Centro de Saúde foi inaugurado, em 2006, ela comemorou. Mas não baixou a guarda. Faltava ainda uma unidade de farmácia e odontologia.

– Os idosos tinham que ir lá no Centro buscar remédio.

Conseguiu a inauguração do anexo que ganhou seu nome em 2016, com jabuticaba plantada no quintal e homenagem do secretário de saúde.

Conta, orgulhosa, que hoje o centro oferece mais que assistência médica. Atua na promoção integral da saúde, com aulas de dança, artesanato, música, tai chi chuan.

Enquanto lutava pelo bairro, foi chamada para atuar também no Conselho Municipal de Saúde, chegou a ser eleita presidente do Conselho Municipal do Idoso, ampliou o foco.

– O conselho fiscaliza a saúde. Mas achar defeito nas coisas é fácil. Nosso trabalho é no intuito de ajudar a resolver os problemas. Não adianta falar mal. A gente precisa conhecer a realidade.

Centro de Saúde Vila Tibério Ribeirão Preto

Dona Diva diz que “nessa idade” é preciso viver o hoje sem planejar o futuro. Em segundos, porém, se lembra dos planos que já estão em andamento.

Está participando da organização da Conferência Municipal de Saúde que será realizada em 2019 e já estabeleceu um novo foco.

– Nossa próxima luta é por uma unidade básica de saúde para a região central da cidade. Não temos. Vamos levar essa proposta para a conferência.

Ela se entristece com a pouca participação da comunidade nas questões que são de todos.

– A descrença é um dos motivos que afasta as pessoas. Vivemos um momento de muita descrença. O outro motivo é aquela ideia de que ‘isso não é problema meu’.

A participação popular, ela bem sabe, é transformadora.

– Se todo mundo perde a esperança, as coisas não acontecem. Eu tenho essa filosofia de vida: o positivo chama o positivo.

É preciso saber, porém, que quando se participa de um conselho popular o benefício próprio fica de lado.

– Você não ganha nada e não tem privilégios por isso. Precisa dar o exemplo. É isso que afasta as pessoas. Mas e a jabuticabeira? Não é para você. É para todos.

Para ela, as lideranças dos movimentos sociais se tornaram políticas e o sistema “minou” os movimentos.

– E vai minar mais ainda com as reformas, a corrupção nos sindicatos. Tudo isso vai minando a participação popular. A gente espera que haja uma revolução. Historicamente, há várias revoluções no mundo que mudaram o cenário político.

Não termina uma frase com descrença. Sempre coloca a esperança de que algo melhor virá. É do tipo que prefere trocar “estamos em crise” por “vamos ter esperança”.

E quando a pergunta é “De onde vem tanta garra?”, busca a resposta na essência que é parte de si, parte de nós, brasileiros.

– Isso é herança dos índios e negros, que eram meus avós. São raças fortes. Eles sofreram, mas construíram uma bela história nesse país. Esse país que é nosso, embora tentem tirá-lo. A gente resiste.

Um ano atrás ela ganhou o título de cidadã ribeirão-pretana. Mas não se lembrou de relatar a homenagem, porém. Foi a filha quem contou, orgulhosa pela trajetória da mãe.

Diva está mais preocupada com o que vai deixar para o amanhã, do que com os títulos de agora. Para encerrar, cita Fernando Pessoa, como só poderia ser.

– É aquilo: tudo vale a pena se a alma não é pequena!

Solta mais uma risada gostosa e forte, que só cabe em alma grande. Dona Diva tem uma comunidade inteira de quintal. É inspiração para quem precisa retomar a garra.

 

*Quer traduzir essa história em libras? Acesse o site VLibras, que faz esse serviço gratuitamente: https://vlibras.gov.br/

 

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