Dona Fia tempera a vida com garra e soma 50 anos de restaurante

2 outubro 2020 | Gente que inspira

Vale a pena ler de novo! História publicada pela primeira vez em 22 de maio de 2019! 

 

A recepção é feita de abraço caloroso e sorriso de ponta a ponta do rosto. Dona Fia me recebe como a uma velha conhecida.

– Que benção, bem!

Vai repetir a frase dezenas de vezes ao longo da entrevista. Em algumas delas, aperta uma mão contra a outra e vira o rosto e os olhos em direção ao céu. A gratidão mora em seu vocabulário.

– Eu nunca pensei em ter uma velhice boa assim! É boa pela saúde. Não tenho dor nenhuma! Graças a Deus! Que benção!

A alegria parece estrar grudada em sua alma. Até quando conta dos dias de luta, sem dinheiro nem para o pão do café, escolhe as palavras mais doces.

Chegou em Ribeirão Preto 50 anos atrás, com a vontade de mudar de vida e nenhum recurso. Abriu uma pensão com ajuda de um tio e a confiança no açougue da vizinhança, que lhe vendia fiado.

– Cheguei com a cara e a coragem.

Doses generosas de coragem. Não acredita que as coisas tenham outro final que não seja o feliz.

– Nunca dá errado. Tudo dá certo. Tem que ser positiva. Se não, não vira. Tem como dar errado?

Até tinha. Não com a garra dela.

Começou com um pensionato para homens e foi crescendo. Entende a vida como movimento, buscar sempre o melhor. E é assim ainda hoje, aos 89 anos.

Há 17, conquistou o prédio próprio que abriga seu tradicional restaurante no Centro de Ribeirão Preto. A rua Américo Brasiliense sempre foi a morada, desde a primeira pensão.

No tempero, o mesmo carinho de quando fazia doces em calda lá em São Simão, para criar os filhos. O zelo é o principal ingrediente. Tudo tem que ser feito nos mínimos detalhes.

– Minha vista ainda está boa para enxergar as coisas erradas!

Continua indo ao restaurante todos os dias, sem sentir o peso dos anos.

– Eu sou uma pessoa feliz. E gosto tanto da vida! Agradeço todos os dias, bem!

Restaurante Dona Fia Ribeirão Preto

Quando Maria José Grecchi Arruda chegou a Ribeirão Preto, 50 anos atrás, era chamada de “fiinha”. O pai quem apelidou, em um flexionar de “filhinha”, como chamava sua primogênita. Por aqui, a clientela foi cortando letras. E ficou: dona Fia.

O apelido é um tanto inverso à sua maior característica, porém. Desde pequena, o papel de Maria é cuidar. “Mãe de todo mundo”, como a neta Tatiana diz.

Começou com os irmãos mais novos. A mais velha entre 14 filhos, ela ajudou a mãe, dona de casa, a criar a meninada. Na família humilde, o pai trabalhava como vigilante e os filhos logo recebiam a incumbência de ajudar.

– Desde os sete anos, a mãe ia trabalhar e eu tomava conta das crianças. Mas eu era criança também.

Com tanto trabalho tão cedo, não pôde estudar. Cresceu em Altinópolis e, já casada, se mudou para Bento Quirino, distrito de São Simão. Por lá, criou seus três filhos e precisou se desdobrar para cuidar da turma praticamente sozinha. Seu marido desenvolveu esquizofrenia e precisava de internações e cuidados constantes. Ela nunca deixou de cuidar dele. Buscava os melhores hospitais e se fez presente até sua morte.

– Uma vez um mernino me perguntou se eu era viúva. Respondi: sou viúva de marido vivo. Era isso.

Lavava e passava roupa para 11 famílias, além da sua. Os filhos já estavam adolescentes quando tomou a decisão. Era uma segunda-feira e a pilha enorme de roupas para lavar preenchia o tanque. Deixou tudo por fazer e avisou a filha: “Vou para Ribeirão Preto arrumar uma casa e vamos colocar uma pensão lá”.

A ideia era embasada em vontade – apenas. Não tinha dinheiro nem para a mudança, que ocorreu uma semana depois.

Dona Fia veio para Ribeirão e, no mesmo dia, encontrou a casa que almejava. Havia passado o dia na residência de um primo, ajudando a esposa dele, e já estava indo embora desacreditada quando o imóvel apareceu, nesses acasos bem certos da vida.

 

 

De primeira, o dono disse que não aceitaria fiador de fora da cidade – e ela só tinha essa opção. Virou as costas e estava pegando o rumo para casa quando o locatário correu em sua direção. No domingo cedinho, já estava com a mudança pronta.

Um vizinho topou fazer o frete, sem receber um único centavo. Dona Fia prometeu que voltaria para pagá-lo, e assim o fez.

Antes de ir embora, porém, um ato de resistência. Pegou toda a roupa suja que havia largado no tanque e devolveu, sem lavar.

– As donas ficaram muito bravas!

Foi o seu basta.

Restaurante Dona Fia Ribeirão Preto

– Eu vim com a cara a coragem.

Na primeira manhã em Ribeirão, dona Fia não tinha dinheiro para comprar o pão do café.

– Mas aquele tempo era mais fácil. Fui conversar no açougue: ‘O senhor confia em mim?’. Ele confiou. Me mandou carne uns três, quatro dias sem receber. Aí, fui ganhando.

Um tio emprestava o dinheiro para que ela pudesse passar a semana, e recebia ao final do período. Foi assim por um ano, até que conseguisse andar com as próprias pernas.

O primeiro pensionato já ficava na rua Américo Brasiliense, da qual nunca saiu. Mudou o numeral, mas sem trocar de via. Escolheu acolher homens, por um motivo que conta entre risadas:

– Era um banheiro só na casa e os meninos andam mais depressa.

Não demorou a se tornar querida. No primeiro pensionato, recebia 12 moços e no segundo aumentou para 18. Conta que a turma voltava correndo da faculdade para garantir o maior número de bolinhos de chuva, que estavam sempre prontinhos à espera. Relembra das noites animadas, com discos de música na sala. E do carinho que dava e recebia.

Além da hospedagem, cozinhava, lavava e distribuía amor.

– Eles me ajudavam e eu ajudava eles! Um deles dizia: ‘Nem minha mãe passa a minha roupa igual a senhora’.

Desde esse começo, dona Fia trabalha em família. Seus filhos, genro e irmãs participavam do negócio que nasceu e cresceu de maneira familiar.

Em pouco tempo, ela começou a funcionar, além de pensão, como restaurante. Servia marmitas e refeições. O crescimento foi passo a passo, mas constante.

 – Eu sempre fui pensando assim, em melhorar, em fazer mais. Inclusive hoje: precisa mudar isso, aquilo.

Antes de chegar à atual sede do restaurante que leva seu apelido, há 17 anos, na quadra 13 da Américo Brasiliense, passou por outros três imóveis. Esse é diferente, porém.

– Agora é meu! Que benção! Nem acredito que é verdade…

Esse é um dos momentos em que ela aperta as mãozinhas e olha para o céu. Olhinhos brilhando – os dela e os meus.

Restaurante dona Fia Ribeirão Preto

– A Cecília está aqui há mais de 40 anos!

Dona Fia conta, chamando uma das funcionárias, que já são parte da família.

– Eu aposentei e não quis parar, não!

A maioria da equipe – hoje formada por 12 mulheres – é antiga na casa. Dona Fia brinca, e agradece, pela turma tão extensa. Relembra das vezes em que desejava uma funcionária, para ajudar no trabalho duro.

– Hoje eu converso com Deus: eu pedi uma mulher para me ajudar e o senhor mandou tantas!

O restaurante é administrado pelas duas filhas, o filho, o genro, netos e por ela, que faz questão de estar presente todos os dias – sem exceção.

É a chefe mais rigorosa, Cecília não nega. E a neta Tatiana Martinho de Oliveira também confirma.

– É duro gostar das coisas bem-feitas! As pessoas tem que saber fazer e ter capricho. Se vai larvar uma verdura, não pode jogar de qualquer jeito. Precisa ser com carinho, senão machuca as folhas.

Fiscaliza tudo, tim-tim por tim-tim.

E acredita que esse zelo é responsável pelo sucesso do restaurante por tantos anos. Aos sábados, dia de maior movimento, chegam a atender 300 clientes, além de servirem 90 marmitas.

O menu é simples, de casa de mãe, com tempero de vó.

– A comida é abençoada por Deus. Se você faz arroz, feijão, uma carne, legumes, salada… pronto! Mas no outro dia, não pode repetir. Só o arroz e o feijão que é todo dia. Mas as outras coisas, precisa mudar.

A clientela também é antiga. Ela vê as famílias se multiplicarem por ali, acompanha as gerações que chegam. E se alegra com as visitas que recebe dos “meninos” que cuidou lá na pensão. A neta diz que, vira e mexe, aparece alguém querendo dar um abraço na “mãezona”.

Dona Fia não precisaria mais ir ao restaurante, se fosse essa sua vontade.

– Eu tenho tanto amor aqui. Se eu não venho, sinto falta. E parece que, se eu venho, as coisas vão dar mais certo.

Acorda todos os dias por volta das 6h30, cuida das coisas em casa – mesmo tendo uma funcionária para isso. Lava roupas, passa, rega as plantas, e adverte:

– Não é só uma plantinha, não, viu? Tem um monte!

Por volta das 9h30, segue para o restaurante e só vai embora depois das 14h30, 15h, quando se encerra o expediente. Férias?

– Fico preocupada! Tiro só uma semana ou outra, mas fico pensando aqui.

Até no sonho está ativa.

– Essa semana eu sonhei que estava correndo. Ainda tô dando conta de correr!

Dá para não sorrir? A alegria de dona Fia contagia! E perdura.

A neta tem uma lista de ensinamentos, dessas que não cabem em folha alguma. Vai passando para seus filhos, bisnetos de dona Fia, quarta geração.

– Ela sempre diz: ‘Para fazer bem feito e mal feito o tempo é o mesmo! Faça direito, senão vai ter que fazer de novo!’. Tudo o que eu posso, tento guardar e passar para os meus filhos. É um privilégio conviver com alguém de tanta garra. Desbravar assim um mundo que não conhecia!

Dona Fia escuta com o mesmo sorrisão e os olhinhos brilhando.

Quando a entrevista vai chegando ao fim, entrelaça seu braço no meu e me leva para conhecer todos os espaços do restaurante, sem pular nada: cozinhas, dispensas, tachos de doces, que agora vende em potes, a pedido dos clientes.

– Olha, bem! Quanta coisa! Que benção!

Só pede que a vida lhe dê ainda muitos e muitos anos para continua agradecendo.

– Que pena precisar morrer um dia! Viver é tão bom… para que morrer, meu Deus?

História de garra não morre, dona Fia. É inspiração eterna.

 

*Quer traduzir essa história em libras? Acesse o site VLibras, que faz esse serviço gratuitamente: https://vlibras.gov.br/

 

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1 Comentário

  1. Rogério Costa

    Bela história, e a comida e uma delícia mesmo já tive o privilégio de experimentar!!!

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