Dora escreveu livro para guardar história de afeto da família Fascino e seu famoso pão

5 março 2020 | Força Italiana, Histórias do Proac 2019/2020

Esta história faz parte do projeto “Força Italiana”, iniciativa da Casa da Memória Italiana, produzido em parceria com o História do Dia. Para conhecer mais acesse 

www.casadamemoriaitaliana.com.br!

 

O coração da cidade é a vista diária de Doracy. Da sacada, ela contempla a região central de Ribeirão Preto: a Catedral, as praças, as ruas que tanto conhece. Sempre por ali, é memória das tantas mudanças que ocorreram em seus 90 anos de trajetória.

– Minha vida foi aqui, no Centro. Não tem lugar melhor.

Ela cresceu na rua Américo Brasiliense com a Cerqueira César, rodeada pela grande família italiana. A “Padaria e Pastifício Sul América”, de seus avós maternos Amália e Francesco Fascino, ficou conhecida e querida na cidade e na região.

Os avós e seus filhos administravam todo o negócio, cada um com sua função. Doracy também ajudava. Encantada pela família, observava tudo, atenta. Memórias que hoje trazem saudade.

– Eu cresci com eles e fui mesclando minha vida com a deles. Foram a cepa de onde brotam os ramos. Sempre senti profunda admiração pelos meus avós.

O apartamento onde vive hoje, com seu irmão mais velho, na rua Tibiriçá, é repleto de lembranças: móveis, fotografias, registros. Vez em quando, o cheirinho de pão toma conta do espaço. Aprendeu a receita – que é segredo de família. E continua cozinhando. A fermentação natural, que faz o pão levar 12 horas para ficar pronto, continua a mesma.

Há sabores que nunca voltam, porém.

– Eu faço, mas, veja bem, não é igual. O forno não é igual, a farinha. O que diferencia uma receita são os ingredientes e a maneira que a pessoa faz. Meu pão é bom, mas não é igual ao do meu avô.

O forno elétrico é bem diferente do que o seu avô usava, à lenha – buscada com muita força pelos filhos. A casa já não está cheia de gente, se reunindo em volta da mesa. O pão, o Centro da cidade, a rotina, a família: tudo foi sendo modificado. Para Dora, então, fez-se necessário guardar a saudade. Registrar a história.

– Essas vidas não podem ser perdidas, porque são únicas. Há vidas semelhantes, mas nunca iguais.

Começou em 2000 e levou 17 anos para terminar sua obra.

O livro “O que você conta? O que conto eu?” tem sua tia caçula, Ignez, como personagem principal. Escolhida por sua alegria e memória impecável, atrelada a seu dom para contar boas histórias.

Dora reuniu as lembranças que passou a vida a escutar e, ao longo dos anos, foi registrando as conversas que tinha com a tia.

Antes de dormir, depois do lanche da noite – tradição diária – ela se sentava para colher as memórias de Ignez.

Sempre no tempo da tia, respeitando sua emoção e sua vontade, Dora teceu a história ponto a ponto, com carinho e cuidado. Os mesmos ingredientes que colocou na trajetória que escreveu com sua família. Esteve ao lado dos avós, da mãe e das tias em todos os momentos, até o capítulo final. Entre as memórias que transforma em palavras, lá está Dora acompanhando Ignez na reinauguração do Theatro Pedro II, nos aniversários, no dia a dia.

O resultado foi um livro repleto de recordações e uma vida repleta de afeto. Um olhar sobre uma época e seus costumes, sobre o Centro vibrante de bailes e passeios na Praça XV ao som da banda no coreto, com lojas sofisticadas e teatros. Um livro que guarda, acima de tudo, os laços de amor da família Fascino, pelo olhar de Doracy, que tanto se orgulha de sua obra.

– Eu não sou escritora. Decidi escrever por amor a minha família. O amor leva a muitas coisas, quando é bem dirigido. Foi mais uma celebração à vida do que propriamente um livro de histórias.

 

“Numa tarde de verão de um dia qualquer do início do novo milênio, olho para minha tia cochilando sentada na sua poltrona favorita; a cabeça levemente inclinada repousa sobre a mão direita, enquanto o braço esquerdo descansa no outro lado da cadeira. À frente da cadeira está o seu andador. Vejo que os anos transcorreram sem que eu desse conta… Ela envelhecia.”

Trecho do livro de Dora

 

Dora Fascino Ribeirão Preto

A chegada e os pães

Assim como colheu os relatos de Ignez, agora sou eu quem pede que Dora recorde a história. Me sento na sua frente, disposta a escutar suas memórias, como ela fizera antes. Ela, então, vai costurando os retalhos de toda uma trajetória.

– Está tudo no livro!

Repete várias vezes ao longo da conversa, como se quisesse ressaltar que a história que aqui se conta já fora bem registrada pelas suas palavras de afeto. Rememoramos, então.

Os avós maternos vieram da Itália. Viviam em Nápoles, mas “quis o destino”, como ela diz, que viessem se encontrar no Brasil.

– Ele chegou aqui com um sonho de realização, como todo imigrante. Nesse sonho, o imigrante traz a força do trabalho e a força da esperança.

Francesco Antônio Fascino foi fruto de um amor proibido nunca revelado. Ainda bebê, foi colocado na “roda” de um convento e criado pelas freiras, recebendo educação de muita qualidade.

Chegou ao Brasil com 14 anos, em 1890, trazido por um casal. Não contou à família o motivo da viagem ou outros detalhes. Aprendeu o ofício de padeiro, que lhe acompanhou a vida toda, trabalhando em São Paulo.

Amália Andriola – sobrenome que no Brasil passou a ser registrado como Andreolli – chegou em 1894, casada. Veio com o marido, um filho pequeno e grávida do segundo. O esposo morreu logo após, porém, por motivos que ela também nunca revelou.

Amália e Francesco se conheceram no Brás, reduto para os imigrantes em São Paulo. Ela, viúva, não podia frequentar as festas, mas espiava pelas frestas do salão. Em uma dessas espiadelas viu Francesco e se apaixonaram.

– Ela deve ter sido muito bonita! Era uma mulher viúva, com dois filhos. Eu acredito que foi sua beleza que chamou a atenção nesse começo.

Ela aos 20 anos e ele aos 21, se casaram em 13 de novembro de 1897, já em Ribeirão Preto, onde há anos vivia o irmão de Amália, importante comerciante.

Por volta de 1910, entretanto, a família retornou à São Paulo, onde abriram a primeira padaria própria e onde nasceu Ignez, a caçula de sete filhos, em 1912.

Com a recessão trazida pela Primeira Guerra Mundial e as dificuldades do pós-guerra, Francesco e Amália decidiram voltar a viver em Ribeirão pouco depois. Abriram a primeira padaria no bairro Campos Elíseos, avenida da Saudade, depois passaram para a o Centro, na rua Saldanha Marinho e, com o sucesso do trabalho, conseguiram adquirir um terreno próprio na rua Américo Brasiliense com a Cerqueira César, por volta de 1920.

Ali moram as maiores lembranças de Dora. Em seu livro, ela e Ignez relembram os quase 900 metros quadrados do imóvel em detalhes e também as transformações pelas quais a casa foi passando com a expansão do negócio. A família ia perdendo seus espaços para que a padaria e depois o pastifício pudessem crescer. As massas produzidas, a partir de 1929, passaram a ser distribuídas também para as cidades do entorno e foi preciso expandir o local de trabalho.

Os Fascino também tiveram outras filiais da padaria pela cidade. Os negócios prosperaram e a família viveu décadas de “bonança”, nas palavras de Dora.

A padaria foi pioneira no serviço de delivery, ela conta orgulhosa. Começaram com uma carroça e logo seu avô adaptou um carro, com rodas ainda em madeira, para agilizar os envios.

– Ele foi o primeiro a fazer entrega domiciliar!

Ainda hoje, o pão de seu avô é lembrado com saudade em forma de água na boca. O mais tradicional era o “pão de peito”. Ela explica que ele levava esse nome por ser muito grande.

– Tinha que encostar no peito para cortar!

A receita, garante, já não é segredo de família como antigamente.

– Hoje você coloca no Google e consegue tudo!

Mas o gosto nunca foi o mesmo.

– Muita gente ainda fala isso: que saudade do pão do Fascino!

A padaria foi fechada na década de 50, após o falecimento dos avós e de um dos tios, muito atuante no negócio. A grande casa vive apenas nas memórias e nas palavras do livro.

 

“Estas imagens estão impregnadas de louvor, agradecimentos, petições, alegrias e dores, pois ao entardecer minha avó e filhos rezavam o terço, recitando numa mistura de palavras em italiano e português. Dentro de mim, ainda ouço a voz de minha avó ressoando: Pater nostro, qui e èn cielo… Amália sempre foi a mãe protetora do legado espiritual da família. Era devota de “Nossa Senhora de Achiropita”. Nos dias atuais estas imagens têm lugar especial entre nós e recebem agradecimentos e petições; através delas nossos pensamentos nos unem a Deus e a sua mãe Maria.”

 

Memórias felizes           

O combinado com a tia Ignez para a escrita do livro foi de que só falariam sobre os momentos felizes. Assim Dora também inicia nossa conversa.

– Na nossa casa não focalizamos tristezas. A gente conta a vida, porque é transformação. Tristeza é estagnação. Você fica parado no tempo e no espaço.

Dora escolhe as melhores palavras para falar da vida.

– A vida de uma pessoa é aquilo que ela se lembra.

Comecemos pelo seu nome. No livro, duas assinaturas: a oficial e a que a vida trouxe. Doracy Castelli é o sobrenome do pai, com quem ela conta que não teve contato e nem tem lembranças. Pronto: paramos aí. Não falamos de tristeza!

Dora Fascino é o nome pelo qual ficou conhecida.

– A sociedade escolheu e me batizou assim porque eu cresci com meus avós maternos, minhas tias, minha mãe. Passei a ser Fascino.

Dora, sua mãe e seus dois irmãos voltaram para a casa do avô quando ela era ainda muito pequena. Os avós tiveram cinco filhas mulheres e dois homens. A maioria trabalhou na padaria e deu seguimento ao negócio quando os pais faleceram.

– A família nos criou. Tive três tias-mães. Elas eram pessoas distintas. Cada uma com uma sua personalidade.

Em suas lembranças, a tia Ignez era a mais extrovertida e dançante. Tia Olga era “uma doçura, força de trabalho espetacular”. Tia Irma era “forte e decidida”. E a tia Donata acabou se distanciando do núcleo familiar após o casamento. Sua mãe, Alvina, filha mais velha, era o braço direito dos pais.

Os netos também ajudavam. Dora e seu irmão Oswaldo estavam sempre por ali. Ela ajudava a embalar e ele chegou a fazer as compras para o estabelecimento no período da guerra, em que os ingredientes eram fracionados e cada pessoa só podia comprar um único pão.

– Havia filas enormes em frente à padaria. Todos entravam na fila, sem distinção.

São algumas das muitas lembranças que povoam sua mente e foram compartilhadas no livro.

Dora não seguiu a carreira da panificação. Estudou e se formou professora. Trabalhou por 37 anos em sala de aula, se dedicando ao Ensino Fundamental e Infantil.

Começou no Colégio Santa Úrsula, trabalhou também no Otoniel Mota, ingressou como professora no Estado, fez extensa carreira e garante:

– Ainda estou em forma para lecionar. Mas a vida tem que se renovar. Eu não posso ficar ocupando o lugar de outro, que vai contribuir mais do que eu. A gente nunca sabe o que o outro ser humano vai oferecer.

Ela foi casada, não teve filhos e avisa que esse é outro assunto sobre o qual prefere não falar. A alegria, ela bem avisou, é a tônica da conversa. O sobrinho Paulo, de quem fala a conversa toda, foi como filho desde sempre. A felicidade está retomada.

– A vida não é feita de tristezas. Todo mundo pode ter tristezas, mas a vida não é isso. Tristeza só traz sofrimentos.

Viveu a maior parte de sua trajetória ao lado da família materna. Morou com os avós, as tias e tios, a mãe e foi vendo cada um cumprir seu tempo por aqui. Hoje, vive com o irmão Oswaldo, de 93 anos. Os dois cuidam da casa sozinhos. Ela pinta, borda e faz questão de dizer que continua cozinhando diariamente, por um único motivo:

– O prazer de cozinhar!

A trajetória é relembrada com gratidão.

– Não tenho do que me queixar. Estou nessa idade, com minha lucidez e minha vontade de contribuir para a mudança. Isso me faz viva!

 

A costura do livro

A primeira fagulha de ideia do livro surgiu durante a aula de italiano, que Dora começou duas décadas atrás e continua ainda hoje. O professor pediu que a turma escrevesse um texto e ela escolheu seu avô como personagem. A obra foi elogiada e fez nascer a vontade de continuar escrevendo.

– As pessoas passam pela rua da padaria e não sabem o que aconteceu. A família Fascino se diluiu, não tem herdeiros. Agora, o nome ficou preservado de uma forma muito bonita.

Dora morava com suas tias e passara a vida toda ouvindo as histórias que elas contavam. Convidou Ignez a contar novamente, agora sob seus registros. E começaram!

No livro, ela reproduz as conversas, inclusive com as pausas. Quando começaram a tia já estava com 88 anos. Foi preciso, então, respeitar seu tempo e suas emoções. Também precisou respeitar o seu próprio tempo. Depois que a tia faleceu, Dora ficou anos sem conseguir escrever. Tudo foi feito com calma, ao longo de 17 anos, após o jornal terminar na TV.

Nesse período, suas tias foram homenageadas e entrevistadas. Na reinauguração do Theatro Pedro II, em 1996, rememoraram como fora a primeira inauguração, em 1930. Estiveram lá, afinal. Eram memória viva, história pulsante.

“Vestida com elegância e discrição comparece à festividade. O tecido de veludo cor de vinho da sua roupa realçava a sua pele clara rosada e os cabelos nevados e muitos a reconhecem: alguns são amigos da família, outros, que a viram na TV e estranhos que perguntavam:

— Quem é a senhorinha tão elegante e festejada?”

As festas de família também foram inspiração para a escrita. Relembravam a época em que a família se reunia no espaço da padaria, tamanho o número de pessoas. Filhos, noras, netos: a cada ano, chegava um novo integrante para integrar a enorme mesa, sempre farta.

A culinária tem espaço de muitas páginas porque continua tendo um grande espaço na vida. Para Dora a cozinha é memória afetiva, saudade que se alivia com ingredientes.        Continua mantendo tradições como o bolo de papos de anjo que é obrigatório em todos os aniversários.

– Esse bolo que a gente faz nada mais é do que uma lembrança do passado.

Doces da época também não faltam, assim como o pão. As sopas da mãe ninguém nunca fez igual, ela garante.

– São receitas afetivas. Essas coisas fazem parte da vida!

Entre todas as filhas, Ignez era a única que não cozinhava. Dizia para Dora que não teve aptidão para as tarefas domésticas. Italiana de raiz, tinha o coração dividido de amores.

– No jogo de futebol, se jogasse Brasil e Itália ela batia palmas para os dois.

Uma pausa mais longa se fez necessária. Tia Ignez caiu, quebrou o fêmur e faleceu na mesma noite, em maio de 2003. Menos de dois meses depois, tia Irma foi se unir à irmã.

– Elas foram muito unidas em vida. Não ficariam longe…

Dora, que é só alegria, deixou a tristeza tomar conta. E não foi sem razão. Passou a vida ao lado das tias. Ficou a lembrança e a herança maior.

– O valor principal que eles deixaram foi o amor familiar, a unidade, os valores de justiça. Essas foram as riquezas que eles deixaram.

Olhando para si, ela vê muito de sua tia Ignez, de suas raízes italianas.

– Ela era comunicativa, e eu sou. Gostava de histórias e eu também.

O principal aprendizado, entretanto, foi o que lhe fez espantar a tristeza e seguir.

– A vida não foi sempre bonança. Teve altos e baixos. Mas o enfrentamento do problema foi o dom maior. Encarar e não chorar. Aprender que perdeu, tudo bem. Ganha amanhã!

Dora conseguiu finalizar o livro em 2017. No lançamento, na Casa da Memória Italiana, esteve com gente querida das antigas, com mais e mais lembranças a compartilhar.

O coração, então, ficou tranquilo.

– Eu cumpri a promessa que fiz de que deixaria registrada a passagem da família para sempre. O livro não se perde e as pessoas não morrem porque vivem no coração.

Missão e trajetória cumpridas com afeto: o principal ingrediente de qualquer receita.

“Encerra-se assim, a trajetória da família, sob a visão da filha caçula Ignez, através das suas lembranças curtidas e vividas, na certeza de que nunca se perde o que se ama, pois continuam vivos nas nossas mentes, nos nossos corações e nas nossas palavras.”

 

 

Legendas

Foto 1: Doracy mostra as fotos de seus avós Francesco Antônio Fascino e Amália Andreolli Fascino

Foto 2: Fachada da Padaria Sul América, localizada na rua Américo Brasiliense com a Cerqueira César, Centro de Ribeirão Preto (Crédito: arquivo pessoal da família publicado no livro “O que você conta? O que conto eu?)

Foto 3: Ignez e sua sobrinha Doracy em 2003 (Crédito: arquivo pessoal da família publicado no livro “O que você conta? O que conto eu?)
Foto 4: Doracy segurando o livro que escreveu para registrar a história de sua família

 

 

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Dora Fascino Ribeirão Preto

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2 Comentários

  1. Marlene Amaral Prado

    Parabéns! Belíssima reportagem! Essa é uma estória que emociona o leitor, naõ somente pela simplicidade da narratva, mas principalmente pela valorização do Respeito,do Amor, da Família…

    • Daniela Penha

      Muito obrigada, Marlene! É uma alegria receber um elogio como esses! Grande abraço! Daniela Penha

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