Esta história integra o livro “Incubadora Cultural: A FMRP-USP e o GEPALLE-USP abraçam as escolas da Rede Pública”, organizado por Camilo Xavier, Heloísa Martins Alves e Filomena Elaine P. Assolini, publicado pela editora FUNPEC. A história foi escrita por Daniela Penha, a convite dos organizadores.
Por Daniela Penha
A sala do “terceirão” estava lotada. Nas memórias de Elaine, eram em torno de 140 alunos se preparando para o vestibular. Quando ela compartilhou sua escolha profissional, soube quão desafiadora seria a carreira que lhe esperava.
Os colegas receberam seu desejo com vaias e bolinhas de papel. Daquela turma toda, ela era a única que queria ser professora.
Foi difícil voltar às aulas e ela chegou a prestar Medicina Veterinária, além de Pedagogia, como uma forma de resposta à afronta que sofreu. Passou nos dois cursos: o primeiro na Unesp, em Jaboticabal, e o segundo no Centro Universitário Moura Lacerda, em Ribeirão Preto.
Não houve dúvida, porém. Escolheu seguir com o anseio de infância. O amor pelos bichos sempre foi latente. Mas a escolha profissional também sempre esteve determinada.
– Desde criança eu já tinha o desejo de ser professora. Mas querer ser professora não foi tarefa fácil. Os cursos de Pedagogia já estavam sendo desvalorizados socialmente e já havia um desprestígio pela profissão.
Seguiu com sua escolha por amor. E continua seguindo por acreditar na capacidade transformadora que tem um professor munido de amor pelo que faz.
Quem conhece Elaine sabe bem: sua vida é pautada pela educação. Não há cansaço para pensar projetos, iniciar pesquisas, conquistar novos espaços para o Gepalle, Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Alfabetização, Leitura e Letramento, que criou em abril de 2006 e hoje conta com cerca de 40 integrantes e atuação nos eixos de Ensino, Pesquisa e Extensão.
O vasto currículo não cabe em poucas páginas. São duas graduações, em Pedagogia e Letras, pelo Centro Universitário Moura Lacerda, mestrado em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP-USP), doutorado em Ciências pela mesma faculdade, pós-doutorado em Linguística, pela Unicamp, além de inúmeros cursos de especialização nas áreas de Linguística, Linguística Aplicada e Psicopedagogia.
Desde 2005 como docente da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Filomena Elaine Paiva Assolini ministra aulas para alunos da graduação, desenvolve e orienta pesquisas, coordena e lidera o Gepalle, orienta alunos em nível de Mestrado e desenvolve projetos de extensão.
Até chegar à USP, porém, ela já somava vasta carreira, como professora do Moura Lacerda e da Prefeitura de Ribeirão Preto. Também precisou tomar uma decisão difícil quando prestou concurso para docente da Universidade e precisou abrir mão dos cargos nas duas instituições, onde somava décadas de atuação.
Optou pela possibilidade de pesquisa que a universidade oferece, encantada com a tarefa de investigar o que está além da superfície. E, afinal, já não era isso que ela estava a fazer desde sempre?
A vasta trajetória construída não é oração que termina em ponto final. As reticências ultrapassam os três pontos da regra gramatical. São dezenas de pontos, que simbolizam planos. Elaine é feita de projetos para amanhã, semana que vem, o próximo ano, quiçá a próxima década. Mente povoada de ideias que se sustentam pela energia do acreditar.
– A educação transforma as pessoas, a vida das pessoas e a sociedade. E nós não vamos sair do estado em que estamos, não vamos ter um país melhor, uma nação melhor, sem investimento em educação. É redundante o que estou dizendo. Mas é nisso que eu acredito. E é possível fazer.
Sempre professora
Elaine nasceu em Ribeirão Preto, em 25 de fevereiro de 1964, filha de mãe dona de casa e pai militar. Tem um irmão mais novo e dois “sobrinhos amados”, para quem dedica muitas de suas palavras.
Foi aluna de escolas públicas desde criança. Fez o magistério no Otoniel Mota, já buscando a carreira de professora. No colegial, os pais quiseram que ela estudasse em uma escola particular, preocupados com o vestibular. Foi nessa escola, como aluna do “terceirão”, que recebeu vaias por escolher cursar Pedagogia e decidiu seguir.
Elaine começou a ministrar aulas aos 18 anos. O Moura Lacerda, instituição onde fez duas graduações e atuou por 22 anos, foi sua primeira e perene “casa” profissional. Iniciou como estagiária em 1983, foi registrada em 1985, começou a dar aulas para a Educação Infantil, passou pelo Fundamental, Ensino Médio e se “encontrou” como professora do Ensino Superior, como diz.
A partir de 1990, passou a “somar casas”, como professora da Prefeitura de Ribeirão Preto. A vivência foi complexa e diversa. Passou por escolas sem qualquer estrutura e por outras destinadas à classe média e melhor estruturadas. Também já atuava como psicopedagoga clínica, atendendo crianças com dificuldade de aprendizagem.
Em 1997, foi chamada para assumir o cargo de assistente técnica educacional na Secretaria de Educação da Prefeitura de Ribeirão Preto e pôde, então, atuar na formação de professores, um de seus grandes propósitos.
– Foi a partir da década de 90 que os estudos sobre formação de professores chegaram ao Brasil. Poder transmitir o que havia de mais moderno e promover processos formativos para professores do Ensino Fundamental foi muito gratificante para mim.
Elaine coordenou programas formativos, atuou junto aos estagiários, sempre com um objetivo central:
– Muitas produções científicas assinalam que professores melhores preparados oferecem melhores aulas, melhores condições de produção para o aprendizado de seus alunos e promovem um ensino de melhor qualidade. Nosso propósito sempre foi permitir que os alunos usufruíssem do melhor que a escola pudesse lhes oferecer.
Ensino, pesquisa, extensão
Elaine prestou concurso para o cargo de docente da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto em 2005. Aprovada, pediu exoneração do cargo na Prefeitura e demissão do Moura Lacerda.
– Eram lugares onde eu tinha vínculos afetivos muito fortes. Não foi uma decisão fácil. Mas a Universidade é instigante para o profissional que deseja fazer pesquisa e formar outros pesquisadores.
Embarcou nessa nova jornada com o empenho que já nutria. Passou a ministrar aulas para os alunos de graduação em Química e Pedagogia e, em abril de 2006, criou o Gepalle, que em 2007 já estava regularmente cadastrado no CNPq.
O grupo começou com quatro alunos da graduação em Pedagogia. Hoje, acolhe estudantes, professores, mestrandos, graduandos de diferentes áreas, como eu, que sou jornalista. Um espaço heterogêneo, com pessoas de diferentes formações, a partir do que acredita Elaine.
– Essa heterogeneidade vem de não olhar o outro como inimigo, como estrangeiro. Quando você olha para o outro como estrangeiro você tem uma sociedade de guerra. Eu parto do princípio de que as pessoas novas irão somar, contribuir, trazer histórias, memórias e conhecimentos que irão enriquecer o grupo. São perguntas outras, questionamentos outros, angústias outras.
Análise de Discurso Francesa e suas Interfaces; Alfabetização, Leitura e Letramento: discurso e práticas pedagógicas escolares; Interpretação, Autoria e Práticas Pedagógicas Escolares e Formação de Professores; Educação e Psicanálise são as linhas de pesquisa trabalhadas pelo Gepalle. Das discussões e estudos feitos pelos integrantes nascem pesquisas e projetos, eventos e celebrações, desabafos e planos de futuro.
Elaine não se casou e nem teve filhos. Filhos em forma humana. O grupo é foco de suas atenções tal qual uma mãe cuida de um filho desejado, que inunda a casa de alegria quando nasce. “Eu digo que abrir as portas do Gepalle para alguém é como abrir a cozinha da minha casa”, repete aos integrantes para enfatizar a importância de se estar ali.
A formação de professores continuou como um dos focos de atuação. Na extensão universitária, o Gepalle leva cursos de formação continuada a professores do ensino fundamental. Participou da criação e implementação do Ribeirão Cultural, em 2008, com projetos de extensão também voltados à formação de professores.
– Queremos que os professores aprendam que eles produzem conhecimento em sala de aula, que entendam que têm o que dizer e que se coloquem como autores dos dizeres.
Nessa busca, Elaine desenvolve o projeto de pesquisa “Sujeitos-Professores e Suas Relações com a Leitura e Escrita: reflexões sobre os seus desdobramentos e desafios teórico-analíticos”, que se filia às linhas de pesquisa Análise de Discurso Pecheuxtiana, Alfabetização, Leitura e Letramento e Formação de Professores do Ensino Fundamental.
– Por muitos anos eu fiz pesquisas sobre as práticas pedagógicas, mas, a partir de determinado momento, eu entendi que, antes de investigar a prática, eu precisava compreender as relações que os professores estabelecem com a leitura, a escrita, a Língua Portuguesa…
A partir dessa ideia, nasceram pesquisas e projetos com o referencial teórico que sempre pautou os estudos da professora. Estuda a Análise de Discurso de Matriz Francesa desde quando não havia nem mesmo textos traduzidos sobre o tema.
Sujeitos da complexidade
A Análise do Discurso de Michel Pêcheux entende que somos sujeitos formados por inconsciente e ideologias, atravessados pela linguagem. Somos seres complexos e repletos de sentidos. Sentidos para os quais, muitas vezes, sequer nos atentamos.
É preciso enxergar além da superficialidade. Elaine, que sempre viveu essa busca, se encantou, então, com a Psicanálise, área do saber que a constitui.
Há 20 anos ela faz análise pessoal, há 15 faz cursos de Psicanálise e, há sete, vem trazendo o tema para os estudos do Gepalle. Desemboca na Psicanálise a trajetória de quem busca o além, o que está abaixo da primeira camada, a proposição.
– Eu encontrei na Psicanálise respostas que eu não encontrei na Linguística e na Pedagogia. Me fez e me faz uma pessoa melhor, mais fortalecida. Me possibilita ver as coisas do avesso, olhar um objeto de conhecimento a partir de várias perspectivas, tirar o gesso.
Ela entende que os professores precisam ter acesso e caminhos que levem a esse campo, considerando-se a complexidade do “ser professor”.
– Só os aspectos cognitivos não dão conta de lidar com a infinidade de sentidos, receios, medos, sentimentos que nos caracterizam. O ser humano é complexo. E a Psicanálise nos fez chegar nas camadas mais profundas. Por isso é tão doloroso.
Dessa forma, Elaine enxerga cada ser como único e repleto. E busca levar tais conceitos para a atuação profissional. Acredita, assim, que o “olhar para si” é fundamental para a formação e constituição do sujeito professor.
– O professor precisa estar preocupado também com seu desenvolvimento pessoal. Não são instâncias separadas, profissional e pessoal. O professor oferece aquilo que ele tem e também aquilo que não tem. Avaliar a própria prática exige humildade e ousadia. Olhar questões que ultrapassam o planejamento – e sempre há questões que ultrapassam porque existe a singularidade do sujeito.
Conta que também viveu frustrações e precisou olhar para si.
– Há a frustração de achar que aquele conteúdo é o mais especial para os alunos e não ser. Desenvolver uma aula que eu achava ser maravilhosa e os alunos não gostarem. Ser professor exige saber lidar com as emoções, com a rejeição, com o outro, sabendo que isso existe.
No começo, por ser muito tímida e constituída também por medo, se “escondia” atrás do conteúdo e tinha sua atitude interpretada como falta de interação e abertura ao diálogo. Foi “soltando suas amarras” à medida que foi se desenvolvendo pessoalmente e profissionalmente, com os “saberes da experiência”, como diz.
– Eu defendo que os cursos de formação inicial cuidem do desenvolvimento pessoal do futuro pedagogo, promovam espaços discursivos onde os futuros professores possam falar de si.
Ressalta que o Gepalle é um desses espaços.
– É no grupo que eu também me nutro. Me abasteço e me preparo para estar ali.
Elaine entende que os professores estão “desnutridos”, e lamenta.
– Não há uma fonte onde esses professores possam se alimentar.
Por isso, busca, com tanta força, fazer sua parte nos trabalhos que desenvolve.
– Na Universidade, a pessoa não tem outro caminho a não ser progredir. Estar na Universidade é estar em um ambiente de pesquisa. E somos, enquanto sujeitos do inconsciente, sempre incompletos.
Incompletude que move
Pelo jeito inquieto de ser, sabe que, muitas vezes, é interpretada como “aquela que cobra demais” e, hoje, já adere ao que “dizem por aí”.
– Agora, quando alguém quer ser meu orientando, eu já pergunto: ‘Você sabe que eu sou muito exigente? Já te disseram?’.
Elaine se incomoda com a procrastinação porque entende a Universidade como um polo capaz de transformar o entorno. Não vê utilidade em uma dissertação de mestrado encadernada na estante. Quer que a pesquisa tenha função social.
– A pesquisa precisa ser algo que beneficie o outro, que ajude o outro. Acredito que a Universidade deve fazer mais pela escola pública e pelos professores. O conhecimento que é produzido tem que ser disponibilizado amplamente. Não tem sentido que esse conhecimento seja deixado aqui.
Por acreditar nos seus argumentos, “chacoalha a roseira” quando sente que é preciso, dito usado pelos integrantes do Gepalle, para nomear as “puxadas de orelha” que a “professora-mãe” dá no “grupo-filho”.
Não é possível ficar inerte à uma situação que exige atitudes emergentes.
– A situação está grave. Eu vejo o desprestígio do professor nas famílias, nas casas. Quando alguém diz que fará Pedagogia é desestimulado. A escola ainda é a principal agência de letramento, mas não só ela. Existem muitas outras como a própria família, os lugares que o sujeito frequenta, a comunidade onde ele vive, o clube, a televisão, a internet.
A escola precisa se entender como um espaço que vai competir com outros espaços e conhecer o sujeito aluno.
– Ser professor hoje envolve também aprender a lidar com novas e velhas tecnologias, a trabalhar com elas. Envolve saber quem é esse sujeito da contemporaneidade, esse educando que aos sete anos tem um raciocínio desenvolto, fala sobre questões que eu fui falar na adolescência. E assimilar a complexidade desse mundo pós-moderno: tudo muito rápido, efêmero.
Para Elaine, a escola “não está acompanhando tudo isso”, mas não é do tipo que perde o otimismo. Mesmo quando as conversas e discussões no Gepalle levam à conclusão de que há ainda muito a ser feito, ela apresenta argumentos para que se enxergue o caminho já percorrido.
– Eu sou otimista porque essa mesma escola que reproduz conhecimentos é a escola onde estão todos os tipos de sujeitos. Infinitas singularidades estão ali. E uma sociedade melhor não nasce de um melhor programa tecnológico, de um melhor livro didático. Ela nasce do sujeito. É preciso investir na construção do sujeito, do educando e do professor.
Segue, então, fazendo sua parte. Escolheu como o foco o sujeito professor, procurando “melhorá-lo, motivá-lo, nutri-lo”, em suas palavras.
– Eu acredito que melhorando o professor nós podemos conseguir melhorar a escola.
Se sente realizada, sim, enquanto sujeito professor, pesquisador, da complexidade. Mas, como já era de se supor, tem muitos planos pela frente.
Elaine é sujeito incompleto, inquieto, pronto para criar, construir e, então, transformar a educação que a rodeia e constitui. É essa educação, afinal, o que norteia o seu ser (como verbo e substantivo). Que bom!
0 comentários