Marcelino Mobiglia faleceu no dia 4 de janeiro de 2018, um mês após a publicação desta história, que fica como homenagem.
O Mobiglia do pai
O fogão era improvisado com dois tijolos. As ruas eram de paralelepípedos e, se alguém profetizasse, pouca gente iria acreditar que um dia, na esquina da Saldanha Marinho com a Rui Barbosa, iria passar tanto carro.
– Não tinha nada aqui. A rua não subia e nem descia. Eram só casinhas.
Marcelino conta que bem nesse começo desceu um carro pela via onde nunca descia nada e entrou em cheio na parede do bar mercearia. Ele passou uma semana acampado no estabelecimento, esperando o conserto da porta.
– Não podia deixar sozinho. Ficamos eu e os amigos aqui, jogando baralho!
A mercearia Mobiglia abriu as portas em 1966, vendendo arroz, feijão, mantimentos de todo tipo, com caderneta de contas e freguês que pagava por mês.
Marcelino tinha 28 anos e um tantão de trabalho na história. Como era de praxe naquela época, começou cedo a ajudar os pais na fazenda. Aos 16 anos, foi trabalhar em um armazém na região do Centro e depois em um depósito de bebidas.
Para comprar o bar armazém, fez sociedade com os dois irmãos. Não demorou, porém, a ficar sozinho tocando o negócio, que pagou por muito tempo à prestação.
– Devagarzinho foi indo. Só comprei um carro depois de quase 20 anos. Tá até hoje comigo.
Quando os grandes mercados foram abrindo as portas, o movimento da mercearia começou a cair. E o bar foi tomando espaço.
A tradição que já levou até gente famosa ao balcão do Mobiglia surgiu por aí.
– Tem quem fala que sabe fazer: ‘Vou pôr na gordura quente’. Ih, não sabe, nada. Tem que pôr na gordura fria. Vai levantando, remexendo. Senão, vai queimar.
O torresmo do Mobiglia começou despretensioso.
O distribuidor de frios disse que estava com uma novidade e Marcelino, para chamar a clientela, decidiu testar.
– Eu comecei a fazer e começou a dar certo.
Quando deixou o Mobiglia, já havia ensinado o segredo para os filhos.
Olha a foto em que está com Edson e Marcelo na parede do bar e me diz, todo-todo:
– Ah lá: tá os dois lá. Parecem comigo, não parecem?
Seus meninos começaram a trabalhar no bar com 12, 13 anos. Marcelino enche a boca para dizer:
– Quer saber uma coisa? Isso aqui é escola. Eu nunca usei maquininha (calculadora). É tudo na tabuada. Eles são inteligentes. Aprenderam tudo aqui.
Faz uns 20 anos que Marcelino entregou o bar – com segredo de torresmo e tudo – para os filhos tocarem.
Acostumado com o balcão, porém, não se aposentou. Abriu um buteco embaixo da casa onde mora, na Vila Virgínia.
Aos 79 anos, fica o dia todo no bar: abre às 10h, fecha das 12h às 14h para almoço, reabre e fica até acabar o movimento. Toma três cervejinhas, divididas em todo turno.
A entrevista foi marcada às 8h30, no Mobiglia. Às 9h30, ele já estava impaciente para voltar à Vila Virgínia!
– Tenho que abrir. Não pode atrasar.
O Mobiglia dos filhos
– O tempo passa rápido demais. É uma vida aqui dentro. Se olhar para trás, nem acredito que estamos há esse tempo todo: mais de 50 anos!
Quem fala é Marcelo Mobiglia, 45 anos, mais de 30 trabalhando na mesma esquina da Saldanha com a Rui Barbosa.
O bar é um dos mais tradicionais de Ribeirão, mas conserva ainda a cara de mercearia do passado. Uma prateleira cobre a parede lateral e abriga todo tipo de produto: de sabão a enlatados.
Edson e Marcelo dividem os turnos do estabelecimento, que abre às 8h e só fecha quando a última mesa pede a conta.
– Esse ramo não é fácil, não. É para quem nasce. Está na veia. Quem nunca teve experiência, não fica.
Apesar da rotina puxada, Marcelo diz que nunca pensaram em fechar as portas. Mesmo quando o movimento caiu, mesmo quando as contas custaram a fechar.
– A gente tá sempre contornando as situações.
Entre as fotos dos filhos com Marcelino, tem também um quadro do Zeca Pagodinho tomando uma cervejinha no balcão do Mobiglia: a principal história de Marcelo em mais de três décadas de bar.
Conta em detalhes.
Foi em 2009 depois de um show que o cantor entrou pela porta do bar sozinho, se sentou e pediu uma gelada. Comeu torresmo, salsicha e, quando foi descoberto, fez juntar uma multidão na porta. Os seguranças logo descobriram seu paradeiro.
– Ele só foi embora porque o público dominou e virou um forféu.
A foto – e a história – ficaram na parede.
Entre pais e filhos
Marcelino diz que não é de aguentar desaforo por detrás do balcão.
– Não pode segurar. Tem que jogar para fora, senão tem um enfarte. Eu falo para eles!
Ensinou os filhos a serem assim. Marcelo e Edson driblam os beberrões, mas não aturam falta de respeito.
– Se precisar, eu mando para aquele lugar!
Marcelo avisa, entre risadas.
O pai e os filhos têm dúvidas quanto ao futuro do bar.
Entre os nove netos, Marcelino diz que nenhum parece ter a vontade de dar seguimento ao negócio.
Marcelo ainda complementa. Pela rotina puxada, não sabe se quer esse caminho para seus filhos.
– Eu acho que a nossa trajetória não vai ter continuação.
É ele quem diz.
Garante, porém, que enquanto tiver saúde, a tradição do torresmo está mantida. E se tomar mais esse exemplo do pai, assim será por muito tempo!
Eis um pedaço da história de Ribeirão, temperado com limão e sal.
Assine História do Dia! Nos ajude a continuar contando histórias!
0 comentários