Balões para Santo Antônio em dia de festa. Projetor transformando a sala da casa em cinema aos domingos. A parreira de uvas enfeitando o terraço. Fins de tarde com pizzas saindo do forno e uma lista de receitas afetivas na farta cozinha: minestrone (sopa), gnocchi (nhoque), polenta.
No Natal, panetones e uma grande árvore enfeitada com velas coloridas. A grande família precisava de uma mesa comprida para acomodar os encontros semanais, regados a alto falatório, risadas e um tanto de choro e briga também: italianada típica!
– Lá era um pedacinho da Itália!
As lembranças dos primos Spanó são feitas de nostalgia. Quem conviveu na casa de Antônio Spanó e Laura Martin Spanó, os avós, guardou nem que seja uma memória que hoje é saudade.
Elza, 67 anos, que morou na grande casa italiana até se casar, rodeada pela avó, primos e tios, consegue sentir até o cheiro dos pratos deliciosos saindo no forno. Conta que, dia desses, pegou o caminho de casa, dirigindo o carro. Quando se deu conta, estava indo para a Vila Tibério, em direção a residência de outrora. Força da memória?
– Lá em casa era um calor humano… quanta saudade…
A família Spanó foi proprietária de uma das maiores fábricas de ladrilhos hidráulicos de Ribeirão Preto, em funcionamento por quase um século de história. Trouxe a tecnologia, até então inédita na cidade. Escola Otoniel Mota, Casa de Portinari, Igreja da Vila Tibério, Catedral de Ribeirão são alguns poucos exemplos dos muitos lugares revestidos com os ladrilhos coloridos e pioneiros fabricados na Indústria e Comércio Antônio Spanó e Filhos.
Alguns também tiveram loja de armas e ficaram conhecidos no ramo.
São muitos integrantes na numerosa família, espalhada pelo Brasil e na Itália. Criaram até um grupo no Facebook, que já soma mais de 60 participantes. Os primos Elza e Sérgio, 81 anos, são porta-vozes das memórias e contam também com a colaboração da prima Anália, 70 anos. Entre as lembranças dos três, uma história feita de tradições, festas, alegrias, tristezas e muito trabalho.
Chegadas e encontros
Ferdinando Spanó e sua esposa Maria Papaccinoli deixaram Nápoles em 27 de agosto de 1897, no navio Minas. Chegaram ao porto de Santos em 18 de setembro daquele ano, acompanhados dos filhos Francesco, 12 anos, Caterina, 9, Maria Luisa, 7, Luigi, 2, e Antônio, 18, que viria a se tornar o nonno de Elza e outros 27 netos.
A família de Laura tem origem na França. A história que perpassou as gerações fala de uma condessa, sua avó, que fugiu para se casar com o homem por quem se apaixonara, sendo amaldiçoada por sua mãe. Foram viver na Itália, região de Veneza, de onde Laura partiu.
Seu pai, Geremia Martin, veio primeiro, em junho de 1887. Em 2 de maio de 1892, Laura, aos nove anos, sua mãe Itália Lisotto, sua irmã e sua tia desembarcaram em Santos, de vapor Cittá de Genova, segundo consta na certidão de desembarque.
Partiram com destino a Ribeirão Preto, assim como a família de Antônio.
– Aqui era a capital do café. Eles contavam que era uma cidade muito famosa.
Quem relembra é Sérgio. Ele e Elza rememoram o que ouviram sobre o encontro dos avós. Laura e Antônio se conheceram na praça XV, com a prática antiga e casamenteira: os homens ficavam parados e as mulheres dando voltas. Quantos casais nasceram desse flerte!
Se casaram em 1902, ele aos 22 anos de idade e ela aos 18. Os filhos foram chegando em escadinha: 15 no total.
Os netos contam que a família de Antônio começou a trabalhar com reformas e construções logo quando chegou da Itália. Na certidão de desembarque consta que o pai dele, Ferdinando, tinha a profissão de ferreiro.
Os netos não conseguem saber a data exata, mas um recorte de jornal mostra que no final de 1890 a prensa onde eram feitos os ladrilhos hidráulicos já estava funcionando. A grande fábrica ficava na rua Gonçalves Dias, Vila Tibério. A casa da família, onde moram as melhores recordações, estava localizada em frente e, ao lado, a loja onde eram realizadas as vendas.
– Eu fazia muitos azulejos! Era minha distração!
Conta Elza, com o complemento de Sérgio:
– Eu cresci e trabalhei lá, no balcão da loja, vendendo os produtos.
Estimam que a fábrica chegou a ter 30 funcionários, além da família, que trabalhava ali em peso. A técnica de fabricação era diferente do que se fazia até então, com azulejos produzidos com calor.
Os primos explicam que os ladrilhos hidráulicos eram feitos na prensa, com fôrmas desenhadas que eram cobertas com tinta e, depois, cimento. Após passar pela prensa, os caixotes de ladrilhos iam para a água e, ao final, ficavam empilhados secando.
– As fôrmas ficavam girando e a gente pondo as cores: vermelho, azul.
Elza é quem conta. O tio Dino, um dos filhos de Laura e Antônio, era quem desenhava os moldes, usando os papéis que embalavam suas caixas de cigarro.
A família não consegue precisar quantos lugares receberam as peças feitas na fábrica. Além dos ladrilhos, também eram produzidos bancos de cimento, vasos.
Outro dia, passeando em Frutal, a esposa de Sergio deu de cara com um deles. Literalmente. Ela levou um tombo e quando o marido foi ajudá-la, viu o escrito no cimento do banco: “Oferta de Antônio Spanó e Filhos”.
A fábrica existiu até meados de 1978. Primeiro, teve a força de Antônio e Laura à frente. Quando ele morreu, ela tocou o negócio com toda sua fibra. Depois, passou para o comando de um dos filhos, Ângelo, até encerrar as atividades. O prédio foi demolido e, hoje, no grande terreno, funciona um estacionamento.
A casa também foi demolida, por decisão do familiar a quem lhe coube e tristeza dos demais. Elza conta que todos os cômodos eram decorados ao estilo italiano. Muitos adornos e peças de decoração vinham da Itália. Seu avô, ela diz, arrematou móveis de Madame Duprat, em um leilão realizado em São Paulo.
– Minhas amigas entravam lá e suspiravam, de tão linda que era a casa.
Hoje, é só memória. Até mesmo as fotos são escassas. Elza comemorou um de seus aniversários com uma festa no terraço, de onde se via toda a cidade. Um dos tios fez fotos, mas o filme queimou. Resta contar com a força da memória.
– A gente chora de ver… não tem mais nada lá.
A força de Laura
Elza e Sergio nunca viram a avó Laura sorrir. Nas fotos, o semblante triste e sério chama o olhar. Dor de mãe nunca passa: a história vem mostrar.
Laura perdeu um dos filhos, Francisco, aos 22 anos. Ele trabalhava na casa de armas do tio de mesmo nome. Uma manhã, o filho acordou sem vontade de trabalhar. A mãe insistiu para que ele fosse.
A loja ficava pertinho. A história que se conta é que a mãe fazia compras no mercado quando ouviu o tiro que matou seu filho. O tio estava limpando uma arma, que disparou. As sacolas ficaram ao chão.
– A partir daquele dia ela nunca mais sorriu. Estava sempre de preto, de luto.
Todo domingo, ia a pé até o Cemitério da Saudade, no bairro Campos Elíseos. Os netos acreditam que a tristeza que tomou o semblante vem de uma culpa que não foi embora do coração.
– A vida toda ela se sentiu culpada por ter insistido para que ele fosse trabalhar.
Laura, mesmo com tanto, não deixou a luta. O marido morreu em 1950, aos 71 anos. Foi ela quem assumiu o controle da fábrica, aos 69 anos. Faleceu em 1962, aos 81 anos.
– Ela era linha dura. Não admitia brincadeira. Depois que ela se foi, a fábrica não era mais a mesma coisa.
Mulher de garra, foi inspiração para as netas e netos, como diz Elza.
– Muitas coisas eu herdei da minha avó…
Tradições e costumes
Todo dia 13 de dezembro, a fábrica Spanó fechava as portas por devoção. É Dia de Santa Luzia e Antônio não trabalhava.
Para santo Antônio, seu xará, celebrado em 13 de junho, a família fazia uma festa de fechar o quarteirão. Soltavam balões, enfeitavam a rua, não faltava fartura, proporcionada por Antônio e Laura, como intenção ao santo.
Coube à Anália, uma das netas, filha de Valentino, seguir com a tradição do terço. É a puxadora oficial da reza na família. Sérgio, que também leva o Antônio no nome, era requisitado pelo avô. O nonno o chamava no quarto e entregava os fogos que iluminavam a festança.
Na grande família, aliás, não faltam Antônios e Lauras, em diversas combinações, como homenagens aos nonnos nos nomes de netos, bisnetos, tataranetos, e por aí vai.
Antônio Sérgio, que pôde conviver com o avô até os 12 anos, tem boas recordações. Antônio ia às mercearias e comprava legumes e frutas já passados. Ficava com pena dos donos, que perderiam a mercadoria. Quando viajam para São Paulo a passeio, o avô fazia questão de abastecer um pouquinho em cada posto.
– Ele colocava R$ 5 em Cravinhos, mais um pouco depois. Dizia: ‘Quem vai parar nesse posto aqui?’.
No porto de Santos e no Mercado Central de São Paulo, comprava tudo de barril: azeitona, salame, vinhos. Família grande exigia fartura.
– Na casa deles tinha café e comida 24 horas por dia. Todo mundo que chegava almoçava ou jantava. Ninguém saía sem comer.
Entre os filhos, já se sabia das famas. Laura era mais brava, Antônio mais tranquilo. Tanto que um dos filhos, pai de Anália, se livrou dos tapas porque cativou o pai com sua história.
Saiu para ir à escola, não voltou na hora de sempre e, quando chegou em casa, estava todo sujo. A mãe já iria partir para o chinelo! Mas o pai achou graça da história: o menino e seus amigos haviam ido a pé até o aeroporto ver o primeiro avião que pousou em Ribeirão.
No outro dia, o pai decretou: “Podem faltar da escola! Chame seus amigos! Vamos todos ao aeroporto juntos!’. E lá se foram!
Outra lembrança forte que os netos têm do nonno está no baralho. Ele adorava, mas na época era proibido. Quem passa pela rodovia entre Ribeirão Preto e Jardinópolis, às margens do Rio Pardo, avista a ilhota em meio à água. Foi Antônio quem construiu. Ia com os amigos para a ilha e a polícia não tinha como os capturar. Além do mais, eram duas rotas de fuga. Se as viaturas chegassem por Jardinópolis, eles fugiam por Ribeirão. E vice-versa.
– Eles eram muito inteligentes! Gostavam de inovar!
Conta Sérgio.
A criatividade era parte da família. Falam do tio que fabricava espelhos diferentes e caleidoscópios e do tio Júlio, que era chamado de da Vinci pelas suas invenções: patins, bicicletas para três pedalarem, perna de pau. Teve também o teco-teco que um deles comprou para sair sobrevoando por Ribeirão!
– Eles eram autodidatas!
Heranças de afeto
Entre os 15 filhos, a maioria sabia tocar um instrumento. As funções eram divididas: um no piano, outra na sanfona. Os que preferiam, podiam seguir para outras áreas. Mas todos tinham uma função. Ida, mãe de Elza, gostava da cozinha. Tortas, cuscuz, panetones: suas receitas são saudade.
Elza herdou o bom tempero. Todo dia 29, faz o nhoque da fortuna, para se comer com uma nota debaixo do prato – com chuva, sol, calor ou frio. Como nasceu em um dia 29, em seus aniversários também não faltava a tradição. Ela é aquela que tem sempre uma lasagne ou uma sopa italiana esperando os amigos no fogão.
– A culinária eu herdei da minha mãe e da minha avó.
Sua mãe foi a única filha que continuou morando com os pais depois do casamento. Elza, então, cresceu com a avó. O avô já havia falecido quando ela nasceu, em 1952.
– Eu vivi em uma casa cheia de gente! Acordava com música italiana!
Só deixou a grande casa da família quando se casou, em 1972, aos 20 anos. Teve dois filhos e quatro netos. É advogada, atuando na área há mais de quatro décadas.
Sua mãe permaneceu na residência por mais alguns anos. Quando faleceu, em 1981, já vivia em outra casa, contrariada.
– O sonho dela era transformar ali em uma vila, com várias casas para todos os irmãos ficarem perto. Aninhar todo mundo…
Sergio também passou um período morando com a nonna. Brigou com o pai e correu para a grande casa.
– Os quartos dos filhos ficavam sempre ali. Se alguém precisasse, estava lá.
Conta que sua mãe, Catarina, foi uma das primeiras mulheres de Ribeirão Preto a tirar carteira de motorista. A avó permitiu, para que ela pudesse levá-la na feira aos domingos.
Catarina foi dona de casa e seu pai, Luiz Gonzaga Pereira Seixas, funcionário público da prefeitura. Sérgio fez faculdade de farmácia, trabalhou no Instituto Adolfo Lutz e fez carreira como professor da Universidade Federal de São Carlos.
Os primos, além das boas lembranças, compartilham o amor pela Itália, que é raiz. Conhecem diversos países, mas têm um preferido, como Sérgio diz.
– Lá a gente se sente em casa. Parece que a vivência italiana volta, como era.
Quando estão em terras italianas, procuram conhecer os lugares onde seus familiares viveram. Em Nápoles, Elza foi à casa onde seu avô viveu, em frente à igreja de Nossa Senhora de Campiglione. Já encontraram familiares espalhados por todo lado. Até em Nova York tem Spanó.
– Eu sei que é uma família que deixou saudade.
Ele diz.
Vão amenizando a falta com as lembranças.
– Eu pensei até em fazer um livro: 100 anos de confusão! São só coisas boas! Uma família alegre e batalhadora!
Se é Dia de Santo Antônio, Anália reza o terço. Em 29 de cada mês, Elza faz o nhoque da fortuna. Sérgio vai guardando as fotos. De memória em memória, a história da família Spanó se mantém viva.
Legendas
1 – Laura e Antônio Spanó reunidos com os filhos e filhas
2 – Laura e Antônio Spanó: companheiros de trajetória
3 – Laura e Antônio Spanó reunidos com filhos e filhas, genros e noras, netos e netas
4 – Os primos Elza, Anália e Antônio Sérgio Spanó
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