Leitura transformou a vida de Galeno Amorim

11 fevereiro 2019 | Gente que inspira

Uma estante de madeira com livros de Monteiro Lobato foi a passagem de Galeno para o universo mágico – e sem fim – da leitura.

A irmã foi a primeira a seguir um caminho de letras.

Na família humilde, trabalhar era mais urgente do que estudar e, então, a realidade dos filhos era o ofício no campo ou como operários, metalúrgicos, caminhoneiros.

Mas a irmã seguiu um rumo diferente. Conseguiu cursar o magistério e, sem imaginar, abriu para Galeno livros e livros de oportunidades.

Já depois de trilhar currículo de muitas páginas, ele começou a escrever histórias de pessoas que tiveram a vida mudada pela leitura: “Gente que lê”.

– A leitura é o processo. O que importa é a transformação. A pessoa que vai do ponto A para o B, que muda a forma de olhar. O impacto que a leitura causa na vida das pessoas. Eu sou fruto disso.

A leitura tem sido, desde aquela convidativa estante, a maior causa do jornalista Galeno Amorim.

Atuou por quase 20 anos em jornais, trabalhou na Secretaria de Cultura de Ribeirão Preto e no Ministério da Cultura, teve uma editora de livros que conquistou prêmio Jabuti, foi presidente da Fundação Biblioteca Nacional, esteve entre os fundadores da Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto, que chega a sua 19ª edição neste ano.

Jornalismo, cultura e política são os três pilares de sua trajetória profissional.

Sabe que a leitura ainda não chega a todas as pessoas e não é valorizada como deveria. Tem consciência de que há um longo caminho a percorrer. Mesmo com tanta racionalidade ao analisar o cenário atual, não é pessimista, porém:

– Mais do que esperançoso, eu sou confiante. É só uma questão de tempo. O Brasil vai ser um grande país leitor. Não sei se daqui 10, 50, 100 anos. Mas é só uma questão de tempo.

Jornalista Galeno Amorim Ribeirão Preto

A conversa com Galeno passa rápida, leve, devorando as horas entre as muitas histórias boas que ele tem para contar. Algumas, surpreendem. Jornalista, morando e atuando em Ribeirão Preto, eu já tinha conhecimento de sua trajetória profissional. Não poderia imaginar, porém, a história pessoal que Galeno trilhara.

Conta que nasceu em Ribeirão, em 1962, mas com poucos meses de vida deixou a cidade.

Seus pais não viviam juntos e, então, quando ele tinha seis meses sua mãe lhe deixou com uma família daqui. Uma amiga, porém, soube que os cuidados que o bebê recebia não estavam adequados e disse que seus pais poderiam criar Galeno, que passou a viver em Sertãozinho, com o casal a quem chama de mãe e pai.

Sua mãe era filha de imigrantes italianos. Seu pai era negro, filho de escravos.

– Isso me ajudou a ter o olhar da diversidade. Eu aprendi a ser plural. É um caldo de cultura.

Galeno foi o filho temporão, chegando quando os outros oito já estavam crescidos. Diz que a inspiração em escrever histórias veio do pai, que estava sempre a contar causos, coisas, contos.

– E fui tocado por isso.

Relata que aprendeu a ler juntado as letras de um maço de cigarros, antes de ir para a escola.

– Olha que politicamente incorreto!

Até sua irmã professora ganhar a estante de livros do namorado marceneiro, o mundo das histórias era todo oral. Tivera um primeiro contato com um livro infantil visitando a casa de um parente e se lembra que a história era sobre o cangaço, porque havia acabado de aprender a ler de maneira “incorreta”.

Fato é que, quando começou a estudar, já amava os livros e o ambiente escolar, para onde a irmã lhe levava para acompanhar as aulas.

– Para mim, a escola era um lugar mágico, de brincar.

Logo descobriu que havia ainda mais magia por ali, com as bibliotecas.

– Era um lugar com uma quantidade infinita de livros e eu ainda podia pegar e levar para casa!

Lendo, Galeno conseguia planejar um caminho para o futuro.

Aos 12 anos, passou a trabalhar na marcenaria do namorado da irmã – aquele que a presentou com a estante. Por ali, foi carregador, vendedor, de tudo um pouco. Mas não se demorou muito. Por volta dos 14, 15 anos, conta que começou a atuar em jornais impressos como correspondente.

– Na escola eu já sonhava, sonhava não, tinha certeza de que iria trabalhar com as letras.

Foi também no ambiente escolar que ele descobriu seu viés político e cultural, como líder do grêmio, na década de 70. Relembra das vezes em que organizou palestras e encontros de resistência à Ditadura – e da repressão que sofreu. Criou também concursos, prêmios e festivais literários.

Aos 17 anos, teve que pedir autorização ao juiz da Infância e Juventude para começar a trabalhar no jornal Estado de São Paulo, onde atuou por 18 anos, sem contrato de exclusividade, como ressalta:

– Eu sempre fui guloso. Trabalhava em dois, três jornais ao mesmo tempo. Naquela época não havia problema.

Também aos 18 anos foi eleito vereador em Sertãozinho pelo MDB.

Jornalista Galeno Amorim Ribeirão Preto

No jornalismo, Galeno fez coberturas de todo tipo, viajando pelo Brasil e pelo mundo. Vai contando suas pautas e faz os olhos dessa colega de profissão arregalarem.

Atuou sem computador, mandando o texto por telefone ou fax; e sem Google, fazendo pesquisas nas matérias já publicadas sobre o tema.

Esteve na cobertura das greves de Guariba, cobriu a primeira eleição presidencial após a Ditadura, foi para Colômbia tentar entrevista com Pablo Escobar (não conseguiu, mas voltou com outras reportagens diversas), ficou duas semanas acompanhando uma guerra sem balas entre o Acre e Rondônia.

Diz que dava sempre um jeito de encontrar uma história além da história. Como quando foi para o Paraguai, atrás de um contrabando de coca, e precisou ficar dias e dias por lá. Andando pela cidade assistiu a um jogo de futebol dividido entre dois países.

– De repente eu passo pelas cidades vizinhas à fronteira e vejo a linha que demarca um campinho de terra. O cara dá um bicudo em uma bola no Brasil, não põe nem muita força, a bola faz um movimento geométrico e cai em outro país. Olha que fantástico! Aí, escrevi uma história sobre isso, claro!

Cometeu erros, tão essenciais para quem quer, além de aprendizado, ter boas histórias para contar. Eu ri alto com uma das suas. Começando a trabalhar na TV, não sabia o que era Piracema. Escalado para cobrir o fenômeno, foi até o rio e, com o microfone em riste, perguntou para o pescador: “Tá dando muita Piracema?”.

– Eu achei que era um peixe! O jornalismo, como tudo na vida, é aprendizado. Errar e acertar. Mas acho que acabei acertando mais do que errando. Não por saber, mas por gostar demais e me esforçar.

Deixou o jornalismo diário em 1996.

– Me afastei porque fiquei cada vez mais preocupado com a questão ética do jornalismo. Eu nunca deixei de ser jornalista. Só deixei o jornalismo diário.

Naquele mesmo ano, abriu sua própria editora, “Palavra Mágica”. Entre as publicações, livros infantis com a temática da cidadania que ele mesmo passou a escrever por perceber um gargalo no mercado editorial.

Logo, começou a publicar livros de outros autores e a ganhar prêmios. O livro “À Sombra do Cipreste”, de Menalton Braff, editado pela “Palavra Mágica”, ganhou o Jabuti em 2000.

A política veio atrelada. Em 2001, foi secretário de Cultura do governo Palocci. Aquele carinho com as bibliotecas, que surgiu na infância, foi bandeira da sua gestão.

Conta que inaugurou 80 bibliotecas por toda Ribeirão Preto. Escolas, centros comunitários, igrejas: todo lugar é de leitura.

– Um bairro chegou a fazer um abaixo assinado porque, apesar de ter uma biblioteca no bairro vizinho, eles queriam uma própria. Que orgulho!

Deu início também nessa época, em 2001, à primeira edição da Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto. Ninguém deu muita bola para o projeto. Só começaram a acreditar que daria certo quando a praça, com uma grande tenda, ficou lotada de gente.

– Foi uma explosão de público! O trabalho feito serviu para a execução da feira nos anos seguintes.

Já são 19 edições, com mudanças, transformações, mas mantendo o ranking como segunda maior feira do livro a céu aberto do Brasil.

Em 2004, Galeno foi convidado para assumir um cargo no Ministério da Cultura, sob gestão de Gilberto Gil, governo Lula (PT). Partiu rumo ao Distrito Federal.

Diz que as conquistas feitas em Ribeirão é que o levaram para Brasília.

Como coordenador do livro e leitura, recebeu a missão de criar o Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL), que lançou em 2006, após percorrer o Brasil todo colhendo impressões. Deixou o Ministério em 2008.

Em 2011, foi convidado para assumir a presidência da Biblioteca Nacional, cargo que ocupou por dois anos no Rio de Janeiro. Em 2010 concorreu a deputado estadual, com a bandeira da leitura.

– Eu me candidatei para colocar o livro na campanha.

Não ganhou, mas teve 16.839 mil votos em 220 cidades. Estudou se candidatar para a prefeitura de Ribeirão na última eleição, pelo PT (Partido dos Trabalhadores). O partido decidiu seguiu por outro rumo, porém.

Ele avalia a trajetória do PT em dois lados. Acredita que o partido foi responsável pelo governo com maior inclusão social da história do País, mas derrapou na “pauta ética” e, então, precisa se “reconciliar com a sociedade”, que “esperava as duas coisas do partido”.

Quando questionado sobre possíveis “decepções” com o partido, responde de maneira direta:

– Não é uma relação emocional. É uma relação pragmática no sentido de analisar os acertos e os erros.

Jornalista Galeno Amorim Ribeirão Preto

Galeno voltou a morar em Ribeirão em 2015. Hoje, dirige a Fundação do Livro e Leitura, que organiza a Feira Nacional do Livro de Ribeirão.

Está, inclusive, escrevendo um livro sobre os 19 anos do evento, que é um tanto seu.

– Eu sinto que tenho um compromisso com a cidade, em não deixar essa história se perder.

E tem muita história para ser contada! Relembra o ônibus de estudantes que saiu de uma cidade na divisa com o Mato Grosso, percorrendo 400 quilômetros para assistir à palestra do Ziraldo. Chegaram atrasados, porém, e perderam o evento. Decidiram protestar em frente ao Pinguim, com passeata e tudo.

– Isso é sensacional!

As 80 bibliotecas que criou enquanto secretário foram fechadas, ele estima, em apenas cinco anos. Afirma que deixou a estrutura criada para manutenção dos espaços, e lamenta.

– Elas desapareceram de maneira silenciosa e cruel. A cidade não se interessou em defender isso. Se a sociedade não defende, não sobrevive.

Mantem sua visão na construção do amanha.

– Tudo é uma construção. Não se pode ser imediatista. Os resultados vêm. Mas não se pode fazer em cinco anos aquilo que não foi feito em 500. Você cria, provoca, amplia. Quando vê, já está conquistando espaços.

Na vida pessoal, se casou e teve um casal de filhos. Ela é advogada e ele seguiu pela área de Relações Internacionais.

– Os dois leem bem, escrevem bem e são melhores do que eu.

Apesar do barulho que fez contra a Ditadura, não foi preso naquela época e ri do contrassenso. Em 2016 foi para a cadeia acompanhando uma invasão do MST. Processou o estado, pela truculência da ação. E ganhou o processo na Justiça.

– Fui ser preso agora, na democracia.

Por muitos anos, defendeu o livro como bandeira. Visitou uma prefeitura que havia comprado cinco mil livros com a temática da cidadania para distribuir aos alunos. Um ano depois da compra, as caixas dos exemplares estavam intactas. O episódio mudou sua forma de pensar.

– Ver aqueles livros empacotados me fez perceber que o livro não importa. O importante era a leitura e o impacto que ela poderia ter trazido aos alunos.

De nada adiantaria a estante cheia de livros da irmã sem sua vontade de devorar as histórias.

Para o futuro, tem planos e ideias. Será que o livro sobrevive aos tempos de tecnologia? Conta que no final do ano tirou alguns dias de férias e devorou um tanto de exemplares, em formato digital.

– O importante é a leitura, em todas as plataformas. Sem isso, não tem futuro. As pessoas precisam ter acesso gratuito e público ao livro. Com base em Antônio Cândido, o direito à literatura é humano.

Acredita que as histórias são “o mais forte de tudo”. Sua trajetória começou diante de uma estante repleta de livros. Um novo caminho para uma realidade árida.

Vem daí também seu otimismo. As bibliotecas foram desativadas, ainda falta muito para o Brasil ser um país leitor, mas ele não para seu discurso no lamento.

– O caminho tem transtornos e solavancos, mas uma hora se acerta. Uma grande ideia não é derrotada facilmente.

Abre mais um livro. Começa no prefácio, letra a letra.

– Nós seguimos, porque o mundo segue.

Assim como os personagens que retrata, é gente transformada pela leitura.

 

 

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