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Esta história foi narrada pelos integrantes do projeto Doadores de Voz, dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Unaerp.
Por Daniela Penha
– Eu acho que eu já rompi o ventre da minha mãe com uma vontade enorme de viver. A alegria é minha tônica. Para mim, tudo vai dar certo.
Quando o convite para entrevistar Gilda Montans foi feito, não titubeei em aceitar. Já sabia que ali havia uma trajetória de vanguarda na música.
Em poucos minutos na sua presença percebi que a história iria além do percurso musical, porém. Para ela, música é coisa de alma, de amplidão. Assim como a vida.
– A arte, desde que você exerça com prazer, alegria e gratidão, é uma forma de oração. De reverenciar o Cosmo, Deus, o Universo, o planeta, as pessoas.
Aos 79 anos, ela celebrou os 65 de carreira musical, completados em 2018, em cima dos palcos. Fazendo ressoar o acordeon. Idade, afinal, nunca foi acorde decisivo em suas melodias.
Saiu a tocar acordeon mundo afora aos 48 anos, já depois de quase 30 atuando como professora. Para muita gente, época de começar os planos de aposentadoria.
– A idade é o que você enxerga. Você tem uma imagem sua que não é física, é emocional. Eu acho que eu tenho todas as idades, vá!
A entrevista tem como cenário a fazenda onde ela vive, rodeada de plantas, passarinhos, um bambuzal que faz de templo: uma paz quase tocável.
– Aqui é onde eu passo a maior parte do tempo da minha vida. Está minha história. É um privilégio estar com a natureza. E tocar para os passarinhos. Tem tudo o que eu preciso: o silêncio.
O seu escritório tem a licença poética para ser refúgio. Quadros com recortes de jornal, folders de shows, materialização de uma história pregados por todas as paredes. Acordeonistas de barro representam as 11 edições do Encontro Nacional de Acordeonistas de Ribeirão Preto que ela realizou na fazenda a partir de 2000. Discos, livros, acordeons e um piano imponente.
– Primeiro eu faço os arranjos aqui, no piano.
Entre as conversas, ela abraça o acordeon e me presenteia com um show particular. Toca “O trenzinho do caipira” e eu vejo a imagem nublar, pelas lágrimas que enchem o olho. Como não se emocionar com a música feita de alma?
Depois, me conta que só no instrumento já são 62 anos de história. Diz que, lá na década de 50, o pai o encomendou especialmente para ela. Hoje, é uma relíquia, sem preço estimado.
Assim como todas as memórias que a habitam. E toda a beleza com que ela escolhe olhar para a vida.
– Eu perdi um filho quando ele tinha 20 anos. Eu senti dor. Existe a saudade. Mas não são objetos de infelicidade. Eu não me senti infeliz, nem mesmo nesse momento. Eu dizia: ‘Deixa eu chorar. É o coração que transpira’. Mas não me senti infeliz.
Gilda conta que o pai respondeu com a boca cheia de palavras quando alguém lhe perguntou se não gostaria que sua filha estudasse Medicina: “Vou ficar mais feliz de ter uma filha musicista do que uma filha médica’.
– Ele era um avançado para a época. E eu também fui vanguarda.
A música sempre foi presente na casa de fazenda onde a família morava. A mãe era pianista e os saraus, após o café da tarde, eram rotineiros. Dos cinco irmãos, todos puderam tocar. Só Gilda seguiu a música como carreira.
– Eu me lembro de saraus no colo da minha mãe, escutando embevecida ela tocar. Desde pequena, tive um encantamento pela música. Eu ficava quieta ouvindo. Era mais do que brinquedo para mim.
Gilda começou a tocar aos 11 anos, no colégio. As opções de aula eram piano e acordeon. Mas o pai fez questão de escolher.
– Ele tinha loucura pelo acordeon. Foi ele que escolheu. Mas eu gostei. Abracei com carinho e amor.
Aos 13 anos, ela já animava os bailes na fazenda. As lembranças são nostálgicas: lavava-se o estábulo, fazia-se um churrasquinho, toda a vizinhança e os trabalhadores da colônia eram convidados.
– Éramos eu e mais um sanfoneiro na fazenda. A gente fazia a festa!
Não demorou a ser aluna do homem conhecido por ser o melhor acordeonista da região.
– Quando eu tinha 15 anos ele chamou o meu pai e disse que não tinha mais nada para me ensinar. E que eu deveria estudar em São Paulo.
Ainda menina, então, ela começou a fazer viagens de estudo para São Paulo quinzenalmente. Depois, o tempo aumentou. Passava um mês por lá e voltava para as aulas por aqui, mesclando a grade.
– Para a época, isso era muito vanguarda. Uma menina estudar em São Paulo!
Em 1958, aos 20 anos, se formou como professora de música e no ano seguinte como concertista. O mestrado foi em Pedagogia Musical, na USP. Antes de se formar, já dava aulas no conservatório. Fundou a escola de música Curso Alvorada de Harmônica na década de 60.
Meire Genaro, sua parceira no Duo de Acordeons, foi uma de suas – muitas – alunas.
Em 1986, quando atuava como chefe do Departamento de Música da Unaerp (Universidade de Ribeirão Preto) recebeu o convite de um shopping da cidade para apresentar um recital em comemoração ao Dia Internacional da Mulher.
Montou, então, um grupo para a apresentação. Entre os integrantes, estava Meire.
– Fizemos esse recital e o pessoal adorou.
Continuaram tocando. Mas, entre um ensaio e outro, um integrante faltava e o outro avisava que não iria continuar.
– Ficamos eu e a Meire.
Nascia o Duo de Acordeons e a carreia de Gilda e Meire nos palcos do mundo.
– Eu exerci a profissão de professora com paixão. Passei a música como verdade incondicional. Como elemento de conscientização do homem. Mas a minha paixão pela docência foi sendo substituída pela paixão pelo tocar. E eu troquei completamente.
De formação erudita, Gilda embarcou em um novo percurso musical em busca do popular.
– São estilos diferentes, mas eu não valorizo uma mais do que a outra. Valorizo na mesma relação. A música brasileira é riquíssima: a popular e a erudita.
Passou a pesquisar, estudar, produzir arranjos e compor. Lançaram o primeiro CD em 1996 e definiram um repertório misto. Há canções populares e eruditas, todas tocadas em arranjos elaborados.
Não demorou a vir a primeira turnê pela Europa, os shows por todo Brasil, os encontros com outros grandes acordeonistas, como Dominguinhos e nomes internacionais. Lançaram três álbuns próprios e perderam as contas das participações que tiveram em álbuns de outros artistas.
– O acordeon é um instrumento que faz uma festa sozinho. Ele te abraça. Tem um milhão de possibilidade para pesquisas, traz sonoridades diferentes.
Fala de seu companheiro com o carinho cultivado em 65 anos de estrada.
– É uma história de amor. Eu acho que nasci para fazer isso. E eu sou tão feliz!
E da felicidade, claro. Que transcende todas as suas companhias.
Gilda se casou por volta dos 23 anos e passou a morar na fazenda, que desde então é seu reduto. O marido, assim como seu pai, era agricultor.
Ela diz que, em tempos de mulheres designadas a cuidar dos filhos e da casa, pôde seguir seus próprios rumos. E se dedicar a um instrumento que, majoritariamente, está nas mãos de homens.
– Eu sou uma pessoa livre. A vida inteira foi assim.
Seus quatro filhos estudaram música. E os cinco netos seguem a tendência, para alegria da avó que mostra a foto de uma das netas tocando acordeon em um dos encontros na fazenda.
– A música é importante como um elemento de sensibilização, de cultura.
Em 1988, perdeu um dos filhos, aos 20 anos, em um “desastre”, como diz. Fortaleceu sua conexão com o que acredita ser importante, para não deixar a dor ultrapassar a gratidão.
– Ajudou a reforçar minha ideia de que eu viveria para a música, para as flores, para natureza. Eu sinto um privilégio por poder exercer uma atividade artística. A música é o que torna a vida mágica. Eu também vivo um mundo de magia.
São 65 anos de carreira musical. Ainda hoje, ela conta que estuda, ao menos, três horas por dia. Às vezes, vai para seu “escritório refúgio” às 8h e não vê anoitecer.
– Não é só o momento em que eu estou me apresentando. Estudar também é mágico.
O repertório em duo tem mais de 100 músicas, feitas por todo esse estudo. O palco é a grande realização de todo empenho.
– Eu adoro os shows. A gente joga para o público uma energia, uma vibração, mas recebe isso de volta do público inteiro: centenas de pessoas. Eu me sinto energizada e até mais protegida. É uma proteção divina, espiritual.
A conexão que tem com o que vai além do humano é presente em toda fala. Acredita em um Deus que permite a evolução através de várias vidas, e que estamos aqui para “resgatar”. Sobretudo, sua fé é baseada em uma crença:
– Deus é amor. O amor sem Deus não teria significado porque ele morreria. Mas o amor não acaba, é eterno.
Sem rotular o tempo pela idade, quer continuar tocando, e criando novos caminhos pela música, até quando esse seu Deus “permitir”. Garante que não se esquece dos acordes.
– A idade interfere na memória, mas não na parte artística. Eu esqueço de muitas coisas, mas da música eu não esqueço.
Me entrega um poema que escreveu para seu tão amado companheiro acordeon. Compartilho os primeiros versos:
“Companheiro de uma vida
Te envolvo num abraço
O teu forte chamado
Ecoa numa sonoridade vibrante
Que se expande possante…”
Vou embora com vontade de ficar. Mas levo os CDs do Duo comigo, para adoçar o caminho da volta.
– Uma aventura para mim foi a vida!
Qual será o acorde da felicidade?
#soufã
Adorei! :o)