Guerline sobreviveu ao terremoto do Haiti e reconstruiu sua história no Brasil

17 agosto 2022 | Destaque, Gente que alimenta, Projetos especiais

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Texto: Daniela PenhaFotos: Tatiane SilvestroniIlustração: Cordeiro de Sá – Produção: Vandreza Freiria

No salão de Guerline, as paredes são decoradas com adesivos de tesouras e secadores. Ela atende à clientela em um cômodo pequeno, improvisado com muito carinho e pouco recurso. 

– Hoje eu tenho minha própria empresa! 

O espaço, em Várzea Paulista, região metropolitana de Jundiaí, é composto por uma cadeira, um lavatório e alguns produtos organizados em armários. 

Por enquanto, não tem banner ou letreiro na fachada. É o primeiro – e imenso – passo de um caminho que, ela garante, será cheio de sucesso. 

– Meu sonho é ter um salão lindo, com três cadeiras, lavatório. Com certeza eu vou chegar lá! Eu sou uma mulher guerreira! 

Guerline, 52 anos, sobreviveu ao terremoto que devastou seu país em 2010. Deixou o Haiti como refugiada para reconstruir os pedaços e reescrever sua história. 

O percurso até o Brasil foi longo. Passou dois anos na Venezuela, em uma época de muita instabilidade no país. Para chegar a Manaus, foram dois dias de ônibus, sem nenhuma segurança. Depois, mais uma etapa de viagem até Jundiaí, onde trabalhou sem receber, sofreu um acidente, se dividiu em muitos turnos para conseguir se manter.

– Posso cair, mas vou levantar. Vou fazer, vou conquistar.  

Abrir o próprio negócio, ainda que entre desafios e improvisos, é uma grande conquista. No salão de Guerline, a resistência é o adorno principal. 

Cesprom Jundiaí refugiados

– Às vezes essas coisas acontecem para que a gente valorize mais a vida. 

Quando o terremoto começou, Guerline estava dentro da fábrica onde trabalhava, em Porto Príncipe. As máquinas começaram a cair e os operários correram para a rua. 

Do lado de fora, entenderam a dimensão da tragédia. 

– Muitas pessoas morrendo. Os muros e as casas caindo…

A rua da casa onde morava ficou coberta de escombros. Tudo em volta havia se transformado em ruínas. Em um cybercafé ao lado do prédio onde foi buscar abrigo, 10 meninos foram soterrados. Na família, duas primas e uma bebê ficaram presas em escombros. Uma delas não resistiu até o socorro chegar.  

São muitas as histórias da tragédia que ainda hoje ecoam em Guerline. 

O terremoto que atingiu o Haiti em 2010 matou mais de 200 mil pessoas, feriu outras milhares e deixou mais de 1,5 milhões de haitianos desabrigados. As fotos da tragédia chocam, mais de uma década depois. 

A vida no Haiti nunca foi fácil, ela diz. 

Trabalhava na indústria, em Porto Príncipe, para ajudar a família. Seus pais e sua filha, ainda criança, moravam mais ao Sul do país. 

Foi o único alívio quando o terremoto ocorreu. Enquanto percorria a cidade destroçada, ela sabia que eles estavam protegidos. 

Para prosseguir em meio a tanta perda, precisou deixar sua terra devastada. 

– Já não tinha muito trabalho. Depois ficou mais difícil. 

Cesprom Jundiaí refugiados

Partiu sozinha, com missão de enviar recursos para os pais e a filha, que nesse primeiro momento não puderam sair. 

Escolheu a Venezuela como destino porque sua irmã já estava lá. Não deu certo, porém. Pegou um momento conturbado para o país. 

– Não tinha trabalho e eu não conseguia mandar dinheiro para a família. Era muita dificuldade… 

Conseguiu guardar um pouco de recursos e seguiu para o Brasil. Passou quase dois dias em um ônibus para chegar à Manaus, onde conseguiu acolhimento e conheceu o Cesprom (Centro Scalabriniano de Promoção do Migrante). Ficou quatro meses em um abrigo para refugiados, até conseguir chegar a Jundiaí.

Escolheu a cidade do interior paulista porque já havia haitianos conhecidos por lá. 

Desde a chegada, em janeiro de 2013, não lhe faltou emprego. As condições e os pagamentos eram esgotantes, porém. Conta que chegou a trabalhar por sete meses em uma instituição de saúde, sem receber. Tentou buscar seus direitos, mas as burocracias e as dificuldades de estar em outro país dificultaram a busca. 

Trabalhou também em uma gráfica, por um ano e meio. Sofreu um acidente e quase perdeu os dedos da mão. 

– Passei muita dificuldade, mas Deus tem o caminho para a gente. 

Cesprom Jundiaí refugiados

Desde que conheceu o Cesprom, em Manaus, criou um laço de acolhimento com a instituição. Recebeu orientação, roupas, alimentos. A entidade é uma das cadastradas do Mesa Brasil Sesc Jundiaí. Cadastrada desde maio de 2019, recebeu a doação de quase 26,5 toneladas de alimentos.

O Cesprom de Jundiaí integra o conjunto de unidades mantidas pela Associação Educadora e Beneficente das Missionárias Scalabrinianas, que vieram da Itália em 1895 para trabalhar pela integração social do migrante e redução dos sofrimentos humanos provocados pela migração intensa no final do século XIX. 

Coordenadora dos trabalhos em Jundiaí, a irmã Maria Cléia Santos explica que o principal propósito da instituição é possibilitar que os imigrantes consigam reestruturar suas vidas em outro país. 

– Não adianta só acolher a pessoa, dar o alimento e não dar a oportunidade para ela se desenvolver. Nosso objetivo maior é dar habilidades para que ela tenha sua independência. 

Assim, o Cesprom auxilia os refugiados na parte burocrática, auxiliando na emissão de documentos. E também oferece cursos profissionalizantes na área de panificação, estética, costura, informática, entre outras. Só em 2021 atenderam mais de 500 pessoas. 

Irmã Cléia ressalta que o número de imigrantes cresce a cada ano no país. 

As doações do Mesa Brasil são encaminhadas para as famílias cadastradas. 

– Quem criou o Mesa é abençoado! Tudo o que chega ajuda muito essas famílias. 

Cesprom Jundiaí refugiados

O curso de cabeleireira, oferecido gratuitamente pela entidade, ajudou a transformar a história de Guerline. 

Lá no Haiti, ela já trançava cabelos nos horários em que não estava na indústria. 

– Eu gosto de fazer cabelo desde a infância. É minha área. 

Passou um tempo com o certificado em mãos, sem possibilidades na área. 

Uma conhecida que tinha um salão grande a convidou para aprender.

– Ela me ensinou como fazer uma progressiva, segurar uma escova. 

Aprendeu rápido e bem. Logo, as clientes procuravam o salão pedindo para escovar os cabelos com Guerline. Ficou quatro anos por lá. Nesse período, somou funções para conseguir trazer sua família para o Brasil. 

– Até trufas a igreja me ajudou a fazer para trazer meus pais e minha filha. 

Eles chegaram em 2018, para sua felicidade e alívio. Hoje sua filha está com 13 anos.

– Graças a Deus, minha família está toda aqui comigo! 

Cesprom Jundiaí refugiados

A ideia de abrir o próprio salão surgiu dois anos atrás. A prima tinha um espacinho vago dentro de sua loja e ofereceu para a empreitada. 

Começou se dividindo entre o salão próprio e o da amiga. Recebeu todo incentivo da chefe: “Filha, tem que crescer!”. E, então, foi crescendo. 

– Comprei tudo à credito! 

Na pandemia, com o negócio recém aberto, teve que improvisar. Atendeu em casa por um período, fez de tudo para manter o salão em pé. 

Para o banner que está se programando para fazer, já tem nome: “Tabigue”. 

Quer se especializar em cabelos afro e busca formas de estar sempre se atualizando, fazendo cursos. 

– Tem pessoas que não querem aprender. Só querem fazer dinheiro. A vida não é isso. A vida é uma escola. Sempre temos que aprender. Na parte de cabelos sempre tem um novo modelo, uma inovação. 

A vida ainda não é fácil, mas Guerline despista as dores no sorrisão sempre estampado no rosto. 

– Se você chegar em um novo país e não quiser aprender nada, vai sempre trabalhar com o salário mínimo. Não vai conquistar seu sonho. 

Em sua narrativa, não há espaço para a descrença. 

– Na vida a gente tem que ter fé, senão não chega a nada. Meu sonho é chegar muito longe! 

Quais histórias moram no sorriso de Guerline? Há quem pergunte. Entre um corte e outro, um cabelo escovado e o próximo, ela conta seu percurso de refúgios e recomeços. 

No salão de Guerline, a resistência é o adorno principal. 

Conheça mais sobre o Mesa Brasil

Que tal criarmos uma ponte entre quem precisa de ajuda para matar a fome e quem pode e quer fazer o bem? Uma ponte que consiga unir essas duas pontas, fazendo com que os alimentos que sobram para um cheguem à mesa do outro? 

É isso que faz o programa Mesa Brasil, criado pelo SESC SP há 27 anos e presente em todo o país.

Caminhões coletam diariamente doações de alimentos com empresas, supermercados, cerealistas, produtores, entre outros fornecedores e entregam para instituições sociais e hospitais. Só em São Paulo são 30 caminhões circulando todos os dias para atender 95 cidades paulistas.

Realizando a coleta e a entrega dos produtos, o Sesc São Paulo facilita o caminho para quem quer doar e garante que toneladas de alimentos que seriam desperdiçados cheguem à mesa de quem precisa: uma rede de combate à fome! 

Em 2021, foram 1341 instituições sociais beneficiadas, além de milhares de famílias que levam alimentos direto para suas casas. As 1191 empresas doadoras fizeram 6,4 milhões de quilos de alimentos chegarem à mesa de quem precisa.

Em Jundiaí, o programa foi implantado em maio de 2019 e já distribuiu mais de 706 toneladas de alimentos, para 44 entidades cadastradas. Ao todo, quase 9 mil pessoas foram beneficiadas pela solidariedade de 63 instituições doadoras.

O projeto “Gente que Alimenta” conta as histórias de quem faz esse programa do bem acontecer: doadores e instituições que precisam de apoio para continuarem suas atividades. 

Quer saber mais sobre o Mesa Brasil? Quer se tornar um doador? Acesse o SITE AQUI e se encante ainda mais com esse bonito programa! 

Leia mais histórias do projeto

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4 Comentários

  1. Elza Maria

    Parabéns Guerline Deus te abençoe sempre muito susseso em sua vida e muita Luz em seus caminhos abraço Elza

  2. Maria Cleia Franca Santos

    Linda história.. parabéns..

  3. Antônia

    Parabéns por esta resistência, ou melhor, resiliencia que te manteve buscando os seus objetivos!
    Que Deus abençoe sua vida e de sua família! ??

  4. Hugo Pavini

    Que história linda e inspiradora! Guerline é um exemplo de força, resiliência e vontade de viver!
    E meus cumprimentos mais elogiosos ao projeto História do Dia por documentar, com esse relato, a trajetória de luta de uma das tantas mulheres pretas e sobreviventes que conhecemos.
    Muitas vezes narrativas assim passam apercebidas no cotidiano; são banalizadas pelo infame conformismo de que vidas negras nascem predestinadas à subserviência. E casos que rompem com esse estigma, empoderam. Daí a urgência e a relevância desse trabalho, sobretudo em tempos atuais. Parabéns!

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