Zelão faleceu no dia 24 de abril de 2018. Esta história é nossa singela homenagem pela trajetória que ele escreveu.
Zelão sabe a data exata. Anotou em caneta no tabuleiro onde pendura os jogos: 5/07/1965.
– Agora em julho completa 53 anos!
Há mais de meio século, ele passa os dias no mesmo numeral 449 da rua Álvares Cabral, que hoje é calçadão, vendendo bilhetes de loteria.
Só sai dali por poucas horas, quando o movimento está baixo e precisa andar atrás de clientes. Nem mesmo gravação de novela da Globo lhe fez mudar de ideia.
– Eu falei: Quer gravar? Tudo bem. Mas eu não saio.
Na reforma do calçadão, que se arrastou por anos, teve a mesma conduta.
Só aceitou mudar o tabuleiro um pouco para cima ou um pouco para baixo, nos dias de colocação do piso ou algum ajuste impossível de ser feito com gente transitando.
– Eu comi um poeirão. Tá vendo essa marca aqui? É resíduo da poeira.
Mostra o encardido na madeira do tabuleiro e no ferro da prateleira, relíquia de uma lotérica que fechou as portas.
José Luis Gardelari, 67 anos, garante que hoje é o vendedor de bilhetes mais antigo do Centro de Ribeirão Preto. E um dos mais de toda a cidade.
– Ah, mais que eu não tem aqui!
Eu convido Zelão duas vezes a se sentar para a entrevista.
– Sentar? Eu não sento, não. Sempre gostei de ficar em pé!
Das 8h às 17h, tempo que passa vendendo os jogos no Calçadão, ele senta alguns poucos minutos quando o sol dá tréguas sob os bancos em frente ou quando pega uma cadeira emprestada do restaurante ali próximo.
– Sentado parece que desanima!
Nossa conversa, então, acontece em pé, enquanto um ou outro cliente se aproxima, uma ou outra pessoa pede informação.
– Aqui é assim. Às vezes, eu até me intrometo: Posso ajudar?
Zelão começou a vender bilhetes aos 15 anos. Antes, porém, trabalhou na feira e vendeu biju (o doce crocante) pelas ruas do Centro.
Era um dia como outro, vendendo os doces. Avistou um bilhete perdido embaixo de um carro e procurou a lotérica, que ficava na rua Tibiriçá, para devolver.
O dono do estabelecimento deu pulos de alegria porque o apostador estava em uma procura agoniada. Como agradecimento, convidou o menino para vender os jogos.
Nesse começo, entregava alguns poucos exemplares, que Zelão vendia caminhando pela área central. Pouco tempo depois, o jovem já tinha tabuleiro armado e ponto fixo na rua Álvares Cabral.
Reclama das tantas mudanças que a área passou em mais de 50 anos.
– Aqui era rua. Os carros passavam, paravam e compravam bilhete. Época boa! Chegava a vender 100, 200 bilhetes em uma semana!
Hoje, as vendas não passam de 40 exemplares, para os lamentos de Zelão.
Ele diz que a maioria da clientela antiga faleceu. E os que ficaram, estão bem de vida e deixaram de apostar.
– Agora, quem compra mais é molecada, que não entende nada de jogo.
E se chateia pelo tempo que não volta mais.
Um tempo que teve até o deputado Ulysses Guimarães frequentando o Pinguim e comprando bilhete. Zelão conta que o político mandou lhe chamar para perguntar sobre um conhecido e, depois da conversa, fez um jogo.
Relembra também o dia em que a rua ficou parecendo cenário de filme, com assalto no Banco Noroeste, que era bem em frente ao ponto de vendas, onde hoje é loja de roupas.
– Teve tiro, os ladrões subiram com o carro na calçada, o guarda foi baleado na perna.
E, ainda, dos dias em que a rua foi – mesmo – cenário de novela. Quando “O Rei do Gado” foi gravado em Ribeirão, em 1996, Zelão acompanhou mais de perto do que a produção gostaria.
Não pensou em outra resposta quando escutou o pedido para que deixasse seu ponto de vendas. E, como decidiu ficar, assistiu a tudo de camarote.
– Era Antônio Fagundes para lá e para cá, aquela mulherada de vestidão entrando no Pinguim e o poeirão dos carros subindo e descendo.
Zelão sabe o passado de cada loja da quadra. Relembra a alfaiataria que deu lugar à loja de joias e hoje é lanchonete. Sabe a data exata em que a empresa de aviação aérea deu lugar a uma salgaderia que existe ainda hoje.
– Foi em 1999! Quem mexe com jogo, é fogo! Tem memória!
As duas filhas foram criadas com o dinheiro do jogo que faz a memória não falhar. Zelão diz, orgulhoso, que as moças já estão casadas e lhe presentearam com dois netos.
Ele mesmo não é de muita aposta. Mas conta que das suas mãos já saíram dois prêmios altos, de R$ 400 e R$ 200 mil.
Como agradecimento pelos R$ 400 mil, o ganhador lhe deu 1%, que serviram para pagar a reforma da casa onde mora com a família. Pelo prêmio de R$ 200 mil, ganhou R$ 200.
– Jogo é sorte! O dia de sorte da pessoa!
De segunda à sábado, a rotina de Zelão é a mesma. Acorda por volta das 6h, pega o ônibus para o Centro às 7h, desce no terminal, sobe a rua dos Correios e toma um pingado na lanchonete por ali.
Chega na Álvares Cabral, busca o tabuleiro e a prateleira, que passam a noite guardados em uma loja, e começa as vendas às 8h.
Diz que nunca – nunquinha – tirou férias. Nem uma semana sequer.
Só descansa aos domingos e feriados, porque o comércio fecha as portas e o calçadão fica deserto.
– Vou ficar fazendo o quê em casa? Aqui, distraio.
Quando completou 65 anos, conseguiu se aposentar. Falou para a esposa que iria parar “com esse negócio de jogo”.
– Mas a mulher achou melhor continuar. Pelo menos, tem um dinheirinho a mais. E outra, se eu parar, eu morro logo!
Diz também que nunca – nunquinha – ficou doente. Só uma gripe aqui e ali. Mas sem internações.
E, então, reforça a ideia de que não há porque deixar o que, há tanto tempo, está dando certo. O único lamento é pelo tempo, que passa.
– Hoje é tudo diferente. Muito diferente! O chopp do Pinguim era encanado mesmo! Passava por debaixo do chão. Desse tempo, só sobrou eu e a Única (cafeteria). O pessoal foi morrendo e eu fui ficando.
Há 53 anos no mesmo numeral 449 da rua Álvares Cabral, ele é parte da história. Pausa de nostalgia no apressado tempo.
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