História de Antônio Sartore com a Dante Alighieri começou 80 anos atrás

20 fevereiro 2020 | Força Italiana, Histórias do Proac 2019/2020

Esta história faz parte do projeto “Força Italiana”, iniciativa da Casa da Memória Italiana, produzido em parceria com o História do Dia. Para conhecer mais acesse 

www.casadamemoriaitaliana.com.br!

 

A foto em preto e branco emoldurada na parede mostra a primeira sede da Sociedade Dante Alighieri, na rua General Osório, em 1940. Em frente ao portão está Matteo Sartore. Antônio avisa, com a voz orgulhosa: “Esse aí na foto é meu pai!”.

A história da família Sartore com a sociedade italiana começou cerca de 80 anos atrás. Matteo e sua esposa vieram da Itália para o Brasil com as filhas pequenas e nenhum dinheiro. Ele trazia na bagagem a tristeza da Primeira Guerra Mundial. Combateu, foi preso pela Alemanha, viveu em um campo de concentração, passou 25 meses longe de casa.

Chegou ao Brasil com essa força e a vontade de recomeçar. Foi funcionário da Dante e morou por um bom tempo em uma casinha que ficava na sede, no Centro de Ribeirão. Depois, se tornou sócio da instituição e permaneceu até falecer, em 1965.

Partiu sem ver o que viria. Décadas depois, seu filho Antônio se tornaria o primeiro cidadão brasileiro, descendente de italiano, a assumir a presidência da sociedade.

Foi preciso persistência para alterar o regimento da instituição, que nasceu em 1903. Até então, somente italianos podiam integrar a diretoria. Mário Perrota, italiano que passou 24 anos na presidência, foi um dos entusiastas da mudança, como diz:

– Daqui 10, 15 anos ainda terão italianos aqui? É uma triste constatação. Não temos mais italianos jovens dispostos a assumir. Queremos mostrar para as pessoas que é possível fazer a renovação. Tem que pensar no futuro!

No cargo desde 2016, Antônio, 73 anos, inaugura uma nova e necessária fase na trajetória da instituição. Descendente de italianos de muita história, ele tem espaço de sobra no coração. De um lado, a pátria que acolheu sua família. De outro, suas origens bem preservadas.

– Nós queremos criar nos descendentes de italianos esse sentimento de pertencimento, para mostrar que eles têm raízes.

Raízes que foram bem cuidadas pelo seus pais. Matteo e Rosa, que também era de família italiana, mantinham as tradições e o jeito italiano de levar a vida. Na comida, nas festas, nas músicas, na seriedade e rigidez: a Itália sempre esteve presente na casa da grande família.

– Eu sou brasileiro como os outros, mas tenho uma história e não posso ignorar isso. Essa minha herança cultural me transforma no que eu sou.

Seu pai, Matteo, tanto sabia sobre a importância de cuidar da história que começou a escrever um diário de memórias em 1949, aos 53 anos. Para o pesar dos filhos, que guardam os registros como uma grande herança, ele não terminou a obra.

O que escreveu, porém, é suficiente para embasar a história que aqui buscamos resgatar.

“Não é uma obra literária que pretendo escrever. O que eu quero é deixar escrito para meus filhos a origem de onde veio o seu pai e de modo claro a descendência tanto paterna quanto materna” (trecho das memórias deixadas por Matteo)

 

Dante Alighieri Ribeirão Preto

A Primeira Guerra 

A primeira versão do documento, que hoje soma 39 páginas no Word, foi escrita por Matteo à mão, em um caderno. Começou em 1949, em um quarto de hotel em Uberlândia, disposto a registrar seus 53 anos de vida.

Entre muitos detalhes, foi revelando a formação da grande e simples família italiana desde seus bisavós. Contou o que sabia, através do que colheu com seus pais.

Seus filhos digitalizaram suas palavras, registro de toda uma época. Foi através dos escritos que eles puderam conhecer as memórias do pai na guerra.

– Ele não falava disso. Toda guerra é traumática. Ninguém volta são.

A família de Matteo vivia em Villa Estense, província de Pádova. De origem muito simples, trabalhando na lavoura, seus avós criaram os filhos com muitas dificuldades e seu pai, Albano, herdou a rotina amarga: perdeu a mãe muito criança e o pai aos 16 anos.

Os pais de Matteo tiveram 10 filhos, mas cinco morreram ainda muito pequenos, por doenças diversas. Ele tinha um irmão gêmeo, que faleceu aos nove meses de idade.

Ainda criança, aprendeu o ofício de sapateiro. Em seus registros, conta que andava oito quilômetros todos os dias para ir à cidade trabalhar, antes de ganhar uma bicicleta do pai.

A comida de todo dia era polenta: o único que tinha.

“Eles faziam a polenta com a semente da palha que se fabrica a vassoura. A vocês, queridos, deixo a imaginar que vida de amargura não foi para estes chefes de família. Mas todas essas misérias e este sofrimento não foram capazes de vencer a férrea vontade destes dois irmãos (seu pai e seu tio). Eles trabalharam e venceram.”

Quando foi chamado para a Primeira Guerra Mundial, entre 1915 e 1916, Matteo tinha 19 anos e já estava noivo de Elisa Munaro, que conheceu em sua cidade. Conta que integrou a Guardia di Finanza. Um corpo especial, exigia que os alistados soubessem ler e escrever, o que ele havia aprendido nos poucos anos em que pôde ir para a escola, frequentando apenas o primário.

Viu amigos serem mutilados e mortos, viveu – e sobreviveu – aos horrores da guerra. Passou dias andando sem parar, entre as derrocadas, em busca de amparo.

“O trem parou e o drama da realidade era presente. Foi um momento de pânico. Velhos, mulheres e crianças em desespero por ouvir o sibilar das balas das metralhadoras. Nós, soldados já acostumados ao perigo, não ligávamos muito. Um oficial que fazia parte do nosso grupo de fuga, dentro daquela miscelânea de soldados, pedia a nós para termos muita calma, não respondermos ao fogo inimigo, para poupar a vida dos civis”

Preso pelos alemães, teve que andar por 36 horas para chegar a uma cidade, pegar um trem e ser levado ao campo de concentração. Passou seis dias e seis noites neste vagão, que era usado para transportar animais.

Conta que durante essa caminhada sua mão congelou. Teve um problema que durou meses, se transformou em uma infecção e quase foi preciso amputar o braço. Antônio relembra que o pai ficou com dedos da mão imobilizados, como sequela desse episódio. Trabalhou anos como sapateiro ainda assim.

“A comida eram 200 gramas de pão por dia e abria-se o carro a cada 24 horas. Ali não havia privada, nem água, mas, como tudo tem o seu fim, também este suplício acabou e, se a memória não me falha, chegamos ao campo de concentração no dia 18 de novembro de 1917”

Matteo passou 25 meses sem ver sua família, sob comando dos alemães. Quando a guerra acabou, em 1918, ainda teve que provar para o governo italiano que nada tinha a ver com o comunismo, por causa de uma confusão ocorrida em um campo de concentração onde sequer esteve.

“Este foi um dia que nunca esquecerei. O capitão comandante do campo chamou os interpretes e comunicou-nos que a guerra tinha acabado e que nós éramos livres para ir aonde nós quiséssemos, mas logo advertiu que se nós ficássemos o campo se responsabilizaria por nossa sorte e, quem quisesse ir embora por conta própria, o que acontecesse era por risco próprio.”

Ele fala das cartas diárias que escrevia para os pais e a noiva. Da saudade. Da apreensão dos dias em que não pôde escrever. E, claro, da volta para casa.

“A quem ler deixo imaginar a alegria que invadiu o meu coração quando embarquei para rever, depois de 25 meses, a minha mãe e a minha noiva. O trem corria na noite fria do mês de janeiro. Era mais ou menos 8 horas da manhã quando cheguei na estação de Monselice, porque o trem não parava em Santa Leonor. De Monselice a minha casa eram mais ou menos 10 km conhecidos de estrada. Comecei a andar, procurando sempre encurtar o caminho. Quando cheguei era mais ou menos 10 horas da manhã. As crianças viram que chegava um soldado e correram a dar o aviso.” 

“Chorei sim. Chorei porque para mim era um sonho voltar a ver a minha mãe, minha família, a minha noiva, depois de ter visto a morte milhares de vezes, depois de tanto perigo, depois de tantos sofrimentos, finalmente terminava o meu calvário e chorei de alegria.” 

O encontro com a noiva é relembrado como cena de filme. E a fala inicial, de que não pretendia escrever um romance, nesse trecho se desfaz.

“Ela me vê e para no meio da sala, sem proferir uma palavra. Eu a olho e, como duas estátuas, ficamos firmes um defronte ao outro olhando sem saber o que dizer. Mas a senhora Ida interrompe a nossa emoção e com palavras maternais diz: “Abracem-se, beijem-se, isto eu admito em minha presença”. Foi um abraço e um beijo não de dois enamorados, mas de duas almas que profundamente se amavam. Oh! Como é belo depois de tanto tempo de separação forçada, depois de tanto sofrimento e perigo, depois que minha noiva verteu rios de lágrimas. Até que enfim, naquele momento tinha fim toda a apreensão e só nos esperava o dia de poder unir nossas almas ao mesmo destino de alegria ou de dor.”

 

Dante Alighieri Ribeirão Preto

Embarcando para o Brasil

A vinda para o Brasil foi permeada de muito sonho. Matteo conta em seus registros que receberam na Itália um senhor de Bonfim Paulista.

“Este senhor contava as grandezas desta terra, que aqui todos faziam fortuna e que a vida era muito fácil. Nós, iludidos com tanta fortuna, de comum acordo tomamos a decisão de vir para o Brasil”.

Antônio mostra, agora em 2020, a reprodução de uma propaganda veiculada na época, chamando os italianos a virem para o Brasil. A imagem faz parte do acervo da Dante Alighieri.

Iludida com essa ideia de prosperidade, a família Sartore começou a planejar a viagem.

Matteo e Elisa se casaram em 1920, quando ele encerrou os serviços militares, e passaram a viver com a família dele. Em 1923, com duas filhas pequenas, decidiram partir para o Brasil, na companhia da irmã dele, do cunhado e dos dois sobrinhos, também crianças.

Embarcaram no Vapor Formosa em 19 de dezembro de 1923 e chegaram ao Rio de Janeiro em 7 de janeiro de 1924.

Ele relata que não tiveram autorização para desembarcar no porto. Muitos passageiros morreram na travessia e havia a suspeita de sarampo. Suas filhas e sobrinhos também estavam com a suspeita da doença e a família ficou 15 dias internada para tratamento em um hospital.

Depois da internação, quando já estavam de alta, as meninas contraíram de fato a doença e a família passou por mais um período de apreensão, entre a viagem do Rio de Janeiro para Bonfim Paulista. Enfim chegaram. Enfim as crianças ficaram bem.

Passaram pouco tempo na fazenda, entretanto. O cunhado era pedreiro e Matteo sapateiro. Não se adaptaram ao trabalho no campo e logo perceberam que as condições não eram como as prometidas.

Em suas memórias, Matteo conta que os italianos tinham que contrair dívidas com o dono da fazenda, o que fazia com que trabalhassem muito e fossem obrigados a continuar na propriedade. Mesmo sem dívidas, ele teve dificuldades para deixar o local, sofrendo pressões do “patrão”.

Partiram para Ribeirão Preto e foram viver em uma casa alugada no antigo “Barracão”, que hoje é o bairro Ipiranga. Ali ele abriu uma sapataria, com dinheiro emprestado.

Com as contas muito apertadas, no entanto, pediu auxílio ao Consulado Italiano e, por volta de 1930, foi convidado para trabalhar na instituição, que na época funcionava no mesmo prédio da Sociedade Dante Alighieri.

Antônio conta que seu pai era uma espécie de zelador do local e passou a morar na Dante, no espaço onde havia o campo de bocha, a cantina, as atividades de lazer.

“Mas o destino é cruel”, Matteo escreve. Sua esposa Elisa ficou doente e faleceu por volta de 1931, aos 35 anos, deixando as duas filhas pequenas.

“Qual a minha dor a quem ler deixo imaginar. O enterro foi uma grande manifestação de afeto, amigos de todas as classes sociais e a acompanhei até a cova e antes que seu corpo fosse sepultado me inclinei e disse: ‘Adeus cara Elisa, que Deus te dê a paz eterna, porque a merece’”.

Dois anos depois, Matteo se casou com Rosa Brochetti, descendente de italianos que viviam na Vila Tibério. Passaram toda a vida juntos. A família cresceu, vivendo nos Campos Elíseos. Tiveram nove filhos, entre eles Antônio, o terceiro mais novo.

 

Dante Alighieri Ribeirão Preto

A Segunda Guerra

 A Sociedade Dante Alighieri foi fundada em 1903, com o nome de “Societá di Mutuo Soccorso e Beneficenza Pátria e Lavoro”, por iniciativa de um italiano, Girolamo Ippolito, e união de outros muitos. Em 1910, foi transformada em Dante Alighieri.

Resistiu às interferências da guerra e hoje continua vencendo os desafios para se manter atuante. São 180 associados e Antônio acredita que deveria ser mais.

– Cerca de 30% da população de Ribeirão Preto é descendente de italianos. São 200 mil pessoas! Estão faltando italianos aqui, não é?

A Segunda Guerra Mundial se fez presente para Matteo, mesmo vivendo no Brasil, com filhos nascidos aqui. Ele trabalhava no Consulado, junto à Sociedade Dante Alighieri, quando a guerra estourou, em 1939. As relações diplomáticas com o Brasil foram cortadas, o prédio onde funcionava a instituição foi confiscado e as atividades foram interrompidas.

Os bailes tão famosos pararam, o campo de bocha e a cantina que abrigavam as atividades “doppo lavoro” também deixaram de existir. Matteo e a esposa, com seis filhos, precisaram encontrar um novo trabalho.

Ele abriu um bar, na praça Santo Antônio, Campos Elíseos, mas logo percebeu que esse não era seu negócio. Se tornou, então, representante comercial, vendendo máquinas e acessórios para marcenaria.

Antônio acredita que o pai começou a escrever suas memórias em uma das muitas viagens de trabalho que fazia e que chegavam a durar 25 dias.

Foi também em uma dessas viagens que ele teve um infarto, em 1953, aos 57 anos.  Impossibilitado de trabalhar, coube então aos filhos cuidarem da casa.

 

Dante Alighieri Ribeirão Preto

A herança de Antônio

Antônio herdou a força de trabalho do pai. Atuou como representante comercial a vida toda. Começou a trabalhar aos 14 anos, por volta de 1960. Matteo deu o ultimato: “Esse menino precisa aprender a fazer alguma coisa!”. Arrumou-lhe um emprego em uma loja de roupas infantis no Centro de Ribeirão, no período do contraturno escolar.

Depois de um ano, ele passou a trabalhar em outra empresa, de produtos veterinários, onde se tornou vendedor.

Como representante comercial atuou com tudo quanto é tipo de produtos: agrícolas, fogão, máquinas de costura.

– A minha geração pegou as duas pontas: cuidou dos pais e dos filhos.

Se casou e teve duas filhas gêmeas, repetindo a hereditariedade de seu pai. Hoje, é avô coruja de duas netas e avisa que a terceira está a caminho.

Conta que, após o falecimento de seu pai, em 1965, a família se afastou um pouco da Dante Aligheri. A sociedade foi reaberta e pôde retomar o seu prédio em meados dos anos 50. Os bailes e atividades retornaram! Matteo foi tesoureiro da instituição até 1964, um ano antes de falecer.

Foi sua filha, Marilena Sartore, quem se reaproximou da sociedade primeiro, nos anos 90. Chegou pela vontade de aprender italiano e foi ficando, revendo as raízes. Logo se associou e foi convidada para participar da diretoria.

Antônio, então, passou a ajudar a irmã a organizar eventos, cuidar de uma coisa aqui, outra acolá. No começo dos anos 2000, a sociedade começou a intensificar suas comemorações: festa da Befana, Semana da Cultura Italiana, e os irmãos Sartore sempre presentes.

Por volta de 2005/2006, Antônio também se associou. Ele está presente desde a organização do primeiro Festitália, em 2005, e participou do crescimento do evento, em 2010. Hoje, o evento que promove a cultura italiana recebe cerca de 20 mil pessoas anualmente, no Morro do São Bento. É a maior festa promovida pela Dante.

Em 2016, Antônio foi eleito presidente da instituição, com o apoio do presidente de duas décadas Mário.

– Quanto tempo mais eu aguento? Nós queremos ver gente nova aqui! Novas ideias!

Por isso, o investimento nos eventos que promovem a cultura e a abertura da diretoria para os descendentes. Para Antônio, a importância da Dante está na preservação da memória.

Memória que Antônio conhece e guarda.

– É manter vivo o espírito de italianeidade.

Segue fazendo a sua parte. Mostra os documentos e fotos, registros e mais registros, e diz:

– Nossa vontade é transformar tudo isso em um museu. Guardar a história.

Ali, preservando a cultura italiana em suas muitas formas, Antônio vai construindo o amanhã. Quer que suas netas também possam conhecer a história dos antepassados e preservar as tradições que eles trouxeram nos vapores pelo oceano. Quer que a história de Matteo, Elisa, Rosa continue sendo contada.

– Eu gosto de conhecer o passado para entender o presente e imaginar o futuro. Nós somos uma soma do nosso passado com o nosso presente.

Na parede, a foto emoldurada do pai relembra que a história de hoje começou bem antes, com muita força italiana.

 

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1 Comentário

  1. Domingos Merrichelli

    Seria de bom alvitre levantar a história do Sociedade de Socorros Mútuos. Que é mais antiga pois foi fundado por imigrantes italianos que chegaram no Final do Século XIX . Meus antepassados foram fundadores e chamava Dopo Lavoro !

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