Esta história faz parte do projeto “Patrimônio em Memórias” realizado com apoio do Proac LAB, programa da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo.
Texto e fotos: Daniela Penha
Ilustração de Luciano Filho, exclusivamente para o projeto “Patrimônio em Memórias”
A prosa corre solta. Não fosse a chamada de vídeo, exigência daqueles períodos pandêmicos, deixaríamos a tarde ir embora entre conversas e cafés.
Vera e Terezinha guardam uma coleção de histórias que vão puxando da memória em detalhes. Causos que viveram juntas e outros que vivenciaram separadas, cada qual na sua trajetória. É papo em dobro!
Quando falam dos tempos de escola, as frases vibram de empolgação. Como essa, dita por Terezinha:
– A escola era nossa primeira paixão, a descoberta do mundo. Era linda. A gente tinha orgulho de estudar lá.
As irmãs Vera Lúcia Pantoni da Freiria e Maria Terezinha Pantoni de Oliveira guardam com afeto as lembranças da Escola Estadual Sinhá Junqueira, onde estudaram. Compartilham o mesmo carinho com a instituição, que é uma das mais tradicionais de Ribeirão Preto, tombada como patrimônio histórico da cidade.
A família se constituiu na Vila Tibério, um dos bairros mais tradicionais da cidade, onde está a escola Sinhá, criada para acolher os operários que deram forma à região.
Pequeninas, a expectativa das meninas era de se tornarem alunas da instituição. Vera, 76 anos, começou primeiro. A irmã, cinco anos mais nova, precisou esperar um pouquinho. Gostou tanto, porém, que quis voltar.
– No Sinhá eu descobri minha vocação. Sou professora.
Terezinha pôde retornar à escola em papéis invertidos, para dar aulas, na década de 90 .
– Eu chorei ao entrar na escola que tanto amava. Tenho paixão por cada árvore, cada grama. Ali, passou um filme da minha infância, relembrei cada professor. Tudo era lembrança: as escadas, as brincadeiras no pátio.
Nas memórias das irmãs, o patrimônio se eterniza em afeto. É marca, história.
– Quanto mais se vive, mais histórias, né? Fica bem guardadinho…
Nas palavras de Vera.
Família da Vila
Vera e Terezinha contam com pesar a história que as antecede. A mãe, Durvalina Roselli, só pôde frequentar a escola por alguns meses.
– Havia essa ignorância de achar que mulher não precisa saber muito. Sabendo o nome já bastava…
A professora chegou a ir na casa da família, insistindo que a menina continuasse nas aulas, mas não houve conversa. A mãe, então, se nutriu dos ensinamentos que a vida traz, como diz Vera.
– Ela era além do tempo dela.
Ajudava os vizinhos, costurava como ninguém e priorizou a escola para os três filhos que teve.
O pai era marceneiro. Começou no quintal de casa, ali na Vila Tibério, a loja que somou 50 anos de história: Móveis Pantoni.
– Em Ribeirão, eram poucas as casas que não tinham uma porta feita por eles.
Vera conta, toda orgulhosa.
Ela relembra que começou a estudar por volta dos quatro, cinco anos.
– A professora passava de casa em casa buscando as crianças. A escola era um salão, na rua Aurora. Ia aquela fila de crianças…
Aos seis anos, ela entrou na Sinhá.
Terezinha chegou quatro anos depois.
– Coisa boa precisa ser lembrada. Essa escola guarda a memória do nosso lugar, de onde a gente veio.
É Vera quem diz.
Causos e contos
Naquele tempo, elas recordam, as ruas da Vila eram feitas de terra e trilhos, para o trem da Mogiana passar.
As duas listam de cabeça, em segundos, os nomes das primeiras professoras.
– Não sei como não esquecemos!
Se surpreendem com memórias tão límpidas.
Entre os causos na escola, tem aventura, terror e romance.
Dizia a lenda que no Sinhá havia um porão. O jardineiro prendia no escuro as crianças peraltas, como conta Terezinha.
– A gente morria de medo de ir para o porão. Mas eu nunca soube de alguém que tenha ido para lá!
Hoje, o medo rende boas risadas!
Antes de entrar na sala de aula, os alunos formavam uma fila no pátio e cantavam o hino nacional. Aí, subiam a grande escada de madeira que dava para as salas. Em silêncio? Terezinha é quem conta.
– A professora pedia para não fazer barulho. Aí os danadinhos subiam no trupé! O diretor gritava: ‘Silêncio!’. Chegava na sala e a professora dava o maior esculacho!
Vera pegou as carteiras com caneta tinteiro. Terezinha já não.
– A gente molhava a pena no tinteiro e escrevia no caderno de caligrafia. Vez em quando a tinta derramava e fazia um estrago! Essas carteiras viraram relíquias!
A professora Madalena deixou para Vera o carinho em recordação.
– Eu tinha sete anos. No último dia de aula, ela me deu um estojinho de madeira pequenininho e colocou um bilhetinho: ‘Minha queridinha que eu amo, fique com Deus!’.
Já no terceiro ano, a professora Simone quase fez parar o coração da mãe.
– Ela apareceu em casa falando para a minha mãe que iria se mudar para São Paulo e queria me levar para a escola de artes dramáticas. Tá doida? Levar minha filha?
Ninguém imaginava outra resposta!
Vera já brigou e celebrou por comida. Puxou os cabelos da menina que comeu o recheio do seu lanchinho. E se animou quando a amiga apareceu comprando picolés para a turma toda, na sorveteria da esquina.
– Era um real por picolé. Ela apareceu com 50 reais! Depois soubemos que a menina tinha pêgo o dinheiro em casa! A meninada nunca se divertiu tanto como naquele dia!
As lembranças são tantas que não cabem em um só conto…
As irmãs deixaram o Sinhá para cursar o ginasial. Mas não encerraram a história aí. Os filhos delas também passaram pela escola, compartilhando entre as gerações o afeto que perdura e se eterniza.
– A gente precisa preservar e contar para nossos filhos a importância dessa escola, que nos despertou para a vida.
Nas palavras de Terezinha.
Saudade é afeto
As trajetórias foram seguindo, cada qual no seu caminho.
Vera começou a trabalhar na fábrica do pai ainda criança.
– Eu andava a pé pela cidade. Só tinha a rua Luiz da Cunha que ia para o Centro. A linha do trem passava ali. Se a porteira estivesse fechada, tinha que ficar esperando passar.
Cursou contabilidade e inglês, trabalhou 10 anos na Móveis Pantoni. Depois do casamento, se dedicou aos dois filhos e ao marido. É assim ainda hoje.
Terezinha se formou professora. Passou um tempo fora das salas de aula para ajudar na empresa de móveis do pai, mas retomou a docência quando a fábrica fechou, no início da década de 90. E segue ainda hoje.
– É a minha paixão! Eu poderia estar em casa já, mas não quis parar! Tenho 71 anos e estou lá. Tenho muito orgulho de ser professora.
As duas receberam o convite para falar dos tempos de Sinhá com empolgação. No grupo da família, muitas lembranças compartilhadas.
– É uma referência. E a gente precisa preservar!
Nas palavras de Terezinha, que a irmã complementa:
– É muito importante navegar nessas lembranças, deixar aflorar tantas coisas que passam despercebidas…
É preciso guardar o afeto, preservar as memórias: elas bem sabem!
História do patrimônio
A Vila Tibério se consolidou como um bairro operário. Com a expansão econômica da cidade, a ferrovia e a instalação da fábrica da Antártica, o bairro abrigava centenas de trabalhadores. Daí a necessidade de uma escola que acolhesse essa população.
A Escola Estadual Sinhá Junqueira foi construída em 1919, durante a Primeira República, época marcada por políticas públicas de valorização do ensino primário, com a formação de professores e professoras para a docência.
O local onde se construiu a escola era conhecido como “Chácara Veridiana” ou “Chácara Martinico”, de acordo com informações do Jornal da Vila (https://www.jornaldavilatiberio.com.br/principal1/417-cem-anos-da-escola-sinha-junqueira).
Inicialmente, a escola foi chamada de 3º Grupo Escolar de Ribeirão Preto. Em 1954, passou a chamar-se Grupo Escolar “D. Sinhá Junqueira”.
O tombamento do edifício como patrimônio histórico ocorreu em 2011, conforme registro do Condephaat.
Conheça mais sobre a escola:
http://condephaat.sp.gov.br/benstombados/e-e-dona-sinha-junqueira/
Mais histórias de afeto com o patrimônio:
Muita emoção revivida em cada frase…..Coisas que nuca se esquece….Orgulho imenso de ter participado deste projeto. PARABENS A TODOS QUE NOS PERMITIRAM RELEMBRAR UMA PARTE IMPORTANTE DE NOSSA VIDA, falando da escola que foi a base de nossa vida. Parabéns Daniela que tão bem retratou nossas conversas!
Adoro ler sobre essas memórias. Sou professora, filha de professores. Nasci em um ambiente de educação, onde até os amigos dos meus pais eram educadores. Sempre me identifiquei muito com livros, leitura e material escolar e minha memória viaja qdo retorno essa época.
Eu estudei no Sinhá Junqueira década de 60
Minha mãe TB foi professora nessa escola Arminda. Depois meus filhos TB estudaram.ai. escola maravilhosa
Hoje sou professora
Foi muita emoção participar desta história tão bem contada pela jornalista e amiga Daniela Penha. Muitas lágrimas ao relembrar meus tempos de criança. Consegui me ver vestidinha com o uniforme verdinho e boné da escola Sinha…muito gratificante saber que os amigos da Vila Tibério também vão se emocionar com o texto. Obrigada!!
Que lindo saber de tudo isso. A escola tem história para meus pais também!