Leitura que transforma: Carlos passou seis anos preso, 12 anos no crime e hoje é aluno de Direito

14 setembro 2017 | Gente que inspira

Carlos acredita que leu mais de 200 livros em cinco anos. Na lista estão Maquiavel, René Descartes, Sun Tzu, Thomas Hobbes.

O ambiente de leitura era feito de muitas grades e pouco sossego.

Lendo, porém, ele se sentia livre.

Carlos Antônio Nogueira Andrade passou seis anos preso para encontrar a liberdade.

O roubo abriu as portas do crime e o tráfico encontrou espaço para ficar.

Ele chegou a comandar um grande ponto de drogas do bairro Heitor Rigon, em Ribeirão Preto. Passou 12 anos no crime.

– Eu não mudei por ninguém. Eu mudei por mim. Quando você muda pelos outros, você pode se decepcionar.

Na cadeia, ele redescobriu a leitura e, com ela, a vontade de estudar.

Terminou o Ensino Médio e começou uma faculdade. Há um ano e meio, deixou as celas.

Conseguiu bolsa e está cursando Direito.

Também montou o próprio negócio, comprou um apartamento e traçou o futuro.

Quer fazer pós-graduação, ter o próprio escritório e, daqui alguns anos, ser professor de faculdade.

– Não é que eu estou confiante. Eu vou conseguir. Não tem essa! A minha maior realização vai ser fazer valer o direito das pessoas que estão próximas a mim.

Carlos ficou seis anos preso, hoje é aluno de Direito - História do Dia

O crime entrou pela porta da festa de aniversário.

Carlos estava completando 15 anos e não tinha dinheiro para comemorar.

Um amigo “deu a letra”: “Vamos ali que dá para cometer um assalto numa boa! A gente consegue o dinheiro”.

Carlos e os três irmãos foram criados pela mãe depois que o pai foi embora de casa e, por anos, esteve ausente.

Desde criança, ele entregava salgados para a vizinha e olhava carros na rua.

Festa de aniversário era luxo distante.

Mas, naquele ano, não foi.

– A gente comprou carne, cerveja, chamou os amigos. Na minha cabeça de adolescente, era fruto do meu esforço.

O medo de roubar pela primeira vez o deixou sem comer e assustado por dias ao primeiro sinal da polícia.

– Mas a realização posterior superou o medo. Me sentia “o cara”. Foi a primeira festa que eu fiz na vida. Estava realizado.

Conseguiu R$ 300 assaltando um comércio. O crime passou a ser visto como a melhor alternativa.

Logo depois desse primeiro roubo, Carlos arrumou emprego como chapeiro em uma lanchonete. Ganhava R$ 145 ao mês para trabalhar das 10h30 às 13h30.

Antes de ir para o trabalho ou no final tarde, colocava a arma dentro da calça e saía para roubar. Voltava para casa de bicicleta, pegando rabeira em ônibus.

Depois de um tempo, um amigo o ensinou a fazer furtos, que diminuíam as punições caso fossem pegos pela polícia.

Com o dinheiro do trabalho somado ao dos crimes ajudava em casa e comprava as coisas que sempre sonhou ter: tênis, roupa, o título do clube.

Dizia para a mãe que eram empréstimos de amigos, produtos de promoção. Conseguiu encontrar desculpas até a primeira – de muitas – detenção.

Era detido pela polícia, levado para a delegacia e liberado.

A mãe não aceitava a conduta. E Carlos foi se fechando em um mundo próprio.

 


Quando completou 18 anos, Carlos diz que decidiu parar com o crime.

– Os amigos avisavam que, depois dos 18, era cadeia. E dava medo.

Começou a trabalhar de pintor e garante que trabalhava certinho.

Ia ter uma festa grande em Ribeirão e todos os amigos iam.

Carlos decidiu que, assim que o pagamento daquela semana saísse, iria comprar o ingresso. Bem naquela semana, o patrão não pagou.

– Eu senti muita raiva.

Voltou a furtar e, furtando, começou a vender drogas.

Arrumou um sócio e fizeram o “negócio” crescer.

Como precisava manter um bom estoque de drogas, voltou a roubar. E não demorou a ser preso de novo, roubando uma concessionária de veículos.

Ficou um ano e meio atrás das grades. E voltou ainda mais determinado a “crescer no crime”.

Em regime semi-aberto, saía para trabalhar e, em uma tarde, não voltou para a prisão.

– A cadeia serviu para fazer contatos no crime. Conheci um cara que produzia cocaína e passei a comprar dele. Se quiser, o preso canaliza o foco no crime e sai pior.

Saiu pior.

Expandiu o ponto de drogas e passou a fazer assaltos que envolviam R$ 10, R$ 20 mil. E a comandar um dos principais pontos de tráfico do bairro.

Tinha, mais que dinheiro, influência e a ilusão do poder.

Em uma noite de chuva, guardou a droga que estava escondida ao relento dentro de casa, “para não perder mercadoria”.

A polícia fez uma batida e Carlos, que já tinha 21 anos, foi preso por tráfico e pelos crimes de outrora.

– O crime é uma ilusão concreta. Se você está no crime, vai ter todas as regalias do crime. Mas aquilo vai chegar ao fim.

Carlos ficou seis anos preso, hoje é aluno de Direito - História do Dia                Nos primeiros meses de cadeia, na Penitenciária de Serra Azul, Carlos continuou a traficar.

Com o nome feito fora, diz que conseguia colocar droga dentro do presídio e vender para os presos.

– A necessidade de mudar foi vindo com a realidade. Eu achava que iria sair logo da cadeia, mas eu não saía. Comecei a refletir: que vida eu tô levando? E comecei a ver que eu estava errado…

A leitura era a forma que encontrava para passar o tempo e se sentir livre. E foi o caminho para voltar a estudar.

– O livro te tira dali. Sua mente voa.

Cita o quanto aprendeu com “O Príncipe”, de Maquiável, o quanto se inspirou com Augusto Cury e a luta que travou com o crime lendo “A arte da guerra”.

 – O livro me fez ver que o meu inimigo era o crime e eu iria me libertar.

Carlos terminou o Ensino Médio, prestou Enem, passou na faculdade de Pedagogia e começou a estudar e a atuar como monitor dos clubes de leitura do presídio.

Conquistou a pena em semi-aberto e foi transferido para o Centro de Progressão Penitenciária de Jardinópolis. Perdeu a bolsa em Pedagogia, mas continuou estudando, com um trabalho na biblioteca e monitorias no PET.

Além do conhecimento, as monitorias eram remuneradas e Carlos conseguiu guardar R$ 1,5 mil, para recomeçar a vida em liberdade.

Deixou a cadeia em setembro de 2015, voltou a morar com a mãe, deu entrada em uma moto e começou a trabalhar – duro – como motoboy.

Diz que, em menos de um ano, já tinha conseguido comprar o mototáxi de um amigo.

Vendeu na metade de 2016, quando conseguiu a bolsa para cursar Direito e decidiu que precisava de tempo para estudar.

Hoje, trabalha fazendo entregas com sua própria moto. E não deixa as notas no curso caírem.

– Eu nunca faltei da aula!

Carlos ficou seis anos preso, hoje é aluno de Direito - História do DiaPara Carlos não é questão de sonho. É questão de foco.

– O caminho está traçado. É só uma questão de tempo.

Foi chamado para dar uma palestra no mesmo presídio de Serra Azul, onde cumpriu a maior parte da pena.

– Eu fui porque eles disseram que eu poderia falar a verdade. A verdade é que o traficante é um empreendedor. Ele precisa canalizar esse esforço intelectual para outras coisas. Mas é preciso que se tenha oportunidade. Oportunidade de fazer a sua oportunidade.

Para Carlos, o Estado é falho tanto em punir quanto em educar.

– Ressocialização é mais que prisão. O suporte que o Estado oferece para o preso se ressocializar é mínimo. Eu só consegui porque houve muito esforço da minha parte. Não é todo mundo que consegue.

O Direito é, assim, a sua forma de fazer justiça.

– Eu fui criado com muita injustiça. Quem conhece as leis usa disso para impedir um número maior de pessoas de alcançar seus direitos. O advogado é o defensor dessas pessoas que não conhecem seus direitos.

Não são poucas as pessoas que olham torto quando sabem de onde Carlos veio.

– Eu penso o seguinte: eu mudei. Se você não acredita, o problema é seu. Depois, lá na frente, você vai ver que é verdade.

Para ele, devolver uma carteira cheia de dinheiro não é grande feito. Assim como sua história não deveria ter nada de anormal.

– É normal, entende? Deveria ser normal. Eu estou trabalhando, estudando. Não deveria ser uma surpresa.

E se depara, todos os dias, com uma sociedade onde é a grande exceção.

– A sociedade não está acostumada a ver a mudança.

Hoje, se sente feliz. E extrapola a felicidade num sorrisão largo, que ocupa todo o rosto.

 – Me sinto realizado. Dobro o joelho a Deus para agradecer. Não tenho coragem de pedir nada.

Foi embora em sua moto, porque naquela tarde de sábado ainda tinha muita entrega a fazer. E, principalmente, muito livro a estudar.

 

Dados

A SAP (Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo) informou que, desde 2013, oferece ensino por meio de escolas vinculadas, onde os presos recebem aula de professores da rede pública de ensino dentro dos próprios presídios. A Lei de Execução Penal, artigo 126 parágrafo 1, prevê que a cada 12 horas de frequência escolar (ensino fundamental, médio, profissionalizante, superior ou de requalificação profissional) o detento subtraia um dia de sua pena.

A população carcerária do estado de São Paulo, de acordo com a SAP, é de 222.564 presos. Desse total, 33,9 mil presos estudam, o que representa 15,2%. As atividades oferecidas são: ensino formal, atividades estudantis complementares, cursos profissionalizantes e  Programa de Educação para o Trabalho (PET).

As duas unidades prisionais de Serra Azul abrigam hoje 3.558 presos, o dobro da capacidade das instituições, que é de até 1.712 presos de acordo com dados da SAP. Do total de presos, 341 estudam, o que representa 19,9%.

 

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