Madalena, 81 anos, costura colchas para idosos com projeto “Retalhos de Amor”

27 maio 2019 | Gente que inspira

O quintal espaçoso é preenchido por máquinas de costura e retalhos de pano.

Ali, Madalena e outras quatro voluntárias ocupam as tardes com solidariedade e bom papo. Do encontro, saem colchas, toalhas, camisolas, pijamas que são doados para asilos de Ribeirão Preto, região e até cidades mais distantes.

– Você sabe? Já mandamos até para Goiás! Trabalha-se muito!

Quem conta é Madalena Tófano Garcia, que criou o grupo Retalhos de Amor e empresta sua casa para que ele exista.

Tudo é feito com doações e muita vontade. As voluntárias organizam bazares e vendem o próprio artesanato que fazem para comprar os aviamentos e tecidos que faltam. Não têm ideia de quantas peças já foram doadas em dois anos de formalização do projeto. De maneira informal, ele começou muitas décadas atrás, pelas mãos de Madalena.

O projeto é só uma parte de sua trajetória, voltada para o bem.

– Esse trabalho social tem 50 anos. Mas antes, tem a base. Venho de uma família que sempre trabalhou para o próximo. Minha mãe tinha mais de 100 afilhados.

Sua história é feita de idas, vindas, descidas, subidas e muitos capítulos. Com falar rápido, ela vai contando uma parte, depois outra, volta para a primeira.  Uma colcha de retalhos feita de memória, que as vezes se embaralha um pouco entre tanto a contar.

Diz que trabalhou como professora, doceira, vendedora, teve sua própria confecção, gosta de negociar e ainda hoje, aos 81 anos, administra seus imóveis. Não tem parada. Se um caminho não deu certo, inverte a rota sem demora.

– É muita história! Quero ver você organizar tudo isso!

Conhece bem as dificuldades de se combinar retalhos de múltiplas cores para formar um todo de harmonia. E faz cada peça nos mínimos detalhes, com rigor.

– E se fosse para mim? Não iria querer ganhar uma coisa bonita? É o que digo. Vamos fazer bem feito! E se fosse para vocês?

Diz, enquanto pede para uma das companheiras desmanchar a costura de uma colcha doada.

– Vamos aproveitar os retalhos. Mas precisa fazer de novo! Olha que coisa mal feita!

Madalena Projeto Retalhos do Amor

Madalena cresceu e fincou raízes na Vila Tibério, Ribeirão Preto. Até morou em outros bairros, cidades e estados, mas voltou para seu lugar de origem.

As muitas histórias que ouviu sobre sua família não cabem em uma só colcha.

Conta que seus avós vieram da Itália, “ganhar a América”, em suas palavras, e trabalharam na lavoura de café. Um “casamento arranjado” uniu seus pais.

– Naquele tempo era assim. Minha mãe casou-se sem gostar do meu pai. E deu certo, porque tinha que dar. Não era como hoje que a mulher tem liberdade, escolha.

Seu pai, sem saber escrever ou ler, se tornou construtor.

– Ele construiu a chaminé da usina da pedra. Sabe como fez? Virou um copo de cabeça para baixo e teve a ideia.

Caçula de três irmãos, ela carrega uma culpa pela história que escutou sobre seu nascer. “Naquele tempo não tinha médico” e sua mãe teve problemas no parto. Um farmacêutico, chamado para acudir, sentou em cima de sua barriga, para tentar fazer a bebê “descer”.

– Abriu toda a minha mãe. Ela ficou oito dias enrolada na folha de bananeira, porque perdeu muito sangue, ficou toda roxa. Sobreviveu, mas perdeu a saúde. Quando eu faço essa reflexão… para que eu nascesse, minha mãe quase morreu. A gente sofre…

Se emociona. Os olhos enchem de água. Mas segue em frente.

Na simplicidade do sítio, seu berço foi feito de caixão de cebolas. E mais memórias em retalhos vão sendo costuradas:

– Eles perceberam que eu tinha sumido. As crianças me tiraram do berço e me levaram para debaixo do pé de mangueira, brincando comigo como se eu fosse boneca. E assim foi nossa vida…

Com o trabalho na construção, o pai somou patrimônio e a mesa da família era sempre farta. Tanto que havia o suficiente para dividir.

– Na casa de meus pais, comiam 20, 30 crianças. Minha mãe era madrinhas de muitas delas.

A espiritualidade e a fé também são presentes em sua trajetória. E começam em suas memórias de infância.

– Um dia, o pai chegou para almoçar e estava com pressa, mas a mãe não tinha feito o arroz ainda. Tinha só uma colher. Ele ficou bravo. Quando ela foi pegar a panela no fogão, estava cheia. Meu pai viu aquilo e disse: ‘Maria, a partir de hoje você pode dar comida para quem quiser’.

Assim fez Maria. E assim procurou fazer Madalena.

Se formou como professora, no magistério. Conheceu seu marido no banco e se casou aos 19 anos. Tiveram quatro filhos, nascidos entre as mudanças.

  – Eu já me mudei 18 vezes! Muda para lá, para cá!

Trabalhou em sala de aula por pouco tempo. Conta que o marido foi transferido e moraram por cerca de 10 anos em Salvador, entre 1967 e 1977.

– Lá eu era madame. Não fazia nada. Tinha babá, cozinheira.

Quando o marido perdeu o emprego e tiveram que voltar para Ribeirão, não demorou a entender que o contexto exigia mudança.

– Conforme a vida da gente vai andando, vão surgindo problemas. Você tem que resolvê-los. O que não pode é ficar de braços cruzados. Eu sempre fui de resolver: vamos, vamos! É isso que faz o ser humano crescer!

Passou a fazer doces finos, bolos, balas de coco.

– Como eu aprendi? Do nada!

Conta que trabalhou por 15 anos no segmento, com encomendas que não paravam. A saúde começou a pedir arrego.

– Fiquei doente. Trabalhava muito, não comia.

Decidiu trocar de negócio. Passou a vender roupas. Primeiro, de casa em casa.

– Eu vendia mais do que nas lojas. Mas, para vender, você tem que saber política, receita de doce, benzer as pessoas! Eu saía no almoço e voltada só às 21h. Era esperta para as vendas!

Quis ir além. Montou sua própria confecção e teve lojas em shoppings da cidade.

– Nossa! Como eu trabalhei nessa vida!

Em 1990, com o confisco nas poupanças promovido pelo governo Collor, viu seu negócio quebrar.

– Foi um desastre! Vendemos o que pudemos para saldar as dívidas.

Relata que comprou uma chácara onde viveu com o marido por 15 anos, depois voltou para a Vila Tibério. Nesse meio tempo, entretanto, encontrou energia para passar um ano em Manaus, auxiliando o filho na montagem de uma empresa. E não parou de trabalhar. Administra seus imóveis de aluguel.

– Eu gosto de negociar!

Madalena Projeto Retalhos do Amor

A rotina foi feita de trabalho. Mas Madalena encontrava uma forma de dividir o expediente com o serviço voluntário. Em Salvador, fazia doações a famílias que precisavam. Em Manaus, a mesma rotina. Diz que, mesmo quando trabalhava com doces, com dia a dia intenso, chegava em casa e ia costurar roupinhas para bebês.

Conta que começou com a costura por volta de 1979. Fazia enxovais completos e levava para famílias.

O trabalho social, ela explica, vem atrelado ao trabalho espiritual. Um abastece o outro. Madalena segue a doutrina espírita e faz de sua casa um espaço de encontros, orações, acolhimento.

– Antes, era a hora que fosse. As pessoas batiam na porta, às vezes na hora do almoço. Não deixo de atender.

Recentemente, organizou o atendimento. A cada 15 dias, realiza encontros e diz que o grupo já soma 80 pessoas. Há dois anos, também decidiu formalizar as doações. Batizou o grupo de Retalhos de Amor, convidou as voluntárias e ampliaram o trabalho que já ocorria.

– O que me move é ver o sofrimento do outro. Tudo o que você faz de bem para o outro, é beneficiado também.

As voluntárias que o digam! As tardes de costura são terapia, como diz Maria Elisa, 78 anos:

– É muito divertido! Sai assunto de tudo quando é jeito. Falamos desde política até mal do vizinho!

Cidinha, 67, é a mais nova da turma:

– Aqui, a gente conversa, tem sempre um bolinho!

Madalena faz questão de organizar a mesa de gostosuras e o café da tarde. Afirma que, apesar de criar e coordenar o grupo, não é “líder” de nada.

Madalena Projeto Retalhos do Amor

Todos os dias, acorda por volta das 6h e vai dormir quando já é meia noite. “Resolve os negócios”, como diz. Cuida da casa, onde vive sozinha, após ficar viúva. Fala que escolheu assim, e os filhos estão sempre por perto. Faz Pilates uma vez por semana, gosta de ler.

– Sabe o que eu gosto? Da vida, de viver! Ver televisão o dia inteiro? Não!

As dores nas costas vão ficando em segundo plano.

– Se eu for ligar muito para a dor, não costuro.

A única preocupação é com a manutenção do projeto Retalhos de Amor. Conta do dia em que estavam sem um só retalho e rezou para Santo Antônio. A mesma fé com que relembra a panela cheia da mãe.

– Mandaram entregar seis sacos de retalhos! Aquele dia eu chorei! A mão de Deus é muito poderosa! Santo Antônio me ouviu.

Se não tem retalhos, não tem o bem se renovando em costuras.

Como tem sido até aqui, já está planejando novas mudanças. Quer comprar um terreno, construir um espaço para oferecer pão e leite às crianças.

 – Cada dia que surge é uma oportunidade para renovarmos, aprendermos, melhorarmos sempre. Eu não mereço o tanto que eu tenho, você acredita?

O segredo para viver bem?

– Não guardar ódio no coração. Perdoar as pessoas, mas de verdade. Ser honesto, respeitar o próximo.

E fazer o bem, claro. No meio da entrevista, a campainha toca. É um senhor, buscando acolhimento, orações. Madalena para tudo para atendê-lo.

– Quem não serve para servir, não serve para viver.

Encerra mais uma tarde de amor em retalhos.

 

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