Maitê enfrenta doença rara e deixa lei como legado para Ribeirão

10 fevereiro 2020 | Histórias do Proac 2019/2020

Texto e fotos: Alice de Carvalho Leal

 

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Durante quase uma hora e meia de conversa, dois grandes olhos azuis observavam tudo atentamente. Vez ou outra, interagia com sons, como se quisesse colaborar com a troca de informações. Com esse jeitinho, a menina, de apenas três anos, faz questão de deixar claro a que veio: participar!

Maitê, nome originado do idioma basco, carrega significados fortes: amada, cativante, encantadora. Características que parecem traduzir a personalidade da menina.

Luiz Eugênio e Renata Scarpino já tinham uma filha, Liz, e engravidaram pensando em dar a ela um irmãozinho. Conquista em dose dupla: logo descobriram que gêmeos estavam a caminho.

A gravidez correu tranquila. Somente nos últimos meses, Renata foi orientada a repousar. Luca e Maitê chegaram ao mundo em 2017, com um pouco de turbulência.

– A Maitê veio com uma missão, engravidar de gêmeos não foi por acaso.

É a mãe quem diz.

O menino nasceu primeiro e demorou a reagir. Três minutos depois, Maitê, que precisou ser encaminhada à UTI neonatal por pesar menos de dois quilos. Começaram aí as suspeitas de que havia algo errado. Ao colocá-la para mamar, a mãe percebia que não havia sucção.

– Ela não tinha o instinto de sugar de jeito nenhum. Eu tinha que sugar por ela, fazia todo o movimento para ela, massageava a bochecha e nada.

Foram 15 dias até ser liberada para casa. Enquanto o irmão crescia normalmente, Maitê enfrentava dificuldades até mesmo para se mexer. Começou a frequentar fonoaudiólogos e terapeutas. Perceberam, então, que ela não conseguia erguer os braços. Ao recorrer à Medicina, a justificativa era sempre a prematuridade.

Aos seis meses, ainda sem sustentar o pescoço ou conseguir sentar, os irmãos tiveram bronquiolite. Luca se recuperou tranquilamente em casa, enquanto Maitê precisou ser internada novamente na UTI.

– Foi aí que os médicos alertaram para que fizéssemos uma investigação neurológica mais profunda. Eles falavam: mãe, isso não está normal. E no fundo eu sabia que não era mesmo.

Renata abriu mão da profissão de professora. Dos sete meses a um ano e meio, foram inúmeras visitas a médicos de Ribeirão Preto e da capital paulista, além de exames seguidos de exames. O pai chegou a ser alertado:

– Um dos médicos me disse: é possível que nunca consigamos fechar um diagnóstico preciso. E ficava a dúvida.

Até que chegou o dia em que Maitê passou a não demonstrar mais emoções. Não chorava, não sorria, nem mesmo sentia dores. O desespero fez com que a mãe corresse novamente ao consultório médico. Veio o baque.

– Enquanto eu explicava o que estava acontecendo, o médico me interrompeu e disse que aparentava ser um caso degenerativo.

Lei Maitê Ribeirão Preto

Apesar das tentativas de se acalmar, o coração de mãe sentia que era grave.

Em agosto de 2018, o resultado de um exame trouxe o diagnóstico conclusivo: Síndrome de Leigh, uma doença neurológica degenerativa, muitas vezes genética, causada por uma deficiência mitocondrial. Os pais foram informados de que a doença não tem cura, a expectativa de vida é de dois anos e mais da metade das crianças não alcançam esse índice.

– Expectativa de dois anos e a Maitê tinha um ano e meio. Então, você tem duas opções: ou morre ali com o diagnóstico ou sobrevive. E nós decidimos que íamos dar a volta por cima e sobreviver. Essa foi nossa escolha

Renata acredita que já vinha sendo preparada para enfrentar o pior. Por se tratar de uma doença genética, os três filhos poderiam tê-la. Para ela, só existia uma explicação para Maitê ser a única:

– Tinha que ser. Sair da escola que eu trabalhava foi uma renúncia de algo que eu amava. Deus estava me preparando. Se eu fosse me apegar àquilo, iria me despedir da minha filha, porque só teríamos mais seis meses juntas. Mas não! A gente tem que fazer até o último minuto sabendo que tentou.

O pai sofreu por mais tempo e relutou em aceitar o diagnóstico. Mas se engana quem pensa que a família optou por jogar a toalha.

– A Maitê veio ensinar que é agora, não amanhã. Nós nunca aceitamos não aceitar a condição dela. A única certeza que a gente tem é de que vai fazer o melhor possível para ela todos os dias.

São as palavras do pai.

O objetivo era dar conforto à menina e também suporte aos irmãos, que acompanham tudo de perto. Renata fincou os pés no chão:

– A gente decidiu não sofrer por antecipação. Acho que a nossa “virada de chave” foi entender a missão da Maitê, tirar uma lição disso e fazer a vida dela melhor para que a gente entenda qual é a nossa missão aqui.

Por ser uma síndrome rara e descoberta recentemente, os pais esbarraram na falta de informação. Segundo eles, o estudo mais antigo que encontraram sobre a doença tinha apenas 25 anos. Juntos, tiveram que testar e encontrar a melhor forma de cuidar da caçula. Não tem medicação, não tem cura. O tratamento é feito somente com estímulos e vitaminas manipuladas. Por isso, fazem de tudo para que Maitê tenha uma rotina normal, como explica a mãe:

– Não adianta a gente ficar trancado em casa fadado ao diagnóstico. Optamos por colocar ela na escola meio período, por alguns dias na semana e foi ótimo! Ela é super incluída, participa do jeito dela e é cheia de amigos.

Lei Maitê Ribeirão Preto

Inclusão. O pai advogado e professor, a mãe professora. E quem diria que uma criança poderia ensiná-los tanto sobre esse tema? Um dos grandes aprendizados foi lidar com o entorno. O casal entrou de cabeça no assunto para ajudar não só a filha, mas também outras pessoas que precisam lidar com as dificuldades impostas pela sociedade.

Ao lado de uma amiga advogada engajada no assunto, Renata criou um projeto de ação social chamado ABIC (A Brincadeira como Inclusão da Criança). Realizam ações para mobilizar e chamar pessoas com deficiência a viverem normalmente.

– A proposta é levar, além dos brinquedos inclusivos, o brincar.

Ela havia iniciado outro projeto antes mesmo de sua gestação. Curiosamente, Renata tinha um aluno com deficiência visual e era muito apegada a ele. Começou, então, a escrever um livro que tratava sobre inclusão. A história foi retomada recentemente e será publicada ainda este ano.

O casal descobriu da pior forma que teria que lutar para garantir que a filha pudesse acompanhá-los em todos os lugares. Durante um festival gastronômico realizado em um shopping de Ribeirão Preto, no ano passado, se depararam com mesas grandes e coletivas, que dispunham de oito lugares. Todas estavam ocupadas parcialmente.

– Nós tentamos arrumar um lugar para sentar com a Maitê, que estava na cadeira adaptada dela, mas todos diziam que estavam guardando cadeira para amigo, avô, tia…

Conta Luiz Eugênio. Renata decidiu, então, procurar pela organização do evento para que a situação fosse resolvida.

– Eu falei da situação da Maitê e perguntei se alguma coisa poderia ser feita. A responsável me disse que não poderia fazer nada.

Ela bateu o pé e explicou que se tratava de uma prioridade, mas a mulher se limitou a responder que deveriam ter chegado antes para conseguir um lugar.

– A organizadora ainda me disse que o evento tinha sido pensado para todas as pessoas. Perguntei para que tipo de pessoas, já que não acolhia minha filha. Ela me respondeu: para todas as pessoas normais.

Desconcertados, resolveram ir embora do local. Mas não deixariam passar batido. O fato foi amplamente divulgado e desencadeou uma mobilização nas redes sociais. Começaram a surgir muitas pessoas que se identificavam com o problema e já tinham passado pela mesma situação em outros estabelecimentos. O pai, que é advogado, se debruçou sobre a Legislação e encontrou diversas falhas.

– É ilegal não ter o mínimo do mínimo de acessibilidade, mas não existia uma punição para isso. Então decidimos que isso não poderia acontecer de novo com a gente e com mais ninguém.

Resolveram propor um projeto de lei, que visa a preferência de acomodações para pessoas com deficiência. Atualmente, a regra geral é reservar cerca de 2% dos assentos para quem tem mobilidade reduzida e outros 2% para quem tem alguma deficiência. A proposta, então, foi de que, caso todos os assentos estejam ocupados, a organização do evento encontre um lugar vago para acomodar a pessoa com deficiência adequadamente.

– O mundo precisa se ajustar à necessidade de todos e não a gente se limitar. Se o evento é público, ele tem que ser tratado para todo o público. Não queremos uma sociedade que trate bem somente o Luca ou a Liz, mas que também trate bem a Maitê.

O objetivo de formular uma lei municipal foi garantir autonomia, independência e inclusão.

– Inclusão não é ter uma área reservada para você ficar, mas sim junto, no meio, participando como todo mundo.

Após tramitar na Câmara de Vereadores por um semestre, passar por inúmeras discussões, modificações e resistências, o projeto de lei foi aprovado. Em 22 de janeiro de 2020, a Lei Maitê foi, enfim, sancionada sem vetos pela Prefeitura de Ribeirão Preto. Entra em vigor 90 dias a partir da publicação.

A mobilização coletiva é um dos grandes legados de Maitê. Foi através dela que uma grande rede de apoiadores se formou, pensando no melhor para as pessoas com deficiência.

– Nós temos voz e conhecimento, é o mínimo que podemos fazer pelos outros. Se você topar com uma situação terrível e excludente e não fizer nada, você está fazendo parte desse mundo excludente.

Explica Renata.

Esse é o plano: seguir em frente lutando pela igualdade de direitos e vivendo o agora, ao lado de Maitê.

– Ela nasceu, está aqui até hoje superando expectativas, vencendo um dia de cada vez. Esse é o nosso milagre. O amanhã fica para depois.

 

*Quer traduzir essa história em libras? Acesse o site VLibras, que faz esse serviço gratuitamente: https://vlibras.gov.br/

 

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