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Esta história foi narrada pelos integrantes do projeto Doadores de Voz, dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Unaerp.
Vale a pena ler de novo! História publicada pela primeira vez em 17 de abril de 2019!
– Espero ter sido útil.
Repete, mais de uma vez, um dos principais geógrafos e professores do Brasil, com sua ternura refletida nas balinhas de goma coloridas que ele deixa em cima de sua mesa e, a cada quando, diz: “Pega! Pega várias!”. Como se quisesse adoçar a vida da gente.
Em um escritório na região central de Ribeirão Preto, Melhem Adas, autor de mais de 30 livros utilizados como material didático em escolas do Brasil inteiro, aos 80 anos, continua produzindo a geografia em que acredita e registrando suas contribuições.
Trabalha cercado de fotos da família, quadros, objetos antigos, milhares de livros, histórias e ideias. Ao lado de sua mesa, uma janela deixa entrar a luz e descortina a vista da área urbana da cidade.
– Quero continuar até quando eu puder. Me imaginar com uma cadeira em frente de casa vendo a banda passar? Não! O trabalho nos mantém vivos! O ser humano tem que criar, fazer, buscar sempre!
Melhem é energia. Descobriu uma maneira, que não existe em fórmula alguma, de transformar o desânimo com os dias atuais em combustível para seguir acreditando. São anos, afinal, alimentando essa arte de ter fé no ser humano.
Conta que lá pela década de 50, com seus vinte e poucos de idade e ideias pulsantes sobre a política e a pobreza do país, chegou a uma conclusão otimista: “Tudo bem. Quando formos idosos, será diferente. O Brasil será uma sociedade mais justa”.
O presente não é bonito como o passado sonhou. E isso ele me conta com angústia sugando a energia das palavras. Fecha o semblante.
– Mudou, mas foi um desenvolvimento conservador. Um modelo de capitalismo implantado, com base na permanência dos privilégios, com oligarquias comandando ainda a vida nacional. E a gente já percebia que as elites não tinham preocupações sociais.
Realidade de gosto amargo, que nada se assemelha com as balinhas de goma da sua ternura.
Melhem se encantou pela Geografia ao entendê-la como “uma forma de detectar as expressões visíveis da desigualdade e propor soluções para a superação desses contrastes”, em suas palavras.
Passou mais de 40 anos compartilhando suas ideias em sala de aula. Por elas, sofreu censuras de todo tipo e por agressores diversos: do Estado, durante a ditatura, a empresas, incomodadas com a verdade nada doce que ele sempre fez questão de elucidar.
A lucidez de Melhem é sua lupa – e quase nunca mostra o que é agradável. Hoje, faz com que ele olhe para o presente e entenda que há muito, muito, muito a caminhar para se chegar a igualdade.
– Você está acompanhando o que está acontecendo com a Educação? Não sei o que vai ser… é uma tristeza profunda o que estamos vivendo.
Há sempre tempo para mais uma lição, porém: é preciso continuar.
Melhem nasceu e cresceu em Cedral, uma pequena cidade do interior de São Paulo, hoje com cerca de 8,7 mil habitantes. Seu pai tinha um armazém com tanta infinidade de produtos que os filhos, ao relatarem a história, o batizaram de shopping. Vendia de chapéus e tecidos a sabonete e arroz.
Ele e o irmão estudavam em um colégio no distrito vizinho, Engenheiro Schmidt. Todos os dias, pegavam o trem às 5h30 da madrugada. Na volta, as peraltices da meninice que hoje são memória.
– Na subida, a Maria fumaça diminuía a velocidade. Nós descíamos do trem e corríamos ao lado.
Conta que, anos mais tarde, foi convidado a ministrar uma palestra no colégio que estudara. Enquanto aguardava o horário, esperou em uma sala onde estavam expostos objetos históricos da instituição. Encontrou o caderno de sala da sua turma, com seu nome e notas. Materialização da memória guardada.
Aos 12 anos, Melhem entendeu o contraste urbano. Seu pai teve tuberculose, foi internado em Campos do Jordão e, mais tarde, veio a falecer. Sua mãe decidiu que ele iria viver em São Paulo, na casa de uma tia.
– Imagine você um menino que saiu de uma cidade pequena ir entregar cartas no Centro de São Paulo? Foi um impacto. Mas toquei minha vida.
O tio lhe arrumou um emprego de office boy logo quando chegou e uma vaga na escola. Fez o “científico”, como era chamado o colegial da época, em um bom colégio de São Paulo, pagando um preço mais baixo, por estudar no período noturno.
Melhem Adas quis ser médico. Aos 14 anos, leu o livro “Minha Vida e Minhas Ideias”, em que Albert Schweitzer conta que foi pastor até os 40 e poucos anos, quando decidiu prestar Medicina para, depois de formado, abrir um hospital no Congo e ajudar as pessoas de lá.
– Isso penetrou de tal forma minha alma que eu quis fazer Medicina e ir para a Amazônia. Coisa de jovem, idealista. Eu não tinha condições de fazer Medicina.
Começou no curso de Ciências Econômicas e, aos 19 anos, iniciou sua carreira em sala de aula. O irmão, que tem aptidão para Matemática, decidiu abrir um curso de admissão ao ginásio, já que naquela época as melhores escolas aplicavam provas. Chamou Melhem para dar aulas de História e Geografia, que aceitou por conveniência, nutrindo ainda a esperança da Medicina.
Não demorou, porém, a se encantar pela profissão. Antes de começar a cursar Geografia, parou com a faculdade de Ciências Econômicas por questões familiares. Já estava casado e a família começava a crescer.
O que ganhava dando aulas não era suficiente e, então, trabalhou como vendedor de máquinas de escrever, propagandista médico, representante de vendas.
Voltou para a faculdade em 1965, com a decisão de fazer Geografia e dois filhos (depois, vieram mais dois). Depois de formado, pôde ampliar a grade de aulas. Lecionou em conceituados colégios de São Paulo, sempre buscando levar além da apostila.
Conta do posto meteorológico que criaram na escola, com equipamentos doados pelo
7º Distrito de Meteorologia de São Paulo. Os alunos faziam a leitura diária dos equipamentos e depois transformavam os números em gráficos.
Relembra também as viagens que organizavam pelos arredores de São Paulo, utilizando um altímetro. Os estudantes eram desafiados a desenhar em gráfico o perfil do relevo e os trajetos feitos, mostrando as altitudes e distâncias percorridas.
Os projetos eram interdisciplinares e pretendiam, principalmente, ensinar a refletir.
– Se desenvolvia a capacidade de observação, mostrando aos alunos que na prática científica o primeiro passo é a observação, o segundo é o levantamento de dados e o terceiro é o olhar crítico para observar o espaço geográfico percorrido, percebendo que o espaço geográfico é a expressão visível das desigualdades sociais. Se eu sobrevoar Ribeirão Preto, o urbano me mostrará a segregação sócio espacial: os bairros dos ricos, da classe média e dos despossuídos.
Para Melhem, o ato de ensinar caminha de mãos dadas com o fazer refletir, instigar a formular, querer descobrir.
– Além de instruir, a educação tem o grande papel de desenvolver atitudes sociais. Não basta o professor vomitar o conteúdo e esquecer que os alunos são seres sociais, que precisam do desenvolvimento da ética, precisam desenvolver o respeito às diferenças, ao meio ambiente, à questão de gênero e daí afora.
Em agosto de 1970, escolheu Ribeirão Preto para fincar suas raízes. Vinha de São Paulo para a cidade semanalmente ministrar aulas na Barão de Mauá, e decidiu ficar. Conta, entretanto, que passou mais de 30 anos indo e voltando do interior para a capital lecionando, com “um pé lá e outro aqui”, como diz.
O convite para escrever foi feito nessa mesma época, por um amigo que acabara de montar uma editora. “Melhem, você não quer escrever o livro de Geografia?”. A ideia inicial seria reutilizar o que já havia nas apostilas. Mas – claro! – Melhem preferiu ir – sempre – além.
Escreveu sua própria obra, “Estudos de Geografia”, lançada por volta de 1972. Especialistas da área avaliaram que não se tratava de “pura geografia”, crítica que soou como elogio para o autor, que não aceita a fragmentação do mundo. Hoje, o livro é considerado por pesquisadores da área como uma obra de rompimento com o ensino engessado da época.
Para Melhem, o conhecimento não deve ser representado como uma árvore em que cada galho simboliza um campo.
– Hoje, a representação é um risoma. Você sabe o que é? Aquela raiz na qual a gente não consegue identificar a individualidade, a fragmentação e, sim, uma coisa só. Não existe fronteira. É a interdisciplinaridade.
Depois desse primeiro livro, não parou mais. Levou conhecimento em palavras para estudantes do Brasil todo, e continua a levar.
Conta que conheceu a educação além da superfície quando se incomodou com o fazer docente. Não entendia a dinâmica de repassar o que estava escrito na apostila, e pronto.
– Eu me sentia infeliz em sala, porque educar era transmitir conteúdo e cobrar com provas. Comecei a questionar meu papel. Existe uma grande diferença entre ser um professor e um educador.
Entende que o educador é “aquele que puxa a cortina para que o educando olhe o que tem por trás. Para instrumentalizá-lo, a fim de que pense com sua própria cabeça, ande com suas próprias pernas”, em suas palavras.
Paulo Freire foi um dos principais pensadores a apresentar esse caminho. Depois, Melhem foi encontrando seus próprios atalhos.
– Foi perguntado para Paulo Freire o que ele entendia por educação e ele respondeu que é um ato de amor. A educação envolve o relacionamento entre pessoas, que tem que ser mediado pelo amor, pelo respeito. Freire continuou, dizendo que, além de ser um ato de amor, a educação é um ato político. Mas não pode ser mal compreendida. Não é um ato político partidário. Não cabe à educação doutrinar, mas mostrar ao educando que o próprio ato de viver é político. A maneira como eu me relaciono com minha família, com o vizinho, os amigos: tudo exige uma postura política.
Suas ideias jogam luz ao que muitos poderes querem que permaneça nas sombras.
Foi taxado de comunista por dizer que “o espaço geográfico não é de todos”.
– Quem tem mais dinheiro consegue o melhor espaço. Quem não tem, vai para a periferia. O espaço é uma mercadoria. São coisas óbvias, mas que as pessoas não querem ver.
Na ditadura, foi obrigado a apagar de suas obras dados estatísticos oficiais, assistiu aos governos reduzirem as aulas de história, geografia, estudos sociais da carga escolar para que os alunos passassem a aprender educação cívica. Sabia que ensinava vigiado, por agentes infiltrados nas universidades com a função de observar – e punir – professores. Viu amigos serem presos.
– Eu me resguardei, porque pensava na minha família. Mas não me calei. Continuei falando, na medida do possível. Nós tínhamos uma editora progressista. E tínhamos que incluir alguns conceitos proibidos, como a mais valia, nas entrelinhas.
Seguiu fazendo o que acreditava. Segue ainda hoje.
– Se fala tanto em cidadania e não se explica o que é. Cidadania é a condição em que o sujeito goza de seus direitos sociais e políticos. É uma conquista e, para conquistá-la, você precisa estar politizado. Cidadania não é subversão. É transformar o direito formal em realidade concreta. A constituição diz: ‘A terra tem que cumprir uma função social’. Será que ela cumpre?
Acredita que aquela igualdade, sonhada por uma vida toda, é possível, desde que haja vontade política.
– Em 1960, a Coréia do Sul estava aquém de nós nos índices sociais. Gente séria de lá implantou a reforma agrária, investiu maciçamente em educação e pesquisa científica, aumentou a renda. Ao invés de comprar uma camisa, os coreanos podiam comprar três, quatro ao ano. A indústria têxtil foi estimulada e essa ideia foi compartilhada para todas as necessidades humanas. Hoje, a Coreia está muito além do Brasil. Tem solução, desde que essas questões sejam colocadas como prioridade. Mas não são.
É preciso continuar: disse a lição. E ele continua. Quer seguir escrevendo até quando puder. Vai ao escritório todos os dias e toma posse de sua mesa, tendo à frente o vidro de gominhas coloridas e ao lado a vista da área central de Ribeirão.
Tem fé. Mas uma fé do tipo questionadora, como só poderia ser. Diz que, por isso, navega em “mar revolto” em grande parte dos dias.
– Eu não sou ateu. Sou um covarde. Na hora ‘H’ eu não deixo de me dirigir a uma imagem de Cristo que minha mãe me deu. Tenho fé, mas muitas vezes a dúvida me abate.
Dúvida que angustia, mas impulsiona: sua trajetória é quem diz. Conta que foi coroinha até os 17 anos, quando leu as confissões de Santo Agostinho.
– Ele não se conformava com as maldades que existiam no mundo e justificou pelo livre arbítrio. Então, se o ser humano é mal, é uma escolha dele. A partir daí a igreja começou a explicar todas essas contradições. Comecei a fazer perguntas a mim mesmo e não conseguia resolver. Desde então, é uma confusão para mim.
Questionar e observar são partes de si, não há como desvencilhar.
Conta que, ainda criança, se inquietou e se encantou com a penicilina. O pai sofria as dores de uma pneumonia e seu médico foi até São Paulo buscar o remédio recém inventado que trazia alívio.
– Em quatro ou cinco dias meu pai estava bem.
Muitos anos depois, soube que Alexander Fleming, inventor da substância, estaria no Brasil. Foi até o aeroporto, em São Paulo, e ficou observando-o de longe.
– Eu quis ver esse homem, como que para agradecê-lo.
Tem fé, principalmente, no amor, no respeito, no humano.
“Pega mais uma balinha! Pega todas”, não se esquece de oferecer, mais uma vez.
Encontra, rotineiramente, ex-alunos, de diversas gerações. Eu, inclusive, sou uma delas. Quando alguém elogia os ensinamentos que aprendeu em seus livros, tem a resposta na ponta da língua:
– Espero ter sido útil!
Diz um dos principais geógrafos do Brasil, mostrando que sabe bem o significado da igualdade. Não quer ser maior que ninguém. O mapa que sonha desenhar tem as formas iguais.
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GRANDE DUPLA , JOSÉ DANTAS E MELHEN ADAS , SHOW DE BOLA , QTA SAUDADE DESSES TEMPOS.